Figura marcante no cenário nacional, Péricles Prade é respeitado como intelectual, pesquisador, advogado e poeta com êxito em todas as áreas em que atua. Ao falar sobre a vida, diz que sua maior ambição é servir ao próximo e se confessa um apaixonado pela humanidade. No que tange sua obra é enfático: “Minha poesia é para iniciados”. Autor de dez livros de poemas, outros tantos no campo jurídico, ele construiu sua poética sob as bases do ocultismo, da cabala, dos mitos e de uma erudição que desafia e provoca o leitor. No final de 2003, ele comemorou 40 anos de atividade poética, lançando de uma só vez os livros de poemas Ciranda andaluz e Além do símbolo, ambos publicados pela editora Letras Contemporânea. Péricles, nesta entrevista, oferece a real dimensão do seu trabalho e fala sobre sua vida, obra e influências.
• Um escritor geralmente surge ou por influência familiar ou pela descoberta de um autor. Como se deu a sua iniciação literária?
Escrevi o primeiro poema aos nove anos, prosa poética aos 15 e conto aos 17. Não descobri autor, apesar de ler muito, que precipitasse o ato de criação, e a influência familiar foi de outra ordem. Lembro-me, apenas, que sentia (como ainda sinto) uma irreprimível necessidade de escrever, na realidade reveladora de vocação literária. Há, contudo, um responsável pela continuidade desse labor. Trata-se do falecido Gelindo Buzzi, professor de português e literatura do Colégio Rui Barbosa de Timbó, que me estimulou, orientando-me. Era um apaixonado pelo Romantismo, sendo esta Escola, portanto, a primeira forte impressão da estética de minha adolescência. Entretanto, fundamentais foram as leituras das histórias em quadrinho, os famosos gibis dos heróis e dos dominados. Conquanto não tenha iniciado por direta influência literária, esta existiu e existe no curso de minhas produções. Harold Bloom que o diga. Daí que, na poesia, registro Blake, Lautréamont, Rimbaud, Mallarmé e Eliot. Quanto à ficção, Nerval, Hawthorn, Kafka e Jarry. E envolvendo esses gêneros, como pano de fundo, o ocultismo e a mitologia. A influência é natural, desde que não usurpe ou contamine a originalidade. Borges não passou o tempo todo falando em Robert Stevenson, De Quincey, Cansinos-Assén, Macedônio Fernández e Walt Wittman? Nem por isso deixou de ser Borges, viceralmente.
• Allen Ginsberg, em sua primeira entrevista concedida a um jornal brasileiro (O Globo 4/8/91) dizia “me pergunto que papel a poesia poderá ter em meio a tanta destruição, tanto sofrimento promovido pelas grandes potências (…)”. Qual é o papel da poesia num mundo de grandes conflitos, bomba nuclear, fome, massificação e coisificação do homem?
O próprio Allen Ginsberg poderia responder a si mesmo, pois, segundo, William Carlos Willians, ele literalmente esteve no inferno. Aliás, basta ler Aullido para ser verificada esta realidade. Pois bem. Ainda assim, sobreviveu no universo poético. E por quê? Porque foi salvo pela fé na arte da poesia. Dito isto, percebe-se que o papel da poesia, no fundo, continua o mesmo, quer o mundo, ou não, viva grandes conflitos de expressão universal, coisificando o homem: ou seja, o da revelação da essência do cosmos individual e coletivo pela fé nessa arte, sendo tais fenômenos apenas pontuais temas para perpetuá-la. Afinal, a poesia é entranhado reflexo da vida, com ou sem o caleidoscópio dos horrores das guerras, ainda que considerada seja um enigma da natureza. E a natureza, já dizia Heráclito, ama ocultar-se.
• Seus livros de poemas Jaula amorosa e Pequeno tratado poético das asas (para ficarmos apenas nesses dois, por enquanto) são profundamente marcados pela mitologia, pela astronomia, pelo ocultismo. Há nessas obras dois fatores a ressaltar: a exigência de um leitor preparado e um evidente projeto-livro. Fale um pouco sobre esses aspectos e essas obras.
