Por Andrea Ribeiro e Rogério Pereira
A literatura é a vida de Marcelo Backes. Dito assim, a coisa tende a parecer uma obsessão. Não é bem o caso, apesar de que cada resposta a seguir deixe transparecer o espaço generoso que os livros conquistaram em sua vida. “Hoje em dia a literatura é a minha vida. Ela inclusive me deu casa — em Ipanema — me dá comida e me dá roupa lavada”, diz com certa ironia nesta entrevista concedida por e-mail. Escritor e tradutor de literatura alemã, Backes não foge do combate, não tem receio de desagradar, sempre tem opinião para quase tudo, mesmo quando as respostas não passam de “especulação”. A seguir, ele comenta a sua literatura e o seu apego pelo autobiográfico, fala de manias e panelinhas literárias, de tradução, de religião e de sua constante briga com o mundo, entre outros assuntos.
• Em Três traidores e uns outros há muito de suas próprias experiências: o protagonista é escritor, tradutor, especialista em literatura alemã. Escrever sobre o que está mais próximo, sobre o que já se viveu, é mais confortável? É mais confiável como literatura? Ou é mais uma catarse?
Toda literatura é autobiográfica, alguns autores se escondem mais, outros menos. Outros ainda aparentemente se mostram a não querer mais pra alcançar mais eficiência no ato de se esconder, e acho que esse é o meu caso. Ademais, um escritor só consegue ser universal e profundo se for subjetivo, embora o fato de ser subjetivo não lhe garanta profundidade nem universalismo. Essa é, aliás, a grande tragédia não apenas da literatura, mas da arte contemporânea. Não acho que a proximidade aparente entre personagem, narrador e autor no meu caso tenha a ver com conforto ou com confiabilidade, mas com catarse certamente tem a ver. Se os escritores estivessem plenamente satisfeitos com o mundo real em que vivem, não criariam (não precisariam criar) um novo mundo na ficção.
• O seu ponto de partida ficcional será sempre a sua experiência pessoal?
Acho que será, porque acho que só se consegue falar com propriedade daquilo que se sente bem lá no fundo. Mas o personagem central de meu próximo romance é um treinador de futebol. Cézanne fazia um auto-retrato mesmo quando pintava seu jardineiro.
• Seu protagonista sempre tem problemas para dormir e o despertar, em cada capítulo, parece doloroso. O que tira o sono de Matias Nimrod?
O mundo lá fora e a alma aqui (ou melhor ali) dentro. A vida é dolorosa como um todo para o Matias Nimrod. Ele é um sujeito que jamais se satisfaz com o que tem, que vê na satisfação de um desejo apenas o degrau que leva ao próximo desejo, um idealista que acha que as coisas alcançadas ficam banalizadas tão-somente pelo fato de terem sido alcançadas, porque aquilo que é verdadeiramente grande jamais se alcança, no que aliás há também um profundo ceticismo em relação a si mesmo e seu valor. Além disso, é um fracassado, um amargurado, que nem sequer vingou naquilo que mais queria — sua arte — e volta suas armas contra o mundo e contra os outros por causa disso, o que acaba lhe tirando o sono e mostrando que, apesar da dureza que proclama aos quatro ventos, tem uma grande fragilidade por dentro. Nimrod é, aliás, o nome do construtor da Torre de Babel — Nembrotto, em italiano, está lá, na Divina comédia, entre outras fontes.
• À página 13 de Três traidores, lê-se que “o plano é só uma maneira de fracassar com mais voluntarismo”. O seu romance é, entre outras possibilidades, sobre o fracasso do protagonista na vida pessoal e profissional. Toda literatura também é uma maneira de “fracassar com mais voluntarismo”?
Acho que sim, porque a grande satisfação provavelmente não será alcançada jamais, no meu caso, ainda que Matias Nimrod seja o autor da frase. Mas eu mesmo também já escrevi — e acho que isso explica algumas coisas — que o negro, negro sangue do meu matadouro interior, é a tinta que o papel lambe, pra apagar em vão minha dor. Difícil falar disso, tenho a impressão de ser um compositor que, ao ser questionado, explica com uma sinfonia algum detalhe de sua ópera anterior.
• Quais são as suas obsessões literárias?
Acho que a única é ter mais tempo pra escrever, embora eu goste de traduzir, de editar minhas coleções, embora goste muito de dar minhas aulas na Casa do Saber e nos meus grupos de estudo aqui no Rio de Janeiro. Quando escrevi maisquememória, por exemplo, eu ainda tinha uma grande obsessão, revelada na pretensão objetiva de escrever um romance umbilical contra os romances umbilicais. Por isso fiz meu personagem sair pelo mundo a cavalo sobre si mesmo para lutar contra todos os moinhos de vento com que se deparava, protegendo seu umbigo velho, donzelo e órfão de todo o tipo de malfeitores que cruzavam seu caminho. Mas até dessa obsessão eu abri mão, ainda que Três traidores não termine por acaso com a palavra “umbigo”.
• É possível classificar literatura geograficamente? Por exemplo: quão próximas ou quão distantes estão as literaturas contemporâneas brasileira e alemã? Qual lhe agrada mais?
Não vou ajuizar gostos, mas atualmente é maior o número de autores alemães dos quais gosto do que o de autores brasileiros, coisa que explicarei objetivamente até o final da resposta. Difícil dizer algo sobre proximidade e distância, acho que o processo literário está tão globalizado que as mesmas manifestações orientam, de um modo geral, as literaturas no mundo inteiro, aqui no Brasil com algum atraso, ainda. Modas americanas que já foram deixadas de lado há tempo na Alemanha, por exemplo, continuam imperando aqui. A grande diferença reside no fato de que na Alemanha um escritor tem uma perspectiva real de sobreviver — economicamente — com estilo, pois o sistema literário funciona muito bem com seus prêmios, suas bolsas, suas casas literárias, suas editoras. Isso acaba produzindo uma grande quantidade de escritores e essa grande quantidade gera uma possibilidade maior de alguma qualidade — que efetivamente se concretiza na Alemanha.
• As tecnologias avançam com voracidade sobre o mercado editorial, principalmente com o fortalecimento dos e-books e similares, além do já consolidado poder da internet. É possível medir o impacto destas tecnologias sobre a literatura e os leitores? Está realmente surgindo um novo tipo de leitor, ou ele sempre será o mesmo independentemente do suporte?
Não tenho capacidade de responder a essa pergunta com conhecimento de causa, posso apenas especular. Na condição de fetichista, eu lamentaria o fim do livro tradicional, na condição de dono de uma biblioteca, vejo as prateleiras tomando conta da casa e penso todos os dias na imensa vantagem de um tablet. O leitor certamente muda, assim como a perspectiva do escritor muda. Acho que, ao final das contas, isso faz com que haja um dinamismo simétrico entre autor e leitor que de certa forma repete um mesmo esquema, sob novas condições, desde a invenção da imprensa — não contados os processos de democratização do acesso, etc. De qualquer modo, me parece que há uma grande chance de os nichos — em todos os sentidos — adquirirem valor, porque a busca do “produto” será cada vez mais “livre” e “especializada”. Mas talvez isso não passe da ilusão de um pessimista.
• Quais manias literárias mais o enfurecem?
Eu não me enfureço mais, mas acho desprezível a mania das panelinhas que, por exemplo, decidem — quase sempre sem critério — que determinado autor será alçado aos píncaros de repente. Essa mania, se é que é uma mania, até me causa asco. Sou profundamente romântico na questão; acho que o artista é um eterno e solitário perseguidor de fantasmas, que alcançará — ou não — o universo e a eternidade a partir daquilo que tem a dizer recolhido com seus próprios botões, cultivando sua solidão.
• O que veio antes para o senhor: a tradução ou a vontade de escrever? E em que medida traduzir ajudou em seu trabalho como escritor?
A vontade de escrever. Virei tradutor por circunstâncias de ordem objetiva e por um certo iluminismo ingênuo que, em determinado momento, se deu conta de que havia obras maravilhosas que ainda não haviam chegado ao leitor brasileiro e quis suprir lacunas. Eu comecei a escrever ficção bem cedo, quando comecei a escrever. Registrava minhas impressões sobre o mundo e sobre as pessoas em notas de caderno que já tinham o arcabouço que só muitos anos mais tarde vim a saber que era aforístico, e desenvolvi mais especificamente em Estilhaços. Eu também media e registrava em passos as distâncias da minha casa até a escola, da minha casa até o campo de futebol, da minha casa até o cemitério, fazendo comentários a respeito do trajeto. Enfim, registrava tudo que me dava na telha, que me incomodava, que me fazia querer ver o mundo por trás das montanhas que cercavam o lugarejo provinciano onde nasci. Traduzir me ajuda como todo exercício exaustivo de alguma atividade ajuda no desempenho da mesma atividade. Mas nada mais que isso. Às vezes penso até que traduzir me atrapalha, porque exaure parte da minha capacidade criativa, e até chego à conclusão de que seria preferível ser escritor e pistoleiro, por exemplo.
• Traduzir é vestir-se com a pele de outro. Como fazer para que a pele surgida na obra publicada não se misture com a do tradutor? É possível despir-se totalmente de suas idéias e entregar-se às de um escritor completamente diferente de si mesmo?
Para evitar a mistura, o caminho mais seguro é seguir o verbo, respeitar a palavra. Eu sou um defensor da tradução palavra por palavra, embora ache que — por outro lado — o livro traduzido deva reproduzir exatamente o ritmo, o tom e o clima do livro original. Quando isso se perde a tragédia é grande. Veja-se, por exemplo, o Felix Krull de Thomas Mann, que não é engraçado em português. Eu acho que temos de nos despir de nossas idéias quando traduzimos e mergulhar no mundo de outro, assumindo sua identidade. Fiz uma experiência drástica nesse sentido, que foi traduzir os 54 contos de 54 autores diferentes compilados em Escombros e caprichos, uma coletânea do conto alemão do século 20 que organizei. Lendo-a, o leitor perceberá que Musil é bem diferente de Grass, que Elfriede Jelinek não tem nada a ver com Karen Duve, ainda que todos tenham passado pelas mãos de Marcelo Backes.
• Tradutores são traidores de quem: de si mesmos ou dos objetos de seu trabalho? E os escritores também são traidores?
Fazer arte é trair. Pra começar, é trair o mundo em que vivemos. É a insatisfação com o mundo em que vivemos que torna possível — para os outros — e necessária — para o artista — a criação de um outro mundo. E se declarar moralista, dando laivos morais a um conceito como traição em questões tão cabais como essa, seria o fim da picada. A questão da tradução é, aliás, a parte em que o narrador-personagem certamente mais se aproxima do autor — nessa confusão babélica que já é tão antiga —, em que a simetria entre ambos é bastante grande. Acho que, inclusive, ao ler Três traidores se pode esboçar, em largas pinceladas, uma espécie de teoria Marcelo Backes da tradução, que não deixa de ser polêmica, às vezes.
• Ainda sobre tradução, o protagonista de Três traidores afirma que o tradutor deveria deixar de ser mero “intérprete das expectativas do leitor” e que “muito antes de levar a obra ao leitor, deve trazer o leitor à obra”. De maneira geral, agrada-lhe o nível das traduções no Brasil, nossos tradutores conseguem “trazer o leitor à obra”?
Acho que o nível da tradução tem melhorado, inclusive porque os tradutores mais críticos estão deixando de ser meros intérpretes das expectativas do leitor e, aos poucos, estão dando mais atenção à arte da obra original que ao gosto do leitor da tradução. Deixam complicado o que está complicado, e mantêm poeticamente obscuro o que é poeticamente obscuro. Muito além de questões que sempre soam um pouco moralistas — não são poucos os que se arrepiam quando se fala em traição —, acho inclusive que a simplificação da obra de arte não ajuda nada no sentido de torná-la mais compreensível.
• Na epígrafe de Três traidores… o senhor cita Paulo Leminski: “um homem com uma dor/ é muito mais elegante”. O sofrimento emocional ou físico é pré-requisito para a construção de bons personagens e, conseqüentemente, de boa literatura? O escritor com uma dor também é mais elegante?
Eu, pra mim, não tenho dúvidas a respeito disso, mais em relação à necessidade do sofrimento para produzir boa arte do que à hipótese de um escritor com uma dor ser mais elegante. Fato dado e acabado: quando estou feliz, quando não me abalo, quando não tropeço, eu simplesmente vivo o mundo que me é dado, sem tentar me refugiar em outro. Só a falta, a carência, o tremor é que levam à criação.
• O senhor acha que existem obras verdadeiramente originais, ou tudo é uma mistura de referências (livros, filmes, músicas, quadros…)?
Essa é uma questão pouco importante, do contrário ninguém teria se aventurado mais a escrever depois de, digamos, A divina comédia, de Dante. Depois de Shakespeare, então… O autor tem de dizer de um jeito novo o que já foi dito, na medida em que tudo já foi dito. Eu tenho a séria impressão de que Em busca do tempo perdido, de Proust, e O homem sem qualidades, de Musil, disseram, juntos, absolutamente tudo que se pode dizer acerca do ser humano e seu universo — interior e exterior. Proust partindo da alma aqui dentro para o mundo fora, e Musil partindo do mundo lá fora para a alma aqui dentro. Esquisito, isso, mas acho que é assim mesmo, um movimento semelhante, grandioso, completo, mas oposto. Depois deles, só nos resta acreditar na peculiaridade de nosso jeito de dizer as coisas, na mudança do mundo e da perspectiva, e tentar chegar perto da profundidade que os dois alcançaram.
• O narrador de Três traidores diz que “além da religião, no terreno laico do cosmopolitismo, o mundo funciona bem melhor”. O senhor concorda com esta afirmação? As religiões mais atrapalham do que ajudam no funcionamento do mundo?
Tenho certeza de que sim, ainda que imponha limites à minha própria consideração, lembrando Goethe: quem não tem arte, nem ciência, que tenha pelo menos religião.
• Quais os seus artifícios para ganhar a confiança do leitor? Ou o senhor prefere um leitor eternamente desconfiado?
Eu não uso, pelo menos não tenho consciência de usar artifícios para ganhar a confiança do leitor, e por certo prefiro um leitor desconfiado; acho, inclusive, que meus livros devem ser lidos contra o narrador. Se eu fosse, humanamente, como meus narradores foram até agora, eu cometeria suicídio prendendo a respiração.
• Quais são os livros que mais influenciaram sua escrita? Como se constitui a sua biblioteca afetiva? Quais os personagens inesquecíveis?
Os livros que mais me influenciaram provavelmente tenham sido os de Heinrich Heine. O jeito que ele encara o mundo lá fora e a alma aqui dentro é o mesmo jeito que eu penso encará-lo. Na minha biblioteca afetiva suas obras se encontram ao lado das de Montaigne e de Sterne, das de Musil e das de Proust, que mais que personagens, recriaram uma vida inteira, um mundo perfeitamente acabado. Os dois personagens mais inesquecíveis pra mim são o príncipe Míchkin, d’O idiota de Dostoiévski, e Adrian Leverkühn, do Doutor Fausto de Thomas Mann.
• Como foi o primeiro contato com a literatura? E o que ela representa atualmente em sua vida?
Meu primeiro contato com a literatura foi bem cedo, minha mãe lia muito pra mim e, segundo ela, leu muito durante a gravidez e quer — justamente, segundo meu afeto — seus créditos por isso. Com quatro anos eu li meu primeiro livro, chamava-se A patinha mexe-mexe, e nunca investiguei para saber de quem era, se era importante, se era banal. É um desses mistérios que não faço nenhuma questão — muito pelo contrário — de resolver. Ainda hoje me lembro da história. Eu a sabia de cor, aprendi a ler pela repetição; um dia me assustei, eu mesmo, quando peguei outro livro, eu sabia ler, foi uma das coisas mais mágicas que me aconteceram. Para o bem e para o mal, porque sou daqueles que dizem, diante das Cataratas do Iguaçu: que pena que Flaubert não as descreveu, pois assim eu poderia achá-las belas. Hoje em dia a literatura é a minha vida. Ela inclusive me deu casa — em Ipanema — me dá comida e me dá roupa lavada.
• O caos do mundo o assusta na caminhada inevitável rumo ao esquecimento?
Pergunta misteriosa, apocalíptica. Eu não sou teleologista, não acredito que o mundo caminha para uma situação melhor e acho que esse foi o grande erro de um dos seres humanos que melhor o interpretou: Karl Marx. Mas também acho que o ser humano sempre encontrará uma maneira de sobreviver, na medida em que ainda puder decidir a respeito. Sobreviver precariamente, mas sobreviver. No âmbito particular, a vida é uma luta — pouco importa se vã ou não — contra o esquecimento. Quero pelo menos poder dizer, ao fim das contas, eu tentei.
• Como é o seu método de criação? Há uma rotina de trabalho, manias, esquisitices, rituais?
Não há rotina, nem manias, esquisitices ou rituais, a não ser, talvez, a necessidade de ter quatro paredes confiáveis dando moldura à minha fantasia. Eu funciono assim: anoto durante anos, às vezes, vou registrando tudo em anotações de cunho aforístico e num momento de culminância me sento pra escrever, pra redigir, praticamente. E no processo redacional as coisas ainda podem mudar muito em relação ao esboço inicial. No momento da escrita, eu me abro, na mais absoluta solidão, pra todos os fantasmas que persigo.
• O que o senhor espera alcançar com sua escrita?
Brigar com a língua e o mundo, e me entender comigo mesmo, por segundo. Subir o cerro, da superfície de um lago, o do passado, sem nenhum desespero. Contar a saudade do sangue quente da realidade. De novo estou me sentindo como aquele compositor, de repente mudo, que tenta explicar, desta vez com três sonatinhas, o significado de sua ópera.