Fantástica sujeira

Entrevista com José Alcides Pinto
José Alcides Pinto: “Viver é uma coisa ligada ao sobrenatural. Assim é minha obra: o que sou e o que não sou”
01/11/2003

O cearense José Alcides Pinto carrega a polêmica nas veias. Sua literatura é feita de sobressaltos, de mistérios, do fantástico, do sobrenatural — como ele mesmo gosta de deixar bem claro. Como poucos, transita entre a poesia e a prosa com extrema desenvoltura. Tem uma vasta obra, na qual destaca-se Relicário pornô (1982), livro com lugar cativo na poesia erótica brasileira. Agora, a acaba de ser lançado Poemas escolhidos, uma excelente oportunidade para percorrer os versos deste poeta cearense tão inquieto e inventivo. Aos 80 anos, ele diz que está se despedindo da vida e da literatura. Conheça um pouco mais sobre José Alcides Pinto nesta entrevista concedida a Cláudio Portella

• Neste ano, você fez oitenta anos, mais de meio século dedicado à literatura. É destino? Olhando para trás, como você vê a sua obra hoje?
Não posso me queixar. Durante todo esse tempo, só fiz uma coisa útil em minha vida: ler (atabalhoadamente) o que me caía nas mãos. Ler e escrever obstinadamente, sem parar. Aos 14 anos (nasci gauche e didático), conheci os românticos: Casemiro, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Castro Alves, para não encompridar a lista; depois passei aos parnasianos: Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa etc. Daí por diante foi um pulo. Os simbolistas me fascinaram: Alphonsos de Guimarães e Cruz e Souza viraram livros de cabeceira, como mais tarde Augusto dos Anjos. Na maturidade (uma maturidade jovial), descobri os malditos, ou loucos iluminados, como se costuma dizer: Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Poe, e em tempos mais recentes Antonin Artaud, que passei para meus alunos da disciplina de Teatro na Universidade Federal do Ceará. Escrevo por uma necessidade orgânica e espiritual. Acredito que ninguém se faz escritor, como ninguém se faz ladrão ou homossexual. O cara nasce: Jean Genet que o diga, e outros autores famosos. Sartre não acreditava no destino, mas eu acredito. Temos horas certas para nascer e para morrer, para casar e descasar, para sermos tristes e alegres. Para mim, viver é uma coisa ligada ao sobrenatural. Assim é minha obra: o que sou e o que não sou. Não sei se envelheci, se estou vivo ou morto, não obstante tenho a consciência de que sou um escritor, um poeta, apesar de minhas limitações que não são pequenas. Mas até Machado dizia que tinha limitações. Se isso não serve de consolo, paciência…

• Sei que é um escritor completo, na acepção da palavra. Mas quem é José Alcides Pinto Poeta e quem é o Prosador?
Sei lá, porra, quem é José Alcides Pinto! E esse negócio de “escritor completo” é um chute nos colhões. Não sou tão modesto quanto Salvador Dali, mas tenho algumas luzes. E estas são minhas. Não carrego influência pesada de A ou B; me identifico, tenho confluência, talvez identidade (na poesia) com Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Poe, Bayron, Keats e Augusto dos Anjos, que por sua vez tinham de outros poetas. Na ficção me “encontro” com Conrad, Dostoievski, Jack London, Hemingway, Virginia Woolf, Faulkner, Kafka, Asturias, Camus, Gabriel García Márquez e alguns outros latino-americanos. Em verdade, não há bom escritor sem “marca”. Machado em alguns de seus livros quase copia Eça de Queirós, e nem por isso deixa de ser grande e até original. Madame Bovary serviu de modelo aos grandes romancistas de seu tempo. Enfim, fechando a pergunta: José Alcides Pinto poeta e prosador é uma coisa só.