O livro Jaula amorosa, antes de tudo, é um Bestiário moderno, como havia o de Cristo, na antiguidade, imantado pela aura metafórica de vários animais viventes. Foram com prazer eleitos pela imaginação, iniciando-se com peixes imortais e terminando na cova de serpentes ociosas. São envoltos por uma explosão de imagens insólitas que não expressam, necessariamente, verberações ancoradas na dicção do surrealismo (atípico, no caso, se de escrita automática não se trata), fundando-se, com ênfase maior, nos territórios da mitologia, do ocultismo e da alquimia (além da temática de origem distinta), a exemplo do ocorrente nas obras anteriores, em especial Nos limites do fogo. São poemas, no entanto, as mais das vezes plasmados pela gramática da literatura simbólico-fantástica, suporte de meu universo arquetípico, inclusive na ficção, cujos traços de estranheza têm raízes marcantes na linhagem de extração visionária, sem ser poesia datada e propiciando também remissões líricas e/ou eróticas, plenas algumas de humor e ironia, mormente a de feição epigramática, prisioneira da infância baudeleriana reencontrada. O mesmo se diga com relação ao Pequeno tratado poético das asas, em que é mais evidente a propensão à estética da redução, verificada pelo consórcio-síntese de palavras nascidas sob a pulsão e a tensão em torno de um mito exclusivo, isto é, o Pássaro em sua evolução sagrada, revelando espécie particularíssima de hierofania. O Pássaro-mensageiro dos deuses e outros, que ora se confundem com o Destino, ora não, são tratados com visão metafísica, muito embora linear na construção pedagógico-edênica de suas identidades no transcurso do Tempo mítico. Aqui, sem o caráter disperso da Jaula, instaura-se o mythos como narrativa aplicada de que fala Burkert, por ser, concordo, simultaneamente uma metáfora ao nível da narração. Daí a relevância da linguagem poética para desvelá-la, à procura da verdade, da experiência do sentido (v. Campbell), do eterno e da compreensão do mistério. Afinal, faz anos, Cassirer já anotava que a mitologia é, na realidade, o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento em todos os planos do concerto espiritual. É onde entra a poesia, sem intrusão, se a mitologia é inerente à linguagem, reconhecendo-a como forma externa daquele pensamento, segundo a pontual formulação de M. Müller. Ambos os livros, como os pretéritos, vigem sob a advertência crítica de serem obscuros, herméticos. Bobagem. A obscuridade e o hermetismo somente prestam obséquio àqueles que não se esforçam para descobrir a lava incandescente sob esses vulcões representativos de uma poética de exceção em busca constante de epifanias. Nem por isso, guardadas as devidas proporções, o poema Prose pour Des Esseintes, considerado o mais obscuro de Mallarmé, deixa de ser extraordinário, para usar uma expressão de José Paulo Paes, seu tradutor. Exigem preparo intelectual, sim, por serem fruto de poesia para iniciados, conquanto desnecessária seja a erudição especializada, correspondendo a um projeto poético-existencial (já vislumbrado por Fabio Brüggemann). Há, neles, certa organização, ainda que febril, compreendendo quase sempre a junção orgânica de cinco poemas ligados a temas do calendário mítico-fantástico-oculto. Pretendo concluir o ciclo (a fim de me dedicar apenas à ficção) com o livro O retorno das serpentes (comecei a lavra poética a partir de ofídica concepção), concentrando-me no mito de Oroboros, a grande mediadora de minha vocação literária de poeta à margem da corrente, para não dizer xamânico ou maldito. E insisto, apesar de saber que vivemos num mundo desmitologizado.
• Campbell no livro A imagem mítica nos mostra que o poder do símbolo ainda nos acompanha. Você acredita que a desmitologização empobreceu a poética contemporânea? Ou o mundo da imagem fragmentada cria novas mitologias? E como você vê a poética atual?
Não há dúvida: o poder do símbolo ainda nos acompanha. Ocorre que o símbolo é apenas um dos elementos da mitologia e dos mitos, sendo os arquétipos, a teor do perfil junguiano, as idéias em comum com estes. Eu me referi à desmitologização enquanto tal, ou seja, a gradativa e crescente mudança do pensamento, que passou de selvagem, in illo tempore, a tecnológico, prevalecendo outro tipo de formas de pensar, inclusive no plano da poética. Houve, sim, apesar de modo difuso, um certo empobrecimento. Já quanto à criação de novas mitologias, decorrentes do mundo da imagem fragmentada, isto corresponde a uma possibilidade à maneira de Barthes. Mas não é destas mitologias que trato. Minha poesia, propositalmente, volta-se ao passado, dele extraindo imagens míticas, informada e enformada pelo envolvimento de natureza ocultista. No que se refere à condição da poesia atual, nota-se sua influência pelos ditames da modernidade ou da pós-modernidade, onde, repito, cada vez mais, o mito é posto à margem, centrando-se a linguagem a partir de outro ethos.
• Você diz acima que sua poesia é para iniciados. Isso não limita sua criação fazendo dela algo elitista? Ou sempre tivemos poucos leitores de poemas?
Sempre houve poucos leitores de poemas, mormente em nosso país pleno de analfabetos e desdentados, mais preocupados com a fome do que com a sabedoria. Todavia, em que pese essa realidade, minha poesia, ainda assim, é para iniciados, circunstância redutora do universo de leitores. Não que seja elitista, limitando minha criação. Pelo contrário, expando-a na medida em que procuro outros valores, alheio ao desenvolvimento frenético do capitalismo, inserido-me na linhagem das utopias possíveis, se permitido for a remissão a essa singularidade. O poeta deve escrever em função de sua compreensão do mundo e não recuar apenas por que certo tipo de postura engajada exige uma preocupação social exclusiva. Não nego a poesia social, respeito-a; entretanto, a linguagem inerente a minha expressão é de outro espectro. O social é exercido por mim no altiplano da Política, campo em que melhor ele se realiza.
