“Escrevo ficção para contar histórias que suponho serem boas”

Entrevista com Fernando Molica
Fernando Molica, autor de “Bandeira negra, amor” Foto: Bruno Veiga
01/01/2006

• Quando você começou a se interessar por escrever ficção?
Não saberia dizer ao certo. Claro que, na adolescência, eu pensava nisso. Mas nunca me dediquei de forma consistente a um projeto literário. Mais ou menos em 1995, 1996, fui fazer uma entrevista e achei que uma inconfidência do entrevistado — ele ficara sabendo que grupos de esquerda cogitavam retomar uma tentativa de luta revolucionária — poderia servir de ponto de partida para um livro. Pensei em fazer uma reportagem, mas o negócio era incipiente, não renderia. Optei então por tentar fazer ficção. Escrevi um capítulo, parei uns cinco anos, e retomei a história. Daí surgiu meu primeiro livro, Notícias do Mirandão (Record, 2002). Talvez o fato de ter começado a trabalhar em tevê tenha influenciado, é possível que eu tenha ficado com saudade da palavra escrita, de narrativas mais longas. Acho que também aceitei um desafio: será que vai dar?

• Por que você escreve ficção?
Acho que os motivos são muitos, pouco claros. Acho que escrevo ficção para contar histórias que suponho serem boas, interessantes. Histórias de alguma forma relacionadas com o tempo, o país e a cidade em que vivo. Talvez o jornalismo tenha a ver com essa decisão: outro dia, em um chat, eu disse (escrevi) que a objetividade jornalística é fundamental e necessária, mas, em muitos casos, não é suficiente. Ao nos concentramos no que é objetivo, deixamos de fora uma série de elementos, sensações, observações, reflexões. Muitas vezes, a busca da objetividade nos impede de ver o que é muito evidente — Nelson Rodrigues talvez me desse razão. Mas há uma necessidade de contar histórias, de inventá-las, de tentar ver se vai dar certo. Outro dia, alguém disse que escreve para saber qual é o fim daquela história. Achei a explicação muito boa.

• Em que medida o jornalismo influencia ou até mesmo polui — se é que polui — sua obra de ficção?
Espero que, no meu caso, não tenha poluído e que eu esteja conseguindo separar as duas lógicas. São linguagens diferentes, formas de expressão diversas, embora não necessariamente antagônicas. O jornalismo pode ter me proporcionado uma boa prática de contar histórias. Faço isso todos os dias há mais de 20 anos. Deve ajudar. Ao escrever o primeiro livro fiquei muito preocupado com uma certa lógica interna do texto — será que essa história, uma ficção, poderia acontecer? Será que é verossímil? Será que esse personagem tem vida, tem alma? Para checar, me respaldei muito na lógica do texto jornalístico, nas possíveis explicações para o comportamento deste ou daquele personagem, para uma certa relação de causa e efeito. Acho que isso ajudou a terminar o livro. O problema — ou solução — é que, no ano seguinte, escrevi um livro jornalístico, O homem que morreu três vezes (Record, 2003). Ele conta a história de um personagem quase inacreditável, Antonio Expedito Carvalho Pereira, um advogado gaúcho de extrema direita que virou aliado de Carlos Lamarca e, depois, terrorista internacional, fornecedor de armas de Carlos, o Chacal. Neste caso, o jornalismo me ensinou que a lógica de um personagem pode ser muito mais rica, muito mais surpreendente.

• Seu primeiro livro de ficção trata de uma revolução latente nas favelas cariocas. Este Bandeira negra, amor tem como pano de fundo o racismo. Os temas sociais tem sido uma constante na produção literária urbana brasileira. Como você vê isso? Você não acha que certo apego a temas sociais pode acabar engessando a imaginação?
Não acho que a tal revolução esteja assim tão latente nas favelas cariocas. Acho que existe uma revolta meio desfocada, inorgânica. Mas, enfim, essa é outra história. Sobre a temática social: todos escrevemos sobre nossas obsessões, nossos calos. Nunca pensei em escrever para denunciar a situação social brasileira, a iniqüidade, etc. Não tenho a intenção de fazer sociologia. Isso, porém, não me impede de abordar temas que são presentes na vida brasileira. Vivo no Brasil, afinal. Meus personagens também vivem. Deparam-se com a miséria, com a violência, com o racismo, com a corrupção policial. Acho que, de alguma forma, isso afeta todos nós. Claro que todo o autor corre o risco de se repetir, de se limitar, de se engessar. Mas isso pode ocorrer com um autor que privilegie uma abordagem social tanto quanto com um outro que prefira temas mais intimistas. O risco da repetição, da falta de imaginação e do uso do discurso-chavão existe para qualquer autor, para qualquer tema. Depende sempre de como o assunto seja tratado. Claro que há sempre o risco de se cair no discurso fácil, na defesa de supostas boas causas, no bom-mocismo. Bandeira negra, amor, trata de pessoas, não de causas. O problema é que essas pessoas interagem com a sociedade em que vivem, participam de seus conflitos, não vivem isoladas.

• A linguagem do livro é muito apegada ao nosso tempo. Há até mesmo a utilização de linguagem de internet. Você não teme que isso acabe envelhecendo o livro?
Escrevo para as pessoas do meu tempo, como acho que outros escritores escreveram para a época em que viveram. Não saberia escrever pensando em um suposto leitor do futuro. A linguagem da internet, utilizada em pouquíssimos trechos, é quase uma ilustração, não tem um papel relevante na condução da trama. Ela é usada de uma maneira até meio humorística.