• Conversando com o escritor Nelson de Oliveira, ele me disse gostar de sua prosa por ser cristalina. Relendo seus romances Trilogia da maldição, A divina relação do corpo, O amolador de punhais, Manifesto traído e João Pinto de Maria — Biografia de um louco, para ficarmos nesses, percebo que até certo ponto ele tem razão. Há pouca metáfora em sua prosa. O que me diz da metáfora? É inócua?
Que pergunta esdrúxula! Que idéia essa de Nelson de Oliveira! “Cristalina”? Minha prosa é muito suja, toldada, poluída, eivada de helmintos. Em minha ficção, como em minha poesia, não há isso não. Tudo é mítico e místico: fantástico, misterioso, sobrenatural. Trabalho com esses elementos: acrescidos de imagens icônicas. Trabalho com metáforas, símbolo e signo. E esses nada têm de cristalino: talvez magia, mistério, sonho e fantasia. Não existe arte sem metáfora. A própria linguagem é uma metáfora. Temos exemplo em Raduan Nassar (Lavoura arcaica). Mas isso não invalida a admiração literária e a estima que tenho por Nelson de Oliveira.

• Ouvi você dizer certa vez: “troco os miolos da cabeça, por miolos de pão”. Você se referia à crítica literária. Quem é o José Alcides Pinto crítico literário?
Mais um equívoco. Eu não me referia à crítica literária. Nesse caso, a pergunta não teria sentido. Referia-me, isso sim, a Humberto de Campos, que costumava dizer a seus amigos: Vivo trocando os miolos da cabeça por miolos de pão. Entenda-se: escrevendo para sobreviver. Humberto de Campos era muito pobre, não fosse a ajuda de seu conterrâneo Coelho Neto, não teríamos esse escritor brilhante e mordaz de Conselheiro XX. Outra coisa: José Alcides Pinto crítico literário não existe. Costumo dizer: faço crítica pagando dívida aos amigos.

• O escritor cearense Dimas Macedo, em recente entrevista, faz duras críticas à Academia Cearense de Letras. O que achei contraditório. Como alguém critica ferozmente uma academia fazendo parte dela? A pergunta é: como você vê a Academia Cearense de Letras (a mais antiga do país), em específico, e as academias em geral?
Como só me toca responder parte da pergunta, vou nessa. Nunca quis ser acadêmico. O poeta e jurista Cláudio Martins, que foi por várias gestões presidente de nossa academia, concedeu entrevista ao Diário do Nordeste dizendo que eu seria candidato sem concorrente. Claro que não aceitei. Antes dele outros me fizeram o mesmo convite. Eu acho que a academia não faz o escritor, o escritor é quem faz a academia. E eu não estou aqui para fazer academia para ninguém. O escritor se faz por si mesmo. A academia só atrapalha. Quem quiser ser forte que nasça viçoso. Não tenho nada contra os acadêmicos, muito menos contra as academias. Minha obra é incompatível com as regras acadêmicas. No que diz respeito à crítica do poeta Dimas Macedo, acho que ele tem o direito e a liberdade de discordar de seus pares. Isso mostra fidelidade à sua natureza e confirma a grandeza de seu espírito. Não vejo nada de mal nisso.

• A que atribui o grande sucesso de Os verdes abutres da colina?
À mídia. E a alguns críticos de visão. Depois, o livro entrou para o vestibular, circulou por dois anos, teve várias edições. Foi só isso.

• O que espera, hoje, com oitenta anos de idade, da literatura?
Parar por aqui. Se o que fiz não valeu, é porque jamais fui escritor. Mas sei que não serei daqueles que se enterram com a própria obra.

• Não vou fugir da pergunta. Até por que no caso, falo com ninguém menos que José Alcides Pinto. Quem são os maiores prosadores da atualidade? E os poetas?
Você quer me crucificar? Levante a cruz que eu abro os braços.

• Você é considerado o papa do concretismo no Ceará. Conte um pouco dessa estória.
Vim do Rio exclusivamente para fundar o concretismo no Ceará. Inicialmente a equipe era composta por mim, o pintor J. Figueiredo e o poeta Antonio Girão Barroso. Logo tivemos a adesão de quase todos os intelectuais da terra, principalmente dos poetas o mais importante de todos foi Pedro Henrique Saraiva Leão. Ele vinha do Instituto Brasil-Estados Unidos ainda muito jovem, com o conhecimento da cultura inglesa e de outras línguas, como o alemão e o francês, por exemplo. Mantinha um professor particular que lhe administrava aulas em seu consultório, em horas previamente marcadas, para não prejudicar a clientela. Ele sempre foi o mais erudito do grupo. Estudioso e dedicado à causa, traduzia textos e poemas de Ezra Pound, Joyce, Mallarmé, Apollinaire, Valéry e cummings. No Ceará , o concretismo mais do que em qualquer outro estado tomou vulto e espaço. Editamos Poesia em situação (ensaio crítico) do paulista Pedro Xisto, e em parceria a antologia Poesia Concreta Ceará-Minas. Dezenas de artigos assinados pelos melhores críticos do país foram escritos sobre o concretismo cearense, sem falar da numerosa correspondência que mantivemos com os irmãos Campos, Haroldo e Augusto. Fizemos várias conferências no Clube do Advogado, no Instituto Brasil-Estados Unidos e também nas faculdades. Concedemos entrevistas para os jornais Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, O Jornal, Jornal do Escritor, Jornal de Letras, Revista Leitura, e tantos outros. Nossa participação nessa frente de cultura levou Haroldo de Campos a dizer: “… a atividade de vv. em fortaleza continua a nos surpreender. com o material enviado por v. e pelo girão, preparamos uma reportagem sobre o front concreto no ceará, que sairá num dos próximos números da revista arte e decoração”. Editamos vários livros e antologias do grupo, e a Revista de Cultura Vozes, janeiro-fevereiro de 1977, dedicou a maior parte de sua edição ao movimento concreto do Ceará. Também Décio Pignatari em Teoria da poesia concreta (São Paulo, 1975) deu grande destaque ao nosso movimento. João Cabral em entrevista ao poeta e jornalista Félix de Atahyde diz: “O Concretismo foi a coisa mais importante que aconteceu na literatura brasileira, desde o romance do Nordeste, nos anos 30, e da grande fase criativa dos poetas que vinham do Modernismo (…) … Sobretudo porque, pela primeira vez na nossa literatura, as pessoas sabiam  que estavam fazendo (…) … os modernistas eram profundamente provincianos (…). Eles fizeram, em 1922,  o que o mundo fazia em 1909”.

• Na entrevista que concedeu ao Nilton Maciel, para a revista Literatura # 24, na qual foi capa, você fala em purificar sua alma, em destruir seus pecados, fala até que gostaria de escrever um manual de orações, um catecismo, em benefícios de todos. Você se arrependeu de ter publicado alguma obra ou estava brincando?
Não. Eu não me arrependo de nada do que fiz nem do que faço. Arrependo-me, isso sim, da vida “dispersiva” que levei na mocidade e da qual levo ainda. Acho que devia ter sido melhor voltando-me para a natureza e para a natureza humana. Pretendo, sim, destruir parte de meus pecados, voltado que me encontro agora para as coisas sobrenaturais e divinas.

• O sexo sempre foi assunto recorrente em sua obra. Você acha mesmo que o sexo é um tema tão importante assim, ou o amor fala mais alto? O que pergunto é onde fica o tema mais banal da literatura? Onde fica o amor na sua literatura?
O sexo é importante, muito importante, por sinal. Daí parte meu arrependimento. A desgraça do homem está no sexo, portanto na mulher. A mulher é um tóxico venenoso. Mas não podemos viver sem ela. Nem devemos, embora toda mulher seja promíscua, exceto as que não são. Edgar Morin dizia que todas as zonas da mulher são erotizáveis, mas esqueceu de dizer que as do homem também. O sexo tomou conta da minha literatura e da minha vida, e confesso isso sem pejo. Como já disse Ivan Junqueira: “A verdade, contudo, é que, tanto do ponto de vista estético quanto do ângulo existencial, José Alcides Pinto escolheu a transgressão como deusa e musa”. (Apresentação aos romances da Trilogia da maldição. Rio, Topbooks, 1999).

• Outra que não posso me furtar. Quem os melhores escritores cearenses da atualidade? E os brasileiros?
Me dou bem com os escritores cearenses, que são, por sua vez, os escritores brasileiros. Temos um relacionamento amistoso. São meus amigos. Não é consentâneo falar disso.

• Fale do romance em que está trabalhando, Panos ardentes?
Já não tenho mais interesse nesse livro, que imaginei ser o ápice de minha carreira literária. Estou “mudando de pele”, dando adeus ao mundo. Panos ardentes é um texto carregado de vícios, de maldição. Devo rasgá-lo, sim. Já conta com mais de quatrocentas páginas: riscadas, cortadas, ampliadas, cuspidas. Fim de papo.

• Marcelo Mirisola costuma responder: desista! Quando interrogado qual o conselho que daria a quem está iniciando na literatura. Qual conselho você daria?
Prossiga! Vocação, dom que Deus nos deu, não se troca, não se dá, não se negocia, não se divide. Tudo que vem da parte de Deus é bom, mesmo que venha sob a aparência do mal.

• Fale do seu polêmico Relicário pornô. Por que a Série Erótica — composta por No mundo das bocetas encantadas”, Bote a boquinha aqui” e Mulher se mija à toa” — não foi ainda editada? Ou foram substituídos pelo romance A divina relação do corpo?
Foi isso aí. A divina relação do corpo absorveu os livros por você citados. O Relicário pegou forte. Foi uma espécie de tornado que abalou os alicerces da sociedade e da cultura então vigentes no Ceará. Tivemos que desembainhar as espadas, lutar contra nossos próprios conterrâneos. Ganhamos espaços na imprensa e a adesão de grande sedimento da sociedade.  O Jornal O Povo dedicou ao Relicário um suplemento especial de oito páginas. Naquele momento, estava no comando um jornalista de visão, Lira Neto. E essa edição teve repercussão nacional. O Relicário saltou para o cinema, com o filme Sedutor fora de série, de Milton Alencar, protagonizado por Reginaldo Faria. O Relicário logo se tornou um livro popular. Rodolfo Coelho Cavalcante, o maior cordelista brasileiro, definiu em seu folheto o Relicário como ninguém jamais o faria:

Seu “RELICÁRIO PORNÔ
PROIBIDO AOS CASTOS”
É o imoral na moral
Seguido por outros rastros
Do pudor sem hipocrisia,
Sem aquela pornografia
Olhada pelos nefastos.

O que é pornô, em síntese?
É o amor descontraído,
É como o ósculo das Ninfas
Para o amor proibido,
É o deleite sensual
Sem o ninho conjugal
Da esposa com marido.

O Relicário, já em oitava edição, foi destaque na revista Ele Ela e diz o escritor Mauro Gama: “Alguns textos do José Alcides obtêm resultados inovadores, apesar do tom ainda machista”. O livro do escritor cearense é ainda indicado pela revista como opção de compra sob a frase “uma leitura excitante a cada página”. Também a revista Afinal, nº 15, registra em sua seção de livros, Relicário pornô “chega-nos com a terceira edição aumentada. O poeta e ficcionista, que é um dos nomes mais conhecidos da geração de 45 no Ceará, lança novos poemas eróticos para agitar ainda mais os setores conservadores da sociedade local. As duas primeiras edições se esgotaram em tempo recorde”. Para o escritor Gerardo Mello Mourão, “é uma das melhores contribuições brasileiras à literatura erótica da língua portuguesa” (Folha de São Paulo, 13 de fevereiro de 1983). Já Pedro Nava não deixaria por menos: “… Quem não identificará a poesia e da melhor, nos seus versos e sobretudo na sua ‘Cantiga’ que termina com aquele convite tão fabuloso:

Flor bonita é a da moça
como a do maracujá.
Roxa por fora, e vermelha
por dentro, se mergulhar.
Nas bordas que cor bonita
Nos cachos do pentelhar

Pentelhar é um achado soberbo. Um reencontro com o espírito da língua (em todos os sentidos que se queira)” (Jornal Diário do Nordeste, Fortaleza 1983).

Poemas escolhidos
José Alcides Pinto
Edições GRD
387 págs.
Cláudio Portella

É escritor, autor de Cego Aderaldo: A vasta visão de um cantador. Tem outros 12 livros publicados.

Rascunho