“Estar na minha época não é estar com ela”

Entrevista com Jaime Vaz Brasil
Jaime Vaz Brasil: “Não acredito em literatura catártica, aquela de esvaziar a alma”
01/12/2002

• Inventário de Cronos trabalha um único tema — o tempo — em cinco cantos. Essa clássica investigação de um elemento é uma homenagem a uma vertente da poesia brasileira que emergiu na década de 60 e se firmou nos anos 80. O senhor se considera herdeiro de uma poesia de cunho filosófico? Quais são seus parentes fora do sangue?
Quando abri o Inventário, Cronos não estava lá. Nem seus representantes. Encontrei só um pergaminho invisível. Busquei meu nome. Não encontrei. E não consegui ler nada sobre a herança. Diabos. Pelo menos, ninguém estava olhando: entrei clandestino no porão, enquanto Cronos se fingia de morto em algum outro planeta. Assim, não sei se posso me considerar herdeiro: estava escuro lá embaixo e o pergaminho, além de invisível, fugia de mim como as frutas fugiam das mãos de Tântalo. Mas cada vez estou mais convencido de que poesia é irmã da filosofia. Mais que isso: uma é a outra, com formas diferentes. T. S. Eliot e Otto Maria Carpeaux citam esta vertente — filosófica — como rara. Entre outras razões, por difícil. Então, não posso eu dizer-me nesta ou naquela vertente. Talvez na primeira estiagem, os afluentes sequem e eu não chegue a montar meu casebre poético sequer numa sanga rasa, quanto mais em um rio com vertentes. Existir já está ótimo. Uma voz no meio de outras tantas, e melhores. Porém, estamos falando de Inventário e me perguntas dos parentes fora do sangue. O primeiro poeta que descobri foi Luiz Coronel. E não entendo porque ele não é estudado como merece. Depois descobri outros tantos, e não cito um por um porque temo deixar de fora metade dos parentes. Ainda mais no meio desse inventário. Como professor, quem me ensinou a revisar os poemas foi Armindo Trevisan. Nunca conheci alguém tão apaixonante e apaixonado por poesia. Costumamos, de tempo em tempo, tomar café da manhã (segundas-feiras) em um barzinho de Porto Alegre. Café com leite, pão e manteiga. Sobre a mesa, os poemas riscados, pensados e repensados. Suco de laranja também comparece. E o Armindo amado, armado sempre com aquela pasta, onde está toda a poesia desde que inauguraram o oco do mundo.

• Goethe dizia que o tempo é o espaço. De certa forma, Inventário de Cronos mostra que há dois tempos: um morto, feito de mitos, e um outro vivo, o da linguagem. Tenta mesmo combater o tempo morto que é o espaço? Como reage a sua época?
Segundo o mestre Donaldo Schüler, todo o texto é, em última instância, mítico. A partir disso, não considero um tempo morto e um tempo vivo. E, em conseqüência, não combato nem abato o que está acima de mim. O homem diz e escreve coisas interessantes e estranhas. Por exemplo: o tempo passa. A curva é perigosa. O sol se pôs. Discordo. O homem passa pelo tempo. O tempo nem sabe que ele próprio existe, muito menos sabe do ínfimo animal humano que, por falante e escrevente, nem animal se julga. Assim como as curvas, em si, não são perigosas. Elas não. O motorista com seus ímpetos, este sim pode ser perigoso para a curva, para si e para os outros. E o sol não se põe: a Terra é que, girando, coloca-o fora das nossas vistas. Mas temos na espécie sapiens esse vício projetivo e onipotente. O umbigo do homem é o centro do universo. Como está no livro — Homem: mínimo, e cheio de si. Por isso, não reajo a minha época, seja ela qual for. Estou apenas entregue. (Estar nela não é estar com ela). Existo, resisto e já é muito. Depois, deitarei meu canto vencido. Aos ratos, aos vírus e a tudo, meu canto vencido e mudo.

• O embrião do novo livro estava em Os olhos de Borges (1999). Percebe esse desdobramento natural?
Sim, percebo. O próprio Borges comenta em um texto que a semente do próximo livro mora em algum dos anteriores. Nessa linha, em Punhais do minuano, meu primeiro livro publicado, já existe uma referência a Borges. Depois, em Os olhos de Borges, há algumas reflexões sobre o tempo, que ganharam corpo. Primeiro de uma sentada só, que durou uns três ou quatro dias. Depois, fiquei quase três anos aumentando, diminuindo, mexendo e remexendo, até que chegou o momento de publicar. Fiquei feliz com o resultado, pois parece ser este o menos pior dos meus livros até agora.

