Nelson de Oliveira é hoje uma das figuras em maior evidência no panorama da recente prosa brasileira. À sua já volumosa produção ficcional (dois romances, cinco volumes de contos, seis livros infanto-juvenis) somam-se dois livros de ensaios e a regular colaboração em jornais e revistas, além da organização de duas antologias de contos, intituladas Geração 90 (Manuscritos de computador e Os transgressores), e as maiores responsáveis pela atenção que o autor tem recebido por parte da crítica literária nos últimos tempos.
Agora, abandonando temporariamente o fardo de organizador, Nelson de Oliveira volta à ativa como contista em Sólidos gozosos & solidões geométricas. Talvez, o mais indicado a fazer, ao nos debruçarmos sobre este livro, seria ignorar a persona de “agitador cultural”, do organizador Nelson de Oliveira, para julgá-lo unicamente como ficcionista. Garantiríamos, assim, autonomia de julgamento, sem nos contaminar com as polêmicas mais ou menos interessantes que o tem acompanhado. Mas não creio que tal postura seja possível, nem produtiva: no caso de Oliveira, sua atuação crítica é iluminadora de suas escolhas como escritor.
Destaco, neste aspecto, as listas de influências dos contistas da chamada Geração 90. Em Manuscritos de computador (2001), ela é mais genérica, e engloba os autores dos anos 70 (Dalton Trevisan, João Antônio, Rubem Fonseca, dentre outros) que teriam feito a cabeça desta nova safra. Já Os transgressores (2003) traz uma lista ainda mais elaborada, transformada na “biblioteca básica dos transgressores”, e que se centra nos autores mais “experimentais”, como os “clássicos” Campos de Carvalho, José Agrippino de Paula e Osman Lins, e os “contemporâneos” Hilda Hilst, Valêncio Xavier e Ignácio Loyola Brandão.
O antologista pretendia, por meio destas associações, construir uma identidade ou um esboço de identidade para uma geração de ficcionistas ¾ que produz muito e alcançou, sem dúvida, um padrão de qualidade respeitável ¾ não apenas através da divulgação de seu trabalho, mas da filiação destes autores a uma tradição brasileira recentíssima e que já precisa ser resgatada. E embora ele próprio não tenha figurado nas antologias (o que mereceria fosse outro o organizador), esta filiação mostra-se válida para sua própria obra. Como um “trans-realista” que diz ser, Nelson de Oliveira possui muito das características que identifica nos “transgressores” por ele compilados: a ruptura da linearidade narrativa, mistura de discursos e gêneros literários e a utilização de variados narradores e pontos de vista. E é como continuador dos experimentalismos desta biblioteca básica que sua ficção deve ser compreendida.
Esta filiação é por vezes explícita, como ao final de seu último romance, A maldição do macho (2002), em que uma “Pequena bibliografia conterrânea e contemporânea da amizade, do amor e do sexo” indica possíveis interlocutores e influências deste romance (com novo destaque a Hilda Hilst, citada duas vezes). O mesmo se dá na intertextualidade revelada em vários momentos de sua obra, como na epígrafe de Subsolo Infinito (2000), extraída de Campos de Carvalho, ilustrativa do “desrespeito” aos padrões realistas que (des)ordena o romance. É assim com toda sua ficção: as escolhas do crítico e antologista são iluminadoras do trabalho do ficcionista, pois compartilham os mesmos interesses.
Neste sentido, Sólidos gozosos & solidões geométricas é, ainda, deveras “transgressor” (e não convém, neste momento, repetir o julgamento sobre a validade deste rótulo, o que é outra longa história). Porque paga tributo aos mesmos nomes e respeita a mesma vontade de experimentação formal.
São oito contos, todos eles tematizando o olhar, conforme aponta Lívia Garcia-Roza, na orelha do livro. Acrescentaria que, mais do que o olhar das personagens, é problematizado o olhar narrativo, em que a tensão formal é integrada à história que narra, funciona a serviço dela.
É assim em A mãe das aves, o primeiro da coletânea, em que a referida mãe faz dos olhos da filha um caminho para compreender o mundo. Aqui, já insinuando um elemento fantástico que aparecerá com mais ênfase no decorrer do livro, há uma espécie de “materialização” de uma metáfora, ou seja: a obsessão pelos olhos, considerados como “asas”, culmina literalmente na criação de aviário dentro de um apartamento, movido pela busca do olhar original, irremediavelmente perdido. O absurdo está não apenas no estranho enredo, mas insinuado nas elipses do texto, repleto de frases curtíssimas que atuam como “flashes” de sonhos, lembranças e associações da protagonista, estabelecendo relações inusitadas ou mesmo inacessíveis ao leitor, como convém à representação de uma mente perturbada.
O olhar narrativo será problematizado com maior ênfase nas narrativas em primeira pessoa, maioria do volume, muito marcadas pela coloquialidade. Em Gothan City, o menino narrador contamina sua realidade com a fantasia de modo indissociável, muito ao gosto de José J. Veiga, embora o universo aqui descrito seja outro: o da grande cidade, cinza como o pátio do colégio, e onde a fantasia é tributária direta da cultura pop, da televisão e dos quadrinhos.
Um pouco mais velho é o menino narrador de Os olhos da gata que, junto a dois amigos, fantasia sobre uma vizinha, suposta bruxa cujos hábitos influenciam todo o bairro. O tema principal é o maravilhamento dos garotos frente ao mistério da iniciação sexual, que se repete em Primos. Estas duas histórias trazem insólitas situações relacionadas ao sexo, expostas com a coloquialidade das confidências adolescentes, e dos comentários de dois amigos indiscretos. Este tom narrativo evidencia o absurdo destas relações, e pode ser notado em todo o livro, principalmente em certo rebaixamento de símbolos literários, destituindo-os de sua aura romântica; é assim com o corvo, clássica figura do mistério e do suspense, que tromba com a janela de um apartamento; do mesmo modo, uma história bíblica é esvaziada de seu usual tom épico e traz impropérios chulos como se proferidos por um menino em qualquer esquina de hoje. Também colaboram para este estranhamento certas adjetivações inusitadas, como Olhos cor-de-rosa e frios ou o próprio título do livro.
Aos poucos, no decorrer da leitura, vão se revelando as constantes temáticas e estilísticas do volume. Em comum, todos os contos parecem tematizar a dificuldade de consolidação de um relacionamento íntimo; às vezes, ele se insinua possível, mesmo como atitude desesperada de fuga de uma inevitável solidão (Gothan City); outras, a verdadeira intimidade entre as personagens revela-se impossível, seja pela efemeridade dos relacionamentos (Sang Yi, A mãe das aves), seja pelo jogo de máscaras de que são feitos (Duzentas mil horas). E sobre este mesmo eixo temático surgem diferentes e estranhos protagonistas, como o inominado narrador (o diabo?) de O dia dos prodígios ou o chamado maníaco de Olhos cor-de-rosa e frios. Neste último, Maura Lopes Cançado, autora esquecida, mas sempre relembrada por Oliveira, surge como intertexto explícito. Destaca-se que a voz narrativa, mesmo em terceira pessoa, está contaminada com o ponto de vista do maníaco, de modo que a loucura representada no enredo toma conta das relações discursivas.
É assim também em Duzentas mil horas, provavelmente o melhor conto do livro: o desdobramento de um irreal jogo de identidades acarreta a transformação física das personagens. Tal enredo fantástico é construído sob um igualmente intrincado jogo de identidades de seus narradores, revelado por fragmentos dispostos como em um grande mosaico.
Afinal, em Sólidos gozosos & solidões geométricas, o absurdo ou a ruptura com a causalidade realista são mantidos não por uma vontade cega de ruptura formal, mas o contrário: a forma serve ao tema, dando-lhe consistência e maturidade literária. O escritor Nelson de Oliveira mostra, assim, consciência de seus instrumentos de criação, bem como coerência com seu trabalho de crítica e divulgação. O que, convenhamos, não é pouca coisa.
• Sua literatura pode ser aproximada, em uma primeira leitura, a certa narrativa que se convencionou chamar de fantástica; mas não próxima do conto de terror de um Edgar Poe, mas do absurdo de Kafka. Você concorda com isso?
A princípio, concordo. De fato Kafka foi o autor que mais me influenciou, isso no início. Os saltitantes seres da lua e Naquela época tínhamos um gato, meus dois primeiros livros, ambos de contos, têm muito da atmosfera claustrofóbica dos romances do tcheco. Mas depois isso mudou. Passei a me interessar muito mais pelos grandes nomes do realismo mágico, por Borges, Cortázar, Rulfo, Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Campos de Carvalho e José J. Veiga. Outra vertente literária que aos poucos foi dominando meu interesse foi a dos surrealistas. O humor negro, que sempre esteve presente nos escritos de Breton, Aragon e Péret, ainda hoje me interessa muito. Por mais densas e angustiantes que sejam muitas das minhas histórias, não abro mão de doses maciças de humor. O trocadilho, a metalinguagem, a paródia, tudo isso redime o escritor e o homem contemporâneo massacrados por forças terríveis. É preciso, mais do que se lamentar, rir do caos.
• Quais são os temas principais de seus livros?
Realmente eu não sei dizer, são tantos. Percebo que há fases temáticas mais ou menos bem definidas. Durante certo tempo eu escrevi apenas sobre a própria literatura. Os contos Nowhere man e O som, o silêncio, presentes n’Os saltitantes seres da lua, mostram pessoas solitárias, problemáticas, obcecadas pela literatura. No primeiro conto há o ladrãozinho de livros, que vai aos sebos, mas não compra nada, simplesmente enfia dentro da camisa os exemplares que lhe interessam. No segundo há o sujeito apaixonado por romances policiais, que está prestes a cometer um assassinato. Nas duas narrativas a citação à obra de outros escritores acontece com freqüência. Hoje, meu tema predominante tem sido o amor. Tenho escrito muitas narrativas sobre encontros amorosos e rompimentos dolorosos. Meu segundo romance, A maldição do macho, trata do amor corrompido pela compulsão sexual. Um dos últimos contos que escrevi chama-se Beatriz, foi publicado na revista Ficções e narra o drama de uma menina que acaba de perder o pai. Creio que este é o melhor conto que já escrevi, porque nele há o equilíbrio formal que sempre busquei nesses anos todos. Nele tudo é sutil, sem deixar de ser grotesco. Tudo é trágico, sem deixar de ser cômico.
• Você se considera um escritor realista?
Trans-realista é a definição mais exata. Ao escrever sobre Proust, o crítico Antonio Candido usou essa expressão para designar a prosa que, na busca do mimetismo, não parava na superfície dos objetos, mas atravessava-a. É isso o que tento fazer com minha literatura do absurdo: ir mais fundo no mundo. Procuro, mais do que tudo, representar fielmente a natureza e a sociedade circundantes. Nisso os realistas e eu estamos de acordo. Mas como a natureza e a sociedade são, para mim, constituídas de relações esquizofrênicas, é natural que minha prosa também seja tocada pela esquizofrenia. Se você observar bem, toda a grande literatura do século 20 buscou a mesma coisa. Poetas como Pound e Murilo Mendes, romancistas como Joyce e Clarice Lispector, todos eles quiseram registrar com palavras a rotina multifacetada e irracional da realidade.
• Sólidos gozosos & solidões geométricas: de onde saiu o enigmático título dessa coletânea? Os contos que a compõem foram concebidos com esse objetivo, ou trata-se de um apanhado de trabalhos avulsos?
Os oito contos desse meu novo livro foram aparecendo aqui e ali ao longo dos últimos três anos. Metade deles figurou em coletâneas temáticas de outras editoras, dois saíram em revistas literárias e os outros dois são inéditos. É claro que no início eu não planejava que todas essas narrativas, muitas ainda por escrever, iriam terminar em livro. Mas no final isso foi inevitável. Então, quando vi que já possuía um bom número de contos, parti para encontrar o eixo comum a todos eles. E esse eixo é mesmo o da solidão absurda das metrópoles contemporâneas, feita de solitários geométricos, indivíduos cercados de gente por todos os lados.
• Como você vê, hoje, o espaço dado pelas editoras aos novos autores?
Nos últimos trinta anos o número de leitores cresceu absurdamente no Brasil. No entanto, o número de leitores sofisticados, hoje, não é maior do que há cinqüenta anos. Ou seja, bons leitores continuam escassos, mas gente interessada em subliteratura, em livros esotéricos e de auto-ajuda, há muita nas livrarias. Essa é a razão pela qual os escritores de talento, sejam eles veteranos ou estreantes, continuam tendo dificuldade para ver seus livros publicados pelas grandes editoras. Felizmente as pequenas casas editoriais têm surgido aos montes, em toda parte. São elas que têm editado a prosa e a poesia mais interessante, de difícil comercialização. Os novos sistemas de impressão, que baratearam muito o custo de um livro, também têm ajudado os escritores que ainda não encontraram editor. Recebo quase que semanalmente livros financiados pelos próprios autores, que não tiveram paciência de ficar dois, três anos na fila, à espera de que uma editora se interessasse por eles.
• Você participou na Universidad de Lima do encontro La literatura en el siglo XXI: hablan los jóvenes. Como foi falar para os estudantes peruanos? Como fazer para aproximar mais os países da América Latina, a língua hispânica e a portuguesa, no amplo auditório dessa babel bilíngüe?
Falar na Universidad de Lima foi, de certa maneira, terrível, porque me senti extremamente sozinho. Os autores sul-americanos se entenderam muito bem, trocaram livros e endereços, procuraram se conhecer melhor. A romancista portuguesa e eu ficamos meio isolados, por culpa, é claro, do nosso idioma. Lá eu percebi que ninguém, fora do Brasil, conhece o que de bom está sendo feito aqui, não somos referência para ninguém. Por isso quero investir em edições bilíngües dos meus próximos livros. Sinto essa necessidade de me fazer entender na Argentina, no Chile, no México e até na Espanha, se possível. Temos uma das melhores literaturas do mundo mas não sabemos como fazê-la cruzar fronteiras. Sugiro então o contrabando: as edições bilíngües enviadas pelo correio aos nossos interlocutores sul-americanos.
• Quais são seus projetos, no momento? Escrever ficção ou divulgar a ficção alheia?
Ambos. Continuo escrevendo na imprensa sobre a literatura brasileira, principalmente sobre os novos poetas e prosadores. Também continuo construindo a novela Babel Babilônia, obra aberta e em progresso, sobre a qual já falei num dos textos d’O século oculto. Mas faço isso apenas nas horas vagas, à noite ou só nos fins de semana, porque também estou revisando minha dissertação de mestrado, trabalho que está se mostrando tão extenuante quanto foi o da redação e o da defesa. Quero muito publicar esse texto ainda este ano, mas não estou satisfeito com certas passagens. Por isso escrevo e reescrevo. A dissertação trata de dois romances: O púcaro búlgaro, do brasileiro Campos de Carvalho, e As naus, do português António Lobo Antunes. Mas como sou 90% ficcionista e apenas 10% teórico, às vezes demoro quatro, cinco horas para escrever quinze, vinte linhas… No meu caso, o rigor acadêmico é algo que está sendo muito penoso de assimilar.