Gerações de versos

O poeta gaúcho Carpinejar conta como o fato de ser filho de Carlos Nejar afeta sua poesia, sobre suas influências e sobre seu trabalho
Fabrício Carpinejar, autor de “Coragem de viver”
01/10/2000

O poeta Carpinejar, Fabrício Carpi Nejar,  27 anos, é jornalista e mestrando em Literatura Brasileira na UFRGS. Mora em São Leopoldo (RS). Estreou na literatura com As Solas do Sol (Ed. Bertrand Brasil, 1998), vencedor do “Prêmio Fernando Pessoa” da União Brasileira de Escritores, categoria Revelação e Estréia, e finalista do Prêmio Açorianos de Literatura/99 da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre.

O primeiro livro rendeu-lhe o reconhecimento de escritores como João Gilberto Noll, Antonio Carlos Secchin, Nelly Novaes Coelho, entre outros, que o saudaram como uma nova voz na poesia brasileira.  Moacyr Scliar deu as boas-vindas: ‘Carpe Carpinejar, digo eu ao leitor: você gostará”

Sua segunda obra,  Um Terno de Pássaros ao Sul,  acaba de ser lançada pela editora paulista Escrituras. Narra a trajetória de um homem resgatando o pai e retomando a ligação com a terra natal.  Trata-se de um acerto de contas,  onde a região geográfica e imaginária  do pampa participa como testemunha do embate verbal. Até os protagonistas encontrarem uma amizade muito além do sangue. “Tivemos a coragem de superar o começo,/ não transformar a filiação/em mapa de guerra,/imitação da treva”, advertem os versos.

Carpinejar guarda respiração para mergulhar fundo na sensibilidade. Compôs um livro de um fôlego só, um poema longo, sem pausas ou capítulos, como uma oração emendada nas lembranças, como uma carta que nunca atinge o ponto final.

O crítico Ivo Barroso ressalta a harmonia do conjunto: “Fabrício conseguiu escrever um livro de espantosa unidade, um tema com variações, cada qual mais rica, sem apelar para a fanfarra dos metais nem o ribombo das percussões. Composto em trios ou estrofe de três versos, multimétricos, nele desenvolve um ritmo interior, de quase confissão, como palavras ditas na sombra, mais dirigidas a si mesmo que o destinatário desta carta-poema ou deste aceno de volta”.

UM TERNO DE PÁSSAROS AO SUL já no título nos sugere tanto o traçado de uma migração como a necessidade de um agasalho para enfrentar o rigoroso inverno. O ensaísta Miguel Sanches Neto destaca a força do livro: “Um terno de pássaros ao sul encanta e prende o leitor da primeira à última página, tanto pelo ritmo extremamente ágil quanto pelo forte princípio masculino de um discurso que se faz força de expressão. Manejando metáforas espontâneas, por mais inesperadas, Carpinejar esbanja vitalidade poética, não havendo recuo ou hesitação em seu livro de pura vitalidade”

Tudo inicia com um apelo “Volta ao pampa, pai” que  assume o papel de refrão costurando as iluminações e as metáforas do texto. Fatos do dia a dia de uma criança como conversar com roupas ou disputar corridas com a lua confirmam a incansável busca, que se estende pela enfurecida adolescência e atinge a idade adulta com a reconciliação e o retorno à casa demolida.

Filho de dois poetas, Maria CarpiCarlos Nejar, Fabrício fundiu os sobrenomes materno e paterno, criando uma nova vertente na tradição lírica da família.

• Por que escritores têm tanta fixação na figura paterna?
Na nossa literatura recente há o crescente interesse em equacionar a figura do pai, basta lembrar Quase Memória/Quase Romance de Carlos Heitor Cony, Armadilha para Lamartine de Carlos Sussekind e a novela Pequod do gaúcho Vitor Ramil. A fixação é necessária para libertar-se da própria imagem no espelho familiar. O pai é sempre um filho inacabado e o filho, um pai precoce.

• “Ao escapar de tua figura/me tornei igual.” Destino? Eterno retorno? Repetição?
É a trajetória circular. Toda a fuga é uma renúncia que mais acentua o desejo do retorno. Torna-se necessário o enfrentamento. Por mais que ousemos seguir outros caminhos, estaremos com o mesmo impulso interior que nos deixa parados em movimento. Esses versos provam que mesmo escapando do domínio da figura paterna, ela já está internalizada e, se não houver atenção, cometeremos os mesmos erros, os mesmos deslizes. Carta a um Pai de Kafka, por exemplo,  foi escrita para ser lida pelo próprio kafka, não pelo pai dele. Kafka queria entender o pai que ele havia criado, introjetado, ao longo de silêncios e omissões.

• “Só te amei/sendo teu inimigo.” Um inimigo conhecido é melhor do que um amigo? O pai é um inimigo íntimo?
O ódio é uma maneira de disciplinar o amor. É um apelo que reconhece a existência do interlocutor e a importância dos ‘contrários’ para o amadurecimento.

