Ao todo me avistei com Ivana Arruda Leite três vezes. A primeira, cerca de dois meses atrás, quando fomos convidados com outros escritores a participar do conselho editorial de uma editora de São Paulo. A segunda, quando compareci ao lançamento de seu último livro, Eu te darei o céu, reminiscências que Ivana resolveu registrar a respeito de seus tempos de Jovem Guarda. A terceira vez foi ontem, dia 15 de julho, na Livraria da Vila (beleza de livraria!), situada no coração do badaladíssimo bairro da Vila Madalena, em Sampa. É uma mulher inteligente, rápida, engajada, de uma franqueza desconcertante. Quando lhe perguntei sobre teatro, disse: “Eu gosto. O problema do teatro é que é muito caro. Meu salário não dá.”
A seguir, alguns bons momentos do papo com Ivana Arruda Leite:
1
Eu tenho 53 anos, escrevo desde os 13 anos, fui publicada há muito pouco tempo, casei, fiquei viúva, tenho uma filha, sou funcionária pública, trabalho na Prefeitura, Secretaria da Assistência Social, e batalho pela literatura. Sou socióloga e escrevo atualmente uma coluna na Revista da Folha (Folha de S. Paulo). O melhor da minha vida é a literatura. A parte de que eu mais gosto.
2
Comecei escrevendo poesia. E escrevi até 1980, por aí. Nesse ano, participei de um grupo de poetas, chegando a sair em algumas antologias publicadas por eles. Deixando o grupo, comecei em 84 a escrever contos, e nunca mais escrevi poesia. Escrevi muito (eu escrevo compulsivamente), batalhei, batalhei, mandava para as editoras e nada acontecia. É o caminho de todos os escritores. Recusas, recusas, recusas. Até que em 97, publiquei por uma editora que nem se dedicava à ficção o livro Histórias da mulher do fim do século.
3
Como toda mocinha, eu escrevia diários, poesias. Não mantenho nada. Eles se perderam com a chegada da vida adulta. Hoje não escrevo mais poesia. Aliás, nem gosto.
4
Depois desse livro de 97, do qual ninguém ficou sabendo, eu vim a conhecer Marcelino Freire, por meio de uma amiga da minha filha. O Marcelino leu tudo o que eu tinha, gostou muito, e levou ao Plínio da Ateliê Editorial. O Plínio, então, publicou Falo de mulher, em 2000. Daí pra frente, eu entrei no mercado editorial e participei de um monte de antologias
5
Meu primeiro livro publicado, livro sério, foi Falo de mulher, pela Ateliê. Minto: não foi em 2000, foi em 2002. Em 2003, publiquei um livro juvenil, que se chama Confidencial, anotações secretas de uma adolescente, pela Editora 34, e agora publico Eu te darei o céu. Estes são só meus. Mas eu tenho muitas participações em antologias.
6
Deixa eu falar da minha turma de amigos. O Marcelino fazia parte de uma turma de escritores, e eu passei a fazer parte desse grupo também. É o que se chama Geração 90. Nelson de Oliveira, Marcelo Mirisola, Ronaldo Bressane, o Joca Reiners, Fernando Bonassi. Enfim, uma turma de escritores que logo me convidou pra participar da revista PS:SP. Por isso, eu fui incluída na tal de Geração 90.
7
Fui à Flip (Festival de Literatura Internacional de Parati) do ano passado e fui nessa última também. É impressionante ver como tem gente mobilizada com a literatura, como a literatura consegue reunir uma multidão. Uma gente que ouve as palestras e fica da manhã até a noite falando de literatura, a cidade inteira vivendo literatura, e isso repercute nos telejornais do País inteiro. Eu acho louvável, maravilhoso, um evento que traz a literatura pro Jornal Nacional, dando um destaque que ela normalmente não tem.
8
Estou com um livro pronto que deve sair em novembro pela Agir. É um livro de contos e novelas. O título é Ao homem que não me quis. Fora isso, tenho uma novelinha que vai sair pela Cállis, que se chama As três faces de Gabriela, e tenho muitos projetos para acontecerem.
9
Acho que a literatura hoje está superefervescente. A gente está num momento muito legal. Quem tem mais de 50 anos como eu sabe o que foi a literatura nos anos 80. Nada. Silêncio absoluto. De repente, nos anos 90, os livros, os autores, ganharam esse destaque que estamos vendo, como a Flip, por exemplo. Estamos num momento privilegiado e eu me sinto muito, muito feliz por estar participando dele. As pessoas estão escrevendo muito, editando muito, tem um monte de editoras pequenas, facilitando quem quer se lançar.
10
Conheço os escritores que estão surgindo agora. Conheço desde os grandes nomes já consolidados. Ontem eu estava jantando com Luiz Vilela. Ouvindo Luiz Vilela, consagradíssimo, e ouvindo um inédito, um iniciante, tipo Andréa del Fuego, é interessante a gente ver que a luta é a mesma. Entendeu? As reclamações, as batalhas do Luiz Vilela são as mesmas da Andréa. Ambos têm que pegar seus livros e sair vendendo, promovendo, mostrando… É muito interessante isso.
11
Andréa del Fuego é um dos novos talentos de que eu gosto muito. Outro é a Índigo.
12
Não acho que para as mulheres seja mais fácil ou mais difícil penetrar no mercado editorial. Não. É a mesma coisa. O que eu não gosto é quando se usa a expressão “literatura feminina” para categorizar um tipo de literatura. Como se a literatura feita pela mulher fosse uma coisa mais fraca, mais adocicada, mais cor-de-rosa, mais romântica. Isso eu acho um horror. Eu acho que a literatura da mulher tem as diferenças inerentes. Se o sexo perpassa toda a vida da gente, como é que no escrever, ele vai ficar de fora? Aí existe uma compreensão do mundo, um entendimento próprio da mulher. Mesmo que ela ponha um narrador homem, ainda assim é o olhar da mulher. Não gosto do adjetivo “feminino” quando ligado a menor, pior. Aí eu não gosto não.
13
Os dois pilares da literatura da mulher são a Lygia Fagundes Telles e a Clarice Lispector. Fora essas duas, acho que estamos todas de igual pra igual. Claro que tem outros nomes, como a Rachel, por exemplo, mas pra minha geração, a Lygia e a Clarice são os grandes nomes. As grandes referências.
14
Gosto muito de ler contos. Leio os contemporâneos, leio muito os meus amigos, e gosto muito dos brasileiros especialmente. Sou praticamente analfabeta em matéria de literatura estrangeira. Sempre o meu xodó foram os autores brasileiros. Comecei por Monteiro Lobato, passei por todos os grandes nomes. Leio outros gêneros, mas a minha predileção, tanto como leitora como escritora, é o conto. Não tem um assunto de que eu goste mais. Gosto de todos. Gosto também de Julio Cortázar, Alberto Moravia, Ítalo Calvino… Esses nomes brilham, claro. Não sou uma grande entendida em literatura americana, por exemplo. Pra mim, Luiz Vilela não fica devendo nada a um Paul Auster.
15
Como eu fiz sociologia, e eu fui até o doutorado, tive um longo caminho de leituras técnicas, na área da sociologia, ciências humanas em geral. Só que quando eu estava no doutorado, eu conheci o Marcelino Freire, que me levou pra literatura, então eu abandonei a vida acadêmica. Com isso, eu me desobriguei de qualquer leitura séria na vida.
16
A equipe que está no poder, presidente Lula, Gilberto Gil, acho que melhorou o panorama em relação ao governo anterior. Ainda falta muito, tem muito que se investir no campo da cultura no Brasil, mas eu sinto que está melhor do que o que estava nos governos anteriores. Mas também não sou a pessoa mais capacitada pra falar disso não. Não me ocupo muito com esse tipo de reflexão.
17
Eu nem conheço a imprensa estrangeira. Nem poderia comparar com a imprensa brasileira. Mas eu acho que falando do jornalismo cultural, especificamente… Eu acho que as análises, as resenhas, as críticas estão cada vez mais superficiais, mais rasteiras, mais… Enfim… Entendeu? Não se vêem mais grandes críticos se debruçando generosamente sobre nossos autores, eles (os de hoje) vão no certo, só apostam no bilhete premiado, mas, enfim, eu sinto…
18
Acho os suplementos literários superlegais, superválidos, leio o Rascunho, sou assinante, gosto até das polêmicas que eles criam. Mas eu não gosto quando os suplementos literários começam a ficar muito herméticos, muito elitizados, falando pra meia dúzia de intelectuais… Quando ninguém alcança aquilo que eles estão dizendo. Fica uma linguagem de surdos entre eles, à qual o povo não tem acesso. A população normal, leiga, não tem acesso ao que está sendo discutido lá dentro. Quando o suplemento literário ou a revista de literatura têm preocupação com o leitor e coloca as coisas ao nível da compreensão geral, aí eu gosto muito.
