Escrever até morrer

Entrevista com Antônio Torres
Antônio Torres: muita história e pouca literatura
01/09/2003

Chego ao apartamento de Antônio Torres, em Copacabana, para a entrevista. Ele me recebe em bermudas e camisa. Faz calor. Conversamos amenidades. Ele faz algum comentário sobre a minha aparência demasiadamente jovem, eu peço a ele para chamá-lo de você, em vez do protocolar senhor. Tiro sarro do meu sotaque curitibano, que ainda está deslocado, e ainda estará por um bom tempo, no Rio de Janeiro. Conversamos sobre violência, sobre minhas impressões a respeito da cidade que escolhi para morar. Ele me leva a uma janela, que dá para o Morro do Pavão. Por fim, este senhor simpático me convida à conversa. E ele tem muito a dizer. Em torno, as paredes da casa de Antônio Torres, todas brancas e com detalhes em azul, me lembram as de uma casa grande. Começamos a conversa e eu não consigo esconder o desconforto por não ter admirado o novo livro daquele homem simpático. Tenho ganas de falar isso para ele, mas a ética do trabalho não me permite. Conduzo a entrevista na esperança de que ela me demova das impressões más que tive no decorrer do livro, o que não acontece. Mas é ali naquele sofá que firmo minha parceria com o autor, na esperança, vã, como sempre, de ser compreendido.

Na entrevista que se segue, o autor de Um cão uivando para a lua, entre tantos outros, e agora deste O nobre seqüestrador fala sobre sua infância no interior da Bahia, sobre criação artística, crítica literária e sua pretensão de entrar na Academia Brasileira de Letras. (Paulo Polzonoff Jr.)

• Primeiramente, eu gostaria de saber por que o senhor escreve. Que tipo de compulsão, de motivação, o leva a escrever?
Eu sei que não vou ser o primeiro a lhe dizer isso, mas tudo começa na infância. Eu venho de uma realidade rural, no sertão da Bahia, onde havia pouca gente alfabetizada, mas eu tive a sorte de ir para a escola já sabendo as primeiras letras. E eu em encantei com as letras, com o desenho das letras. Depois minha mãe, que me ensinou a ler, passou para a cartilha.

• Sua mãe tinha formação?
Não. Ela se alfabetizou com um professor particular que apareceu por lá e ela se encantou. Naquele tempo os pais não deixavam as mulheres estudar, por isso ela estudou escondido. Ela me contou um dia esta história, esta odisséia…

• Voltando…
Quando eu fui para a escola eu já dominava as primeiras letras. E daí na escola eu aprendi a tabuada. E um dia, eu me lembro, chega uma senhora e a professora Serafina diz: “Leve os meninos”. Foi a chegada da professora Teresa para inaugurar a Escola Rural de Sátiro Dias. E foi uma tristeza para nós todos, porque uma das razões para a gente gostar da escola eram as meninas (risos). Aí a professora chegou e pôs na mesa um livrinho chamado Seleta Escolar. Quando eu bati o olho naquele livro, foi como se o mundo até aquele momento não existisse para mim. A professora percebeu o meu encanto e me botou todos os dias para ler em voz alta aquele livro. Naquela época, se você me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse eu diria: “Castro Alves”. O cara era bonito, dava uma sorte com as mulheres… Quem não queria ser um poeta como aquele? E aí a professora começou a me incentivar de tal maneira que na primeira parada de 7 de setembro eu estava com a bandeira do Brasil numa mão e Castro Alves na outra. Aquela poeira e o povo… E o encantamento daquele menino da roça ser capaz de decorar aquilo tudo. Diziam que o menino tinha tutano. E o próprio povo foi fazendo pressão na minha família para que eu fosse estudar mais adiante. Nesse meio tempo, a professora foi me treinando para fazer cartas e composições escolares. Tinha um tema que era brabo: um dia de chuva. Porque o lugar era chegado numa seca. Daí exigia imaginação. E foi com esse tema que ela fez de mim um romancista. De alguma maneira a professora Teresa me treinou para ser escritor. Eu não sei se ela sabia disso. A minha grande tristeza foi quando eu voltei para lá depois de ter publicado meu primeiro livro e ela já tinha morrido.