• Li por aí que seu romance é um livro sobre o racismo. Você aceita o rótulo ou o credita a uma necessidade de encontrar na ficção um viés didático?
Cada leitor tem o sagrado direito de achar o que bem entender sobre o livro. Alguns até poderão achar que o livro é sobre racismo. Bem, ele não foi escrito com essa intenção. Para mim, é um livro que conta uma história de amor entre um homem, negro, e uma mulher, oficial da PM. A questão racial permeia o livro, mas não é, por exemplo, importante nos problemas do casal. A questão do preconceito não é relevante entre eles, na relação. O que me interessa no livro são os pequenos dramas, a maneira pela qual os personagens reagem a pequenas ofensas e dificuldades do cotidiano. Ao longo do livro o personagem principal praticamente não sofre uma discriminação que possa gerar um boletim de ocorrência, uma acusação formal de racismo, não é vítima de um caso que possa render notícia de jornal. Ele se depara, sim, com as pequenas agressões, com um racismo velado, feito de pequenos gestos, alguns praticados por sua própria família. A dor que não sai no jornal, para citar um velho samba. Fred se depara, principalmente, com dramas que nada ou pouco têm a ver com a questão racial. Suas mal-resolvidas histórias de amor poderiam ter ocorrido com um louro, com um japonês, com um esquimó. Quanto a uma eventual necessidade de se encontrar um viés didático na ficção: claro que existem exemplos de livros de ficção que servem de palanque. Espero que não seja esse o caso do meu.

• O racismo no Brasil é digno de preocupação ou estamos importando um problema de outras sociedades? A integração racial brasileira é uma falácia?
Temos, sim, que nos preocupar com o racismo na sociedade brasileira. Um racismo que se manifesta de forma diferente em relação ao que acontece nos Estados Unidos ou na França. Negros ainda são confundidos com serviçais, xingados de macacos; a cor da pele continua a ser um elemento importante para uma ofensa. Há diferentes níveis de integração racial no Brasil, mas não dá para negar as manifestações racistas.

• Seu livro também trata do auto-ódio, isto é, de negros que negam a própria cor. Este me parece ser um ponto importante, ignorado até mesmo pelos movimentos sociais que se dedicam ao tema…
A mãe do personagem principal insiste para que o filho “embranqueça”, que use touca para alisar os cabelos, que evite classificar-se de pardo. Ela não faz isso por racismo, nem por ódio, mas por amor: achava que a vida do seu filho seria melhor, menos doída, quanto mais branco ele fosse. É contraditório, mas me parece humano, muito humano. Em um momento que considero bem dramático, a namorada do Fred, do protagonista, diz que também tem ascendência negra, e que sua avó, uma negra baiana, se orgulhava de ter “barriga limpa”, já que seus filhos eram bem mais brancos do que ela. Essa história de “barriga limpa” não é invenção minha, me foi contada por uma amiga, negra. Não é que a mãe do Fred se achasse inferior, menos inteligente que os brancos: ela apenas supunha que seria melhor ser branca. Esse conflito, esse ser ou não ser, é, talvez, a principal característica do personagem. Procurei construí-lo de forma não-linear, tentei fugir dos maniqueísmos. O que me interessava era o conflito.

•  Há no livro uma cena de sexo que chama a atenção pela elegância. Fale um pouco sobre a dificuldade de escrever cenas assim, numa época em que o sexo perdeu muito do seu mistério.
O que antes era tabu ficou banal, redundante. Dá medo de transformar a cena em um daqueles relatos de revistas eróticas — aquela história de membro ereto, sexo intumescido, desejo incontrolável, inundada de prazer. Optei por usar a primeira pessoa, uma situação em que a narradora faz uma espécie de desabafo silencioso, em que o sexo se transforma em um momento de vingança, de resgate de sua dignidade.

• No final do livro, seus personagens parecem resignados. Não há mais lugar para bravatas ou quixotices hoje em dia? Nem mesmo na ficção?
Engraçado, eles têm mesmo um pouco de resignação, mas, de certa forma, acho o fim até um pouco otimista. Pelo menos, um pouco mais otimista que o do primeiro livro. Acho até que os personagens assumem alguns desafios importantes, fiquei meio orgulhoso deles. Descobri que, como autor, sou menos otimista do que como cidadão. Acho que, de uma certa forma, me dou o direito de criar expectativas em relação à minha vida, em relação ao país, ao mundo. Pelo menos, estou mentindo para mim mesmo. Já na ficção é mais complicado, acabo sendo mais cético. Pelo menos, tenho sido. Deve ser pudor de mentir para os outros…

• Como seu livro dialoga com a produção brasileira contemporânea — se é que dialoga?
Espero que dialogue. É um livro que trata de personagens contemporâneos que têm vivências para serem divididas. Mas o principal é que ocorra uma conversa não com outros livros, mas com os leitores. É importante que os leitores, eles sim, dialoguem com os livros. Caso contrário não teremos apenas uma profusão de escritores conversando entre si.

• O que você faz para sair desse círculo vicioso?
Acho que estamos diante de um certo impasse. As listas de livros premiados quase nunca coincidem com as de mais vendidos — isso, na ficção. Tenho a impressão de que a ficção brasileira hoje repercute menos do que há 20, 30 anos. Não sei se o problema é apenas falta de leitor. Não sei até que ponto os escritores — e me incluo aí — estão com dificuldades para dialogar com a sociedade brasileira, pelo menos, com uma parte significativa dela. Suponho que todos os escritores querem esse diálogo, em algum nível. Mas parece que os leitores não se reconhecem na maior parte da produção literária brasileira contemporânea. É engraçado, porque o panorama é diferente na área de não-ficção. Não sei se os leitores estão mais céticos, mais atraídos por uma abordagem da realidade mais palpável, menos afeitos ao sonho, à imaginação. O que fazer? Não sei. Acho que temos que continuar tentando.

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Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho