Gonçalo M. Tavares escreveu certa vez que “as melhores infâncias duram décadas”. Para o escritor e sociólogo Marcelo Coelho — membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo e colunista do caderno “Ilustrada” —, durável, ou mesmo eterna, não seria exatamente nossa infância, e sim nossa infantilidade. Assim, esse amadurecimento tardio beneficiaria principalmente a indústria cultural, que desde a década de 1930 nos vem fornecendo, entre tantos outros, um dos mais perfeitos modelos de adulto infantilizado de que já se teve notícia: o Pato Donald. A indústria do entretenimento, aliás, é apenas um dos temas do ótimo Patópolis, livro de complexa catalogação, lançado por Coelho em 2010. Memória, ensaio, romance? Difícil definir. O autor parece apreciar mais os fluxos verbais, plenos de idéias e imagens, do que as tramas lineares; e é com uma prosa segura e atraente que nos apresenta o desenho híbrido de suas lembranças e de seu pensamento. Patópolis, portanto, é uma investigação íntima que se expande e acaba por jogar alguma luz, enviesada, a partir do Brasil da segunda metade do século 20, por sobre a sociedade ocidental contemporânea.
A obra denuncia — sem pretensões persecutórias, fique claro — a intolerância que hoje cultivamos em relação ao tédio, “esse doce complemento do ócio” do qual Coelho ensaia uma defesa original, e também discorre sobre a ausência de Deus nos lares de Patópolis, a indiferença de suas criaturas frente à morte de seu criador e o componente ficcional ou convencional inerente aos conceitos do dinheiro e, conseqüentemente, da riqueza. Na entrevista abaixo, concedida via e-mail, o autor retoma esses assuntos e aproveita para falar a respeito da utilidade da literatura, de suas primeiras leituras e de seus autores prediletos — “Stendhal contra Balzac, Tolstói contra Dostoiévski” —, jamais esquecendo que nossa memória afetiva não deixa de ser, infelizmente ou não, uma grande “prisão afetiva”.
• Numa entrevista à Folha de S. Paulo, por ocasião do lançamento de Patópolis, você disse que, embora sempre tivesse pensado um pouco como adulto, nunca deixara de pensar como criança. Num bom momento de seu livro, lemos que “a infância, bem ou mal, é eterna”. Que criança é esta que, hoje, nunca nos abandona, e qual a participação da indústria cultural em sua educação?
Gosto de uma frase de Fontenelle, que a propósito da eleição de um colega seu para a Academia Francesa observou: “Há chocalhos para todas as idades”. A “infantilidade”, talvez, mais do que a infância, certamente é eterna, no sentido em que, por exemplo, um adulto se aferra a seus bens, a suas pequenas vitórias, a seus orgulhos; berra e esperneia quando o frustram, por exemplo. Engana-se demais; é crédulo o tempo todo — nesse sentido somos “naturalmente” infantis, sendo que o processo de amadurecimento consiste acima de tudo em controlar/disfarçar essas características, mais do que substituí-las por outras. Isso do ponto de vista mais geral, “antropológico”, pelo menos como eu entendo o jeito com que somos. Agora, é claro que a indústria cultural, a sociedade de consumo etc., agem diretamente sobre essa fraqueza de nós adultos, tornando-nos ainda mais incapazes de superar nossas infantilidades. Uma fábrica de chocalhos, e há muitas por aí, certamente não teria interesse nenhum em fazer com que aquela frase de Fontenelle fosse abandonada. Carros, relógios, novidades cinematográficas em 3D, naturalmente tudo isso é programado para ser objeto de desejo e para ser substituído por outro no ano seguinte. De certa maneira, então, os velhos desenhos animados da Disney, os contos infantis, tudo aquilo que líamos e víamos aos seis anos de idade, revelam muito claramente, penso eu, aquilo que somos, lemos, vemos e desejamos aos 36 ou aos 60 anos. A graça do Pato Donald é justamente essa, a meu ver: o adulto infantilizado, vestido de marinheiro, do modo exato com que a indústria cultural gostaria de vê-lo e criá-lo. Acontece que esse Donald é ele próprio produto da indústria cultural, e nós, que somos nostálgicos de seus quadrinhos, aspiramos a retornar àquela inocência que nos permitia ler as revistinhas com grande encantamento. Fico pensando se aquelas revistinhas não são as nossas “madeleines” proustianas, que inutilmente depois iremos procurar reviver em novas músicas pop, novos filmes policiais, nova literatura de consumo…
• Naquela mesma entrevista, você afirmou não saber se “a dificuldade de maturação” seria um dos temas de Patópolis, ou se o livro seria um sintoma dessa dificuldade. E disse: “Adorno estaria denunciando a regressão de nossa época; eu estou me debatendo com isso e desfrutando”. Como se dá esse desfrute?
Bem, acho que todo leitor de Adorno já se incomodou um pouco com a sua intransigência, com a sua falta de humor. Falta de humor? Talvez certa falta de ternura, que o impede de fazer, por exemplo, como Barthes e Benjamin, para quem o prazer (intelectual ou físico) traz certa perspectiva de redenção.
• O mundo real teria realmente se tornado uma espécie de simulacro de Patópolis (ou Bedrock, Orbit City ou Gotham City)? Será que acabamos todos de certa forma mimetizando o comportamento dos personagens que acompanhamos na infância? No romance A misteriosa chama da rainha Loana, Umberto Eco segue ideia semelhante: seu protagonista, Yambo, desmemoriado, reconstrói sua história pessoal ao revisitar os gibis e os livros que lia quando criança. Somos nossa memória afetiva?
Não conhecia o livro do Umberto Eco, não… Não iria tão longe ao dizer que o mundo real se tornou isso. Acho mais provável dizer que, de um certo ponto de vista, tudo se passa como se estivéssemos em Patópolis. É esse ponto de vista, meio alucinatório, que me parece especialmente convincente no dia-a-dia, e do qual, entretanto, eu gostaria de me libertar. Nossa memória afetiva é também uma prisão afetiva, eu acho… Pelo menos, minha sensação pessoal é a de que as lembranças do passado me fazem um mal danado, me pegam a todo instante na curva.
• De que forma você se aproximou da literatura? Foi por meio das HQs? Quais foram as suas primeiras leituras?
Sem dúvida, foi através dos quadrinhos, primeiro Donald, depois Fantasma, Mandrake, Batman, que me levaram para o mundo da palavra escrita. Outra forte influência literária para todo mundo, e que raramente é mencionada, mas que vejo nos meus filhos de seis e oito anos, é a linguagem da televisão, da dublagem. O português da dublagem é muito literário: uma criança de cinco anos já diz, por exemplo, “salve-me!”, de modo que a colocação dos pronomes não deixa de ser um componente essencial, insubstituível do universo ficcional…
• No mundo de hoje, a idéia de “entediar-se” é quase tão negativa quanto a de “fracassar” ou “desistir”. Nesse sentido, sua “defesa do tédio” — ao discorrer sobre a leitura que Donald fazia de um livro intitulado Contos chatos — torna-se ainda mais interessante. Você define o tédio como um “doce complemento do ócio”. Mais adiante, retornando ao tema, lemos o seguinte: “O tédio tem suas compensações morais, sua modéstia, sua santidade até”. Faltaria ao indivíduo de hoje certa tolerância ao tédio?
Bem falado! Acho que é justamente a partir daí que a indústria cultural se torna produtora de artigos de primeira necessidade.
• Ainda em relação ao Donald leitor, em Patópolis você rememora uma história em que Patinhas, para proteger seu dinheiro, tem a idéia de construir uma biblioteca infantil onde esconder seus dólares — encadernados e “disfarçados” de livros. Como provavelmente ninguém nunca os leria (e muito menos os Metralha), sua fortuna estava mais que segura. Partindo do Império Disney, construído em parte sobre o sucesso monumental de suas revistas em quadrinhos, a piada soa quase como uma ironia. O que ela lhe parece?
Outro tema do livro, que se encadeia bem na sua pergunta com as questões que vínhamos discutindo, é o de que o dinheiro, afinal, tem um componente ficcional, ou pelo menos convencional muito forte. Quando o Ocidente abandonou o padrão ouro, passando a adotar o dólar como referência, e quando o dólar passou a valer só por si mesmo, depois da decisão do Nixon, em 1971, de não atrelar a moeda americana a nenhuma reserva “real”, a idéia do “papel pintado”, do “vale porque eu digo que vale”, fica parecendo a mim, que sou leigo nessa matéria, uma espécie escancarada de conto da carochinha. Não por acaso, a partir mais ou menos dessa mesma época, começou a moda dos intelectuais dizerem que “a realidade não existe”, e bobagens desse gênero. Nesse sentido, apesar da “forma” meio pós-moderna do meu livro, acho que Patópolis, ou pelo menos o seu autor, não tem nenhuma complacência com esse tipo de prestidigitação sofística que nega a realidade, considera tudo um fato de linguagem etc…
• Em outro trecho de Patópolis, você cita Sartre: “O homem é uma paixão inútil”. Para você, a literatura tem alguma utilidade? Que papel ela desempenha na sua vida, como autor e como leitor?
Acho que todo mundo que tentou dar uma cantada numa mulher, e viu seu esforço dar errado, ou dar certo, percebe plenamente a utilidade da literatura. A frase do Sartre entrou no livro meio de contrabando, porque na verdade não sei exatamente o que ela significa ou quis significar. O papel da literatura na minha vida, até pela relativa infreqüência das cantadas, ficou mais importante do que quase qualquer outra coisa do mundo; foi sempre a minha potência, a minha forma de ser adulto. Comecei a ler e a escrever muito cedo, numa família em que todos eram muito mais velhos do que eu, de modo que minha “integração” na própria família, na vida e no mundo dos afetos se deu pela fraseologia, pelo vocabulário, pelo estilo. O que não quer dizer, necessariamente, pela imaginação, pelo ímpeto de ficcionista, que não possuo em demasia.
• Em seu livro, há um momento que relata a estratégia de divulgação da morte de Disney, nos anos 60. Depois de afirmar que “a morte de um criador nada significa”, você mostra ao leitor que tudo continuará a ser como era, agora numa rotina imutável de condenação: “Patinhas não morrerá. Donald está condenado à mesma roupa de marinheiro. Mickey será de Minnie o noivo eterno”. O que você pensa a respeito de Deus?
E aí chegamos a outro tema importante de Patópolis! Em primeiro lugar, não acredito, sou absolutamente ateu. Deixei de acreditar exatamente no dia em que um amigo meu conversou sobre a sua teoria, revolucionária para mim, de que Papai Noel não existia — apenas os nossos pais deixavam o presente sob a árvore. Eu não tinha “provas” de que o que ele falava era certo, mas me pareceu óbvio, transparente, que isso era verdade e que a existência de Papai Noel não se sustentava. Daí para Deus, a conclusão era automática. Sinto muita falta de Deus, é claro; já senti mais, aliás. Em todo caso, a dor dessa inexistência está presente de muitas formas em Patópolis.
• Falando em criadores, quais são os seus autores favoritos, e que, de certa forma, dialogam com a sua obra?
Proust foi para mim a maior revelação, quando eu tinha 19 anos. O espírito de Montaigne, de Voltaire, estava presente até mais cedo, acho. Vou muito nessa direção, a de Stendhal contra Balzac, a de Tolstói contra Dostoiévski.
• Para Disney, a natureza era uma fonte de inspiração mais rica do que a imaginação humana. Acreditando nisso, ele optou por investir num realismo visual impressionante, com a intenção, talvez, de conquistar a credulidade de seu público para, em seguida, “surrealizar” a natureza à sua maneira. Dentro desse processo, suas criações — quase todas — foram extremamente influentes. Branca de Neve, por exemplo, um personagem dimensional, irreal, se tornou o ideal de beleza oficial para muitas mulheres da década de 30. De que forma Disney o influenciou, pessoalmente?
Talvez você esteja pensando principalmente nos filmes de animação dele, que sem dúvida são o seu lado mais artista. Para mim, a influência foi no lado mais cômico, mais das histórias em quadrinhos mesmo. Na verdade, a influência é mais de Carl Barks, o grande autor das melhores histórias de Donald e seus sobrinhos, do que de Disney.
• Você começou a escrever Patópolis cerca de 15 anos atrás. De lá para cá, a idéia do livro mudou muito? Que livro você queria escrever no meio da década de 90, e que livro acabou escrevendo no final da primeira década do terceiro milênio?
Como sempre, eu imaginava escrever um livro maior, que abordasse mais aspectos ainda a respeito do mundo de Patópolis. Mas percebi que o livro tem mais o aspecto de uma intuição do que de uma visão completa de mundo; nesse sentido, estava condenado a ser mais curto. O problema, uma vez estabelecida a sua dimensão, estava em saber qual percurso o texto deveria ter, uma vez que a narração pura e simples — nascimento, vida e morte de um personagem, por exemplo — estava descartada. Minha esperança, enquanto eu escrevia, era chegar a um final bastante “apoteótico” e redentor, um pouco como acontecera no meu primeiro livro, Noturno. Foi só bem tarde, na elaboração de Patópolis, que percebi, a contragosto, que o livro tinha de terminar “para baixo”, de forma depressiva, mais como derrota do que como salvação. Não é uma atitude que eu tenha diante da vida, a depressiva, mas esteticamente era a que funcionava ali.
• Você publicou recentemente um artigo sobre a polêmica de Monteiro Lobato. Já que abordamos a construção de nossas memórias, de nossa personalidade e de nossa sociedade a partir dos personagens que nos foram caros na infância, gostaria que você falasse a respeito da influência que o racismo de Lobato pode ter surtido nas gerações que o leram durante todo o século 20.
Ah, acho que nenhuma. Eu pelo menos percebia claramente o preconceito contra Nastácia, coisas de “beiçorra” para baixo, quando eu lia aqueles livros na infância. Passa-se por cima disso, porque Lobato não é a Bíblia, e nenhuma criança lê seus livros achando que aquilo é a Verdade revelada. O bom de seus livros é que, a partir da Emília, se aprende logo a questionar, a contestar, e Monteiro Lobato não escapa de ser analisado pelas crianças que o lêem.
• Quais são os seus votos para este Ano do Coelho?
Que se dê muita atenção aos patos e camundongos.