• Com quantas metáforas se faz um poema?
Não há limites, nem uma porção definida. A metáfora deve estar em equilíbrio com a mensagem, sugerir a atmosfera, sem oprimir o discurso. Consiste numa ação visual que reivindica, em seguida, uma reação de pensamento.

• A imagem é um dos pontos altos em sua poesia. Qual a imagem mais corresponde a ausência de seu pai?
Vejo um livro de poemas como um caderno de gravuras. Visualizar é o mesmo que estar presente, corporificar. Jorge de Lima já dizia em “Invenção de Orfeu”: “como conhecer as coisas, senão sendo-as ?”. Ver é participar. É ser responsável pela leitura do mundo e releitura da vida. Ter o compromisso com o destino das palavras. Na verdade, creio que ninguém na verdade lê poesia, é a poesia que lê nossa vida. Na medida em que escrevo sou reescrito.

Uma das imagens que mais correspondem a ausência do pai é a conversa com as camisas. Quando o pai partia em viagens, eu conversava com suas roupas. Carlos Nejar escreveu um poema em Os Viventes (1979) sobre essa cena. Vinte e um anos depois, dou minha versão dos fatos, deixo de ser objeto de um poema, inverto a situação e assumo o foco de sujeito. Reescrevo a mesma lembrança sob a perspectiva do filho. Nejar havia deixado uma pergunta no ar: “O que procurava entre minhas roupas,/ a lágrima, algum amor banido,/o instinto de me sobreviver ?”.  Torno-me autor e dou a resposta: “Vestia tua camisa,/copiando o ritmo dos teus traços,/ a respiração copiosa,/sendo meu próprio e definitivo pai”. Nesse sentido, a obra é afirmativa, a celebração de uma amizade, que mais se fortalece superando desafios.

• “O sabor/de um livro antigo/está em jovem /esquecê-lo,” Para que serve a tradição? É dever de vírus?
A tradição não significa redução, pelo contrário. O verdadeiro livro é aquele posto em prática. Não levaria nenhum livro para uma ilha deserta. Pois os livros que amei foram absorvidos pela minha personalidade.

O esquecimento não é algo ruim, depreciativo. Não há melhor gaveta que a memória, só conserva o que realmente merece. Tanto que não acredito no efeito do isolamento, da sublimação, do poeta ungido de Deus. Poesia é um exercício da sensibilidade, a narração do imaginário. Não adianta apressar-se, anotar um poema em trânsito com medo de perder algo genial. O que é bom, volta. Aqueles poemas que resistiram ao esquecimento e retornam merecem viver.

• “Em tua biblioteca/rastreavas, ensandecido, aquele morto encadernado”. A biblioteca é um cemitério de papel? O livro é um caixão de papel?
O  conhecimento e a vida são válidos quando conjugados. Eu sou também um livro. Mas não quero atravessar séculos, entrar na posteridade como se fosse uma aposentadoria, mas apenas conviver e entender os homens e as mulheres de meu tempo. Ser contemporâneo da minha paixão – durar enquanto ela arde.

• Quem é o poeta brasileiro? Como vive?
A poesia, infelizmente, é o salário mínimo da literatura brasileira. Hoje é mais fácil do poeta publicar um livro, porém as leis da distribuição são mais violentas e coercitivas. Da mesma forma em que se nota uma maior quantidade de poetas, percebe-se a substancial diminuição das tiragens das edições desses escritores, que às vezes ficam na casa dos 500/300 exemplares. Pouco a pouco, tamanha a contenção, as editoras de poesia só farão uma tiragem para ser distribuída entre os críticos. O mercado, então, está mais disseminado. Não sei se posso qualificar de organização.

Existe um aumento de público de poesia proporcional ao aumento de poetas. Aí surge o dilema: quem compra poesia tem a pretensão de ser poeta ou é também poeta ou tem a pretensão de ser crítico ou é também crítico, transformando o espaço em antropófago.

O que está em vigor como atitude lírica é o verso da primeira pessoa do singular.  Os poetas da atualidade não são do contra, têm um maior nível de liberdade, sem a pressão de movimentos literários como ocorria nas décadas de 60 e 70, sem a necessidade de prestar contas a uma crítica social ou sofrer o patrulhamento de tendências.  Escrevem a seu favor, demonstrando um grau avançado de narcisismo. O que viabiliza a construção de mitologias pessoais.

Um dos grandes desafios continua a ser a questão da herança. Muitos dos jovens escritores buscam suceder um nome consagrado como forma de adquirir credibilidade. Isso é errado. No RS, o legado de Mário Quintana é emblemático e cobiçado. Quantos se insinuaram como o fiel herdeiro ou tentam fazer parte do seu inventário ? O mesmo se passa em SP com Haroldo de Campos, em que uma geração se lançou em busca de um lugar ao sol na arena de concreto.