19
Eu acho que a crítica literária no Brasil está sendo feita dentro das universidades, por acadêmicos, para acadêmicos, e essa não chega mesmo nem aos jornais nem à tevê. Fica restrita a essa elite. O que vai para o jornal, os meios de comunicação em massa, é essa resenha rápida e rasteira, injusta e na maioria das vezes apressada.
20
Eu escrevo compulsivamente. Se me deixassem, se eu pudesse, eu escreveria dez horas por dia na boa. No meu trabalho, eu posso escrever, eu tenho tempo pra isso. Escrevo na minha casa, à noite, nos fins de semana, sem horário. Escrevo no computador direto. Sempre tem uma idéia que detona. Às vezes eu sei de onde vem essa idéia. Outras vezes não sei. Ela surge sem que eu consiga recuperar depois como ela surgiu. Às vezes é um fato muito específico, muito claro, e às vezes sem que eu saiba de que “profundas” ela vem. E daí eu escrevo rapidamente, e rescrevo infinitas vezes. Fico mexendo, mexendo. Sempre acho que posso melhorar (o texto). Se possível, mexeria até no livro pronto. Escrevo N versões, depois dou pra minha filha ler, eu preciso escutar o que escrevi, daí eu faço novas correções, e ainda ponho os amigos todos pra ler.
21
Eu te darei o céu é o nome de uma canção do Roberto Carlos, dos anos 60. Quando eu conheci esses meninos, o Joca, o Marcelino, contei que eu tinha participado da Jovem Guarda, que tinha sido uma fanática pelo Roberto Carlos, louca, indo aos auditórios, perseguido ele na rua… Enfim, macaquíssima de auditório, louca por ele, meu quarto era forrado de fotos do Roberto Carlos. Eles (“os meninos”) acharam essa história muito interessante, o Joca especialmente vivia dizendo “você precisa escrever sobre isso, você precisa escrever sobre isso, é um pedaço cuja memória não tem muito registro” (do lado da fã, né?), e daí o Aloísio, da 34, me deu força total. Este livro são memórias, claro que não autobiográficas, tem ficção aí. São 10 capítulos e cada capítulo é um ano, de 1960 a 1970. Neles, eu conto a história do País. Do Brasil. Política, costumes, moda, comportamento, música. E como eu era telemaníaca, viciada em televisão, e foi uma época muito importante da história da televisão, da MPB, os festivais, a Jovem Guarda. O mundo passou por uma grande transformação nos anos 60. É um registro nada ortodoxo, nada comprometido. Não é uma tese, não é um ensaio. São memórias de uma menina alucinada, de uma garota papo firme, que viveu aquilo dos 9 aos 19 anos.
22
Gosto de bater papo e beber cerveja com os amigos, gosto de cinema, de teatro, gosto de televisão, é isso. Não gosto de viajar, viajar é uma coisa que me desestabiliza sempre. E não gosto de passear à toa. Gosto de sentar e conversar. Um dia típico meu seria levantar de manhã, ir para a repartição, escrever à tarde, à noite tomar uma geladinha com os amigos. Meus períodos favoritos para escrever são a manhã e a tarde.
23
Tenho ido pouco ao teatro. Não gosto do teatrão, que acho um horror, esses teatros para classe média, com grandes nomes da televisão, que fazem uma peça qualquer pra ganhar dinheiro. Desse teatro, eu estou longe. Agora, tem uma turma de teatro alternativo, que se leva a sério, um exemplo é o Mário Bortoloto, que tem uma companhia chamada Cemitério de Automóveis. É um ótimo autor. Tem umas peças maravilhosas. A mulher dele, a Fernanda D’Umbra, é ótima atriz. Essas iniciativas eu curto muito.
O problema do teatro é que é muito caro. Meu salário não dá.