• A crítica tem relacionado sua obra, sobretudo os livros Os milagres do cão Jerônimo e Alçapão para gigantes, ora dentro do surrealismo, ora do realismo fantástico. No entanto me parece serem livro demasiados cerebrais para serem enquadrados no Surrealismo germinal que pregava o automatismo. Como você encara a classificação destas duas obras?
Vários exegetas desavisados, realmente, embutiram estes dois livros na órbita do surrealismo. Estão enganados. A ficção por mim criada é vinculada à denominada narrativa fantástica. Para os que não sabem, o fantástico, segundo Todorov, é a hesitação experimentada por um ser que, conhecendo tão-somente as leis naturais, encontra-se diante de um acontecimento tido como aparentemente sobrenatural. Daí durar o tempo de uma hesitação. Na linha da concepção desse formalista russo, diria que minhas obras perpassam tanto pelo fantástico-estranho, quanto pelo fantástico-maravilhoso, resvalando, vez ou outra, pelo maravilhoso puro, por não ter, como o primeiro, nítidos limites. Muito embora a poesia, no meu caso, esteja de forma umbilical ligada à atmosfera da ficção, tem um viés de expressão surrealista, em determinados poemas, mas não se adstringe à escrita automática, enfatizada por Breton, afeiçoando-se a outro perfil de características dessa linguagem, entre as quais se hospeda a expansão do estado imaginativo, compreendida numa espécie de estética de excessos, para usar as palavras de Álvaro Cardoso Gomes. Seja salientada, então, a presença de um surrealismo mitigado, contido pelo trabalho posterior ao ato da criação. Enfim, o que sobra é mais o culto da imagem, mediante a intervenção da linguagem metafórica. Mesmo porque, se fosse fazer comparação com as artes plásticas, diria que as obras estão imbricadas por um tipo de cubismo poético, e não por um surrealismo típico, se considerada a descontinuidade de boa parte dos poemas, à espera do preenchimento do vazio pelo leitor atento.
• Até aqui você falou fundamentalmente de autores estrangeiros que, de certo modo, nortearam sua formação. E os nacionais?
A leitura e a releitura dos poetas brasileiros compreendem um périplo completo no que há de melhor no universo desses criadores, sendo visitados com mais freqüência Jorge de Lima e Murilo Mendes. Quanto a Jorge de Lima, agrada-me a fase formalista, em que se localiza Invenção de Orfeu, cujo único pecado, talvez, seja a pretensão de instaurar uma épica moderna. Contudo, vital na formação, sem dúvida alguma, foi Murilo Mendes, por mim considerado um dos maiores poetas da América. Para justificar a afirmação, invoco, como exemplares, O visionário, A poesia em pânico e As metamorfoses. Conquanto também tenha sido influenciado pela dicção onírica do surrealismo, sem desfigurar-lhe a fisionomia da obra, foi o seu cubismo poético (imantado pelo conceito de interpenetração espaço-temporal) que sempre me cativou, já que, da mesma sorte, possuo afeição (obsessão?) pela descontinuidade da expressão construtiva (pondo ênfase na força elíptica das imagens analógicas radicais, descompromissadas com a lógica do sentido comum) que, afinal, não é monopólio da pintura. Além do mais, encanta-me o signo escatológico, a visão apocalíptica do cosmo interior e exterior, onde se nota o predomínio de oxímoros amparados por metáforas de trajeto invertido (hiperbólicas) propiciatórias da presença de afinidades de perfil barroco. De outra parte, alinho-me ao uso do staccato caracterizador da medida econômica e autônoma de muitos versos, quando a miniatura se instala, mas contendo o macrocosmo representativo de uma cosmogonia singular, isto é, sem comprometer a originalidade. É nesse espectro que se catapulta minha imaginação.
• E a vida, Péricles, o que dizer dela?
Nasci em Rio dos Cedros, quando ainda pertencia ao Município de Timbó, a 7 de maio de 1942. Considero-me um homem realmente feliz. Possuo uma família maravilhosa, muitos amigos (alguns especiais), venci profissionalmente como advogado e sou respeitado como escritor e intelectual. Tenho a legítima pretensão de viver muito, se a saúde (por enquanto excelente) me permitir. Preocupo-me mais com a vida dos outros, no bom sentido, ajudando os que necessitam e na medida de minhas possibilidades. Meu maior prazer estético, para manter a felicidade, é escrever, ler e ouvir música, principalmente Bach e Vivaldi.
• Quem é Péricles Prade?
Um homem cuja maior ambição é servir, ciente de que a humildade é a maior virtude.