• “A mãe remava/em tua devastação,/percorria os parágrafos a lápis/ O grafite dela, fino,/uma agulha cerzindo”. A mãe à moda Penélope é um referencial até hoje?
A paciência é uma virtude. E a figura feminina, longe de ser passiva, conhece a estratégia de se distrair e, com isso, ficar mais atenta. A distração é uma maneira de se concentrar. A mulher escreveu a história no corpo, o homem esqueceu de residir em si. O homem é um hóspede, tem vergonha de suas dúvidas.

• “A loucura exige /disciplina/para não ser vista”?
Chesterton tem uma frase brilhante: “os loucos são aqueles que perdem tudo, menos a razão”. Seguindo o raciocínio, é o excesso da razão que traz a loucura, não o imaginário. Sonhar liberta.

• .Quando um poema seu está pronto?
O poema está pronto quando abandonado. Isso é uma lição de Valéry. Senão mudaríamos ele toda hora. O importante é que ele tenha o rigor da invenção sem nunca perder a espontaneidade da descoberta. Procuro contar uma história no livro de poesia, seguir um fio narrativo, um enredo, uma seqüência de pensamento que forneça uma visão de mundo.  Nada é solto ao acaso, como bilhetes sem destinatário. Há sempre um endereço e uma mensagem.

Poesia não é catarse, desabafo, tecer cartas de amor. Poesia é invenção, laboratório da linguagem. É se inventar no ato de ressuscitar o idioma. Salvar uma palavra do desterro, fazer um vocábulo deixar a farda do dicionário e sair à paisana.

Comparo os versos ao ato de esculpir. Não se faz um poema acrescentando palavras, assim como não se faz uma escultura acrescentando pedras. É burilando, lapidando, tirando os excessos, até permanecer somente o essencial, o necessário. O poema é tudo o que não poderia ser dito de outra maneira. É um silêncio sonoro. Há um rosto que espera ser descoberto na pedra bruta. O mais é menos na poesia, o menos é mais.

• Em UM TERNO DE PÁSSAROS AO SUL “a armadura do mar, natureza enervada, barro assobiado, gastura do berro, flama da serragem,” O que é o pampa?
O pampa é um jeito de se curvar diante do horizonte. No sul até o vento tem sotaque.

Em Um terno de pássaros ao sul discuto a figura paterna, é a história de um homem resgatando o pai e anseia resolver os impasses da família. No caso, ao invés de trabalhar com o mito do filho pródigo, levanto a figura do pai pródigo. É uma metáfora da difícil relação do Rio Grande do Sul com o Brasil. Imagino o pampa como filho de uma mãe solteira, que trabalhou fora, criou sozinha seu filho, foi para luta. O Brasil olha o Sul como um filho bastardo e desconfia que ele é a cara da Argentina e não consegue demonstrar seu afeto. É a síndrome da Capitu.

Por isso, o refrão “Volta ao pampa, pai” no final toma o seguinte apelo: “Volta ao pai, pampa”

• “Lembro como se fosse amanhã.” Como disse Renato Russo, é “a saudade que existe de tudo que eu ainda não vi”?
É a nostalgia pelo que poderemos ser, tudo o que foi visto nos prepara para o que virá. Somos adubo, rascunho, repasto. O futuro nos dá a possibilidade de reagir às lembranças e isso altera o passado.  Nascemos com as respostas e a vida é encontrar quais são as perguntas que melhor nos definem.

• Como vê a Internet como espaço de divulgação de poesia ?
A Internet é um instrumento que privilegia a velocidade, não a informação. Isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Ruim porque podemos entrar no surto da pressa e consumar leituras refletidas, rápidas, sem a devida reflexão, convivência e acompanhamento que nos dá o suporte do livro. Favorável pois o poema passou a contar com elementos visuais que ultrapassam o sentido tátil, conferindo uma atitude cênica. É um teatro imaginário em que a sonoplastia e a cenografia acrescentam novas formas de lidar com o verso.

Exalto iniciativas como o Jornal de Poesia, um dos pioneiros da Internet na divulgação da poesia, dirigido pelo gosto apurado de Soares Feitosa.

• Qual o papel do escritor na sociedade?
Formar para melhor informar. Inspirar antes de ser um inspirado. É preciso engajar-se na realidade emotiva do leitor, senão nada vale estar engajado na realidade social. O poeta é um biógrafo coletivo. São minhas lembranças, porém, quando publicadas, são lembranças dos outros. Falar de minha vida  é a forma que tenho de falar de todas as vidas que estão em mim ou que passaram pela água-furtada dos olhos. Não escrevo para me expor, mas para transpor os limites pessoais. É imprescindível sair do livro para entrar novamente nele.

Rodrigo de Souza Leão
Rascunho