• Inventário tem uma dicção pausada e evocação mitológica. A poesia não teria hoje a função de despertar da leitura e inquietar a consciência, de escapar da metalinguagem e dos teoremas para se cobrir de vida?
A evocação mitológica, presente até no título, embasa o timbre. Os símbolos que empreguei são atemporais, tal e qual o inconsciente humano. Por isso não existem simbologias ou expressões melhores e piores em literatura, segundo Eliot. O que pode acontecer é o poeta ter perna curta e não conferir a força necessária ao elemento simbólico que pretende reger, e em que pauta. Mas quanto a função da poesia: creio que ela teria esta ou aquela função se fôssemos iguais em tudo. Todos com a mesma crença religiosa, política, torcedores dos mesmos clubes, se possuíssemos os mesmos desejos, anseios, sofrêssemos das mesmas dores e morássemos na mesma casa, por dentro e por fora. E ainda assim, possivelmente teríamos funções poéticas divergentes: Hans-George Gadamer afirma que as pessoas interpretam de forma diferente umas das outras, porque seguem suas experiências (obviamente prévias) de leitura e de vida. Acredito que a poesia deva ter tantas funções quantos poetas que a escrevem, ou mais. Por exemplo, a função da poesia, para Manoel de Barros, é nenhuma. É nada, não vale nada. Se para um poeta a função é uma, não significa obrigatoriamente que deva ser a mesma para todos os outros. Literatura é liberdade.

• Três forças coexistem e pendulam sua produção, uma que busca uma maior simpatia de comunicação com a utilização de palavras de uso comum misturadas a um substrato metafísico, outra que busca uma empatia emocional e, ainda, uma que singulariza a sensibilidade e a rarefação lírica, o que considero seu melhor momento. Sua evolução parte do cruzamento e negociação desses fluxos?
Fico feliz em ver que a pergunta pressupõe estar em evolução. Mas o grau de exigência costuma acompanhar o autor a cada livro novo, querendo ele sempre se superar. No meu caso não é diferente. Cada livro demarca uma etapa, um máximo atingido naquele momento específico da vida. Rilke, em 1904, postulou que devemos escrever quando nos sentimos obrigados a isso. Nunca fiquei duelando com o papel em branco ou com a tela do computador a me esperar. Primeiro penso o tema, depois deixo o liqüidificador neuronal ligado, mesmo quando desligo. Passa um tempo e, queira eu ou não, começam a surgir idéias. Só então tenho o ânimo suficiente para a empreitada. O prazer da criação é incrível. Gosto daquela sensação de estar-não-estando. Mas não me iludo. Aquele material vai direto para a gravidez das gavetas. Os poemas ganham sumo e sabor nos canteiros da espera. Depois, começa o artesanato, o corte, a revisão, o lixo, o refazer, repensar. E aí entra o cruzamento e a negociação dos fluxos, que tratas na pergunta. Não acredito em literatura catártica, aquela de esvaziar a alma. Inspiração, no máximo é um começo, mas não mais do que isso. Exceção aos gênios, talvez. Mesmo assim não creio.

• Publicando por uma editora gaúcha — WS Editor —, encontra dificuldades de reconhecimento fora do Estado? Quais são os obstáculos para se firmar como um autor nacional?
Fui o primeiro autor a ser publicado pela WS, a editora do excelente contista Walmor Santos. Até então, publicava apenas os próprios livros. Iniciamos com Os olhos de Borges. A editora é bastante eficaz no trabalho com escolas, produz o projeto Autor na sala de aula, idealizado e gerenciado pelo próprio Walmor, com seu invejável fôlego. Mas fico restrito geograficamente às escolas e, mesmo assim, próximas a Porto Alegre, devido a meu trabalho. Sem dúvida, os livros precisam estar nas livrarias do País. Sem isso, o reconhecimento fora do Estado não poderá acontecer, pois o livro não é distribuído nacionalmente. Não é por falta de empenho, mas não há estrutura para uma distribuição nacional, no momento. Pelos meus cálculos, para me firmar como um autor nacional faltam uns 40 anos. Isso se tudo correr bem, se não vier a seca e se as vertentes um dia verterem boa verve.

LEIA RESENHA DE INVENTÁRIO DE CRONOS

Epílogo

Nos campos santos
somos todos
e tantos.

A saudade
nos faz regar
flores de plástico.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho