Colocar-se nu diante de si mesma, mostrar certa fragilidade e desta tirar a própria força parecem ser um dos objetivos da escritora, poeta e artista plástica italiana Maria Grazia Calandrone (Milão 1964), que acaba de ser publicada no Brasil pela Relicário e pela Urutau. A autora se apresenta ao público brasileiro com um romance que coloca no centro a complexa relação entre mãe e filha, a partir da sua própria biografia. Brilha como vida (Relicário) traz a história de uma criança a quem, muito cedo, é revelado ser filha adotiva. É Ivone Calandrone, a mãe adotiva, quem abre a caixa de Pandora. Um mergulho nas profundezas do amor materno e filial, mas também em seus lados obscuros.
Ieda Magri com sagacidade observa na orelha: “Da perspectiva dessa mãe, a falha leva à perda irreparável, ainda que falsa, ainda que pura armadilha do amor”. E Nara Vidal enfatizou o caráter cortante dessas páginas: “Como é possível um amor entre mãe e filha doer tanto?”. Brilha como vida, contudo, toca ainda em questões mais do que contemporâneas como o papel da mulher na sociedade, o suicídio, entre outros.
Tons melancólicos e nostálgicos, aqui, são descartados. O que fica também não deixa de ser uma investigação “antropológica” das relações humanas. Uma vida acontece a partir da relação com o fora, seja pela necessidade de ar, luz, água seja pela trama que vai se construindo ao longo do tempo. A propósito de Sthendal, Roland Barthes disse em um dos seus últimos textos: “Sempre se encalha quando se fala do que se ama”.
Talvez seja por isso que o livro de poemas A vida inteira (Urutau) tenha muitos contatos com o romance Brilha como vida. Trata-se de uma antologia que reúne quase dez anos de escrita poética, com inéditos. Nestes poemas reunidos, a tensão entre amor e desamor explora outros espaços domésticos, reportagens da crônica policial, a questão urgente da imigração na Europa e a relação com a própria língua. O amor, diz ainda Barthes, é sempre contado. E um relato, seja ele qual for, tem seus buracos negros, suas lacunas, por isso a exigência de enfrentá-los, inclusive quando a linguagem parece não dar conta de concretizar as sensações.
Acredito que o projeto literário de Maria Grazia Calandrone seja por si só um gesto de responsabilidade para com ela mesma e também para com uma comunidade maior, para com outras mulheres, numa sociedade em que a autossuficiência é, por diversas razões, estruturalmente comprometida. E isso fica mais evidente quando alguns poemas de A vida inteira trazem para o primeiro plano a questão da violência doméstica, os feminicídios, e a exposição do próprio corpo feminino, numa performatividade da linguagem poética que não descarta os enlaces com prosa.
• Seus livros colocam em jogo relações entre realidade e escrita, vida e escrita: como lida com elas num momento de fortes tendências da autoficção?
Naturalmente cada história pode ser contada de muitas formas. O meu modo de contar a vida é escutar os sons que a acompanham e, simplesmente, transcrevê-los, tomada por uma fúria que é dita “criativa”. No caso da minha vida, segui o mesmo método, a tradução do mundo em palavras, como se estivesse quase escutando a voz de um gravador ligado nas estâncias da existência, que trazia impressos os momentos cruciais da minha história italiana daqueles anos.
• Pasolini é uma referência para você. Em A vida inteira, há inclusive um poema que evoca a sua morte. Em 2022, centenário de Pasolini, o que permanece dele?
Acredito que Pasolini seja um dos poucos autores italianos que viveram a experiência da poesia como uma experiência total: qualquer coisa que Pasolini faça ou escreva, ele a faz e a escreve como poeta, ou seja, sob a luz de uma visão que precede a realidade e que permite interpretar a realidade de uma maneira que não é somente fenomenológica. É nesse sentido que a poesia de Pasolini é profundamente civil, porque é ativa, por agir na superfície e nas dobras daquela que costumamos definir como realidade.
• Brilha como vida (romance) e A vida inteira (poesia) possuem pontos em comum. E a palavra “vida” está na capa de ambos. Que diálogos são esses?
Acredito sempre menos nas distinções de gêneros em todas as artes, especialmente, nas artes literárias. O impulso que move em direção à escrita (e talvez em toda tradução comunicativa) é sempre o mesmo, simplesmente se desdobra em duas formas diferentes: a narrativa, ou pseudonarrativa, com uma trama mais ou menos direta, e a poética, que procede por fragmentos e trabalha mais a sugestão e a evocação. O diálogo entre romance e poesia é, então, constante e, eu diria, quase interior. Acredito que esse alcançar uma fonte comum possa valer também para a obra gentil de quem traduz.
• Seria correto dizer que Brilha como vida é uma autobiografia poética, um corpo luminoso (a capa da edição brasileira traz justamente uma estrela), cujo núcleo explode nestas páginas?
Esta foi a generosa interpretação do crítico italiano Andrea Cortellessa. Acredito e espero que este romance seja uma experiência também física, biopsíquica, da interpretação de uma existência que não é necessariamente a minha, no sentido que me parece ter extraído da minha experiência biográfica um tema que, espero, possa ser comum à existência de todos, ao crescimento tormentoso de uma figura humana ao lado de um corpo materno infinitamente amado, quase idolatrado, quase mítico.
• Em Brilha como vida, o que te motivou a dar organicidade à história da relação mãe e filha, que já estava presente em seus poemas? A trama terá continuação com outro romance?
Essa história já teve uma continuação, que na realidade é o estopim de tudo, ou seja, a narrativa da história da minha mãe natural, que será publicado na Itália agora em outubro. Senti a necessidade de explicitar o relato implícito nos poemas, simplesmente porque num determinado momento da vida você está mais madura; e tem-se a força psíquica de enfrentar toda a própria existência e compartilhá-la, esperando que possa ser um espelho útil para o leitor. Há algumas décadas na literatura contemporânea, as mulheres tomaram a palavra em voz alta e esse escrever em voz alta das mulheres, que finalmente são também mães, além de serem escritoras, muda completamente a perspectiva sobre a matéria materna. Quero dizer: as figuras femininas descritas pelas mulheres começam a assumir uma humanidade muito diferente das mães tradicionalmente imaginadas pelos homens: uma humanidade mais concreta, mais detalhada, menos mitológica e abstrata. Numa única palavra, mais verdadeira. Mais próxima.
• Em Brilha como vida, há variadas marcações da história política, cultural italiana. Trechos de músicas, filmes, enfim, nomes de personalidades das décadas de 1960, 1970 e 1980. Como você acredita que um leitor estrangeiro possa acolher a densidade da trama?
Essa é a pergunta que me coloquei quando começaram a chegar as diferentes propostas de tradução. Acredito que, na aldeia global conectada à rede planetária que é hoje o mundo, o leitor estrangeiro poderá facilmente aprofundar, se desejar, como já acontece para quem lê a magnífica problemática França de Annie Ernaux.
• Você recentemente organizou a antologia poética Versi di lebertà: trenta poetesses da tutto il mondo, com nomes como Florbela Espanca, Anna Akhmátova, Marina Tsvetaeva, Elizabeth Bishop e Nadia Anjuman. Quais foram os critérios de escolha?
Como escrevi na primeira linha da introdução “as escolhi porque são livres”. Procurei propor um panorama intercontinental de mulheres que expressaram a própria forma de liberdade ou na tradição literária ou na política de seus próprios países, comportando-se no mesmo modo de Pasolini, ou seja, agindo ativamente em seus países por meio de uma visão de mundo que elas escolheram expressar em palavras. Algumas delas (aliás, como o próprio Pasolini) pagaram a própria liberdade de expressão com o exílio e, inclusive, com a vida. Espero que as considerações sobre as vidas excepcionais destas mulheres nos permitam ou apreciar mais profundamente a liberdade da qual gozamos ou, caso não seja assim, lutar seguindo o exemplo delas, para fazer com que o nosso pedacinho de mundo possa ser um lugar mais tranquilo e íntegro para se habitar.
• Na Itália, você é uma escritora conhecida e de grande sucesso, com um percurso iniciado em 1988, com vários prêmios literários. Como você se apresentaria ao leitor brasileiro?
Procuro olhar o humano em profundidade também sobrevoando-o, a partir de um hipotético ponto de altura do qual é possível ter uma visão mais ampla, para além de todas as barreiras: culturais, geográficas, de gênero. Agora, graças à generosidade de tradutores e editores brasileiros, espero tocar em alguma alma para além barreira oceânica.