• A-hã…
E aí tinha as cartas. Você imagina que eu vinha da roça para a rua. E o povoado era A rua. Toda segunda-feira vinha todo mundo para a rua, armava as barracas, as pessoas levavam as coisas para vender. E a gente trabalhava na roça somente pela manhã, na segunda-feira. E eu estou chegando e um rapaz está à minha espera com um lápis e uma folha de papel almaço e aí ele me pediu que escrevesse uma carta para uma menina pela qual ele estava apaixonado. Mas ele não sabia como dizer isso e nem sabia escrever para dizer isso. E eu senti uma altíssima responsabilidade naquele momento. Eu tremia porque eu pensava: “E seu eu não souber dizer por ele, como é que ele vai ganhar esta menina?” Mas foi um exercício. Na segunda-feira seguinte estava lá a moça, com a carta que eu havia escrito para eu ler para ela e escrever a resposta.

• …
E até hoje eu escrevo para um garoto como aquele, ou melhor, para aquela garota para quem aquele camarada me pediu para escrever uma carta. Para aquela destinatária daquela carta. Quer dizer, para os dois. A minha ligação com a escrita vem disso. Foi como se eu tivesse percebido quando menino que isso tinha alguma importância, que isso para algumas pessoas era até vital. Para aquele garoto era vital que eu escrevesse aquela carta.

• Essa era uma época em que as letras tinham importância. Hoje se fala muito em ditadura da imagem, no poder da imagem sobre a palavra. Por que continuar escrevendo ainda hoje, no século 21?
É a crença nesta coisa da palavra, desde a infância. E também um pouco aquela coisa “ó telefonista a palavra não morreu”. Quero dizer, eu tenho a impressão de que há uma necessidade de você escrever nem que seja um último registro da língua portuguesa. Veja o caso do Guimarães Rosa. A importância dele a meu ver começa pelo fato do resgate que ele fez da linguagem popular rural, trabalhada com uma criatividade e uma erudição inacreditável. Mas ele pegou a coisa do povo. Saía pelos sertões, conversando, gravando… mas hoje eu penso uma coisa: é como se o Guimarães Rosa tivesse sacado que aquela língua ia desaparecer. Não foi demasiadamente importante que ele tivesse feito isso? A necessidade da escrita, no fundo, é a necessidade da preservação, do mapeamento da língua. E tem mais uma coisa: você é escritor. Se você é escritor, você escreve, não importa que isso venha a desaparecer ou não. Está dentro de você isso.

• Apesar de saber já a resposta desta pergunta, vou fazê-la mesmo assim: escritor tem hora para parar?
Só quando morre.

• Faço esta pergunta porque alguns escritores têm uma obra inquestionável, mas de uns tempos para cá têm decepcionado. Não que sejam ruins, mas eu vejo uma queda. Aí eu me pergunto: “Por que não ter parado no auge?”
Veja bem, neste caso eu penso que é uma maravilha não ter entregado a rapadura. É como a história do cara que se aposenta e morre. Então até como terapia ocupacional escrever é importante. Talvez o que haja é que alguns entraram num rolo compressor de produzir demais. Isso não é legal. Eu tenho a medida. Eu demoro. Mas eu defendo estar escrevendo até morrer e quero estar escrevendo até morrer sem deixar a peteca cair. Minha ambição é essa, da auto-superação. São coisas que eu tenho assim no meu teclado, na minha tela em branco. Quer dizer, só vale a pena escrever se você sentir que aqui tem uma coisa que te surpreendeu, porque se te surpreendeu vai surpreender o outro.

• O crítico Wilson Martins diz que o romance histórico quase sempre é sinal de falta de imaginação do autor. Gostaria que o senhor comentasse esta afirmação.
Posso até concordar com ele. Muitos romances históricos carecem de imaginação. Mas eu tive todo um trabalho de invenção neste romance que escrevi. Você vai sentir ali o romancista, e não o romancista de um romance histórico. Mas o romancista. Pelo menos esta foi a sensação que eu tive quando eu escrevi. A mim não me importava se aquilo era livro de história ou não. Claro que eu fiz pesquisas exaustivas, para os historiadores não pegarem no meu pé. Mas o que está ali é um romancista. O que me encantou foi o personagem, Duguay-Trouin, com esta sua dupla condição de herói na França e bandido no Brasil.

• Mas por que este apego à verdade nos romances históricos brasileiros? Não entendo este medo dos historiadores.
Neste O nobre seqüestrador eu inventei muito. Porém, quando entrava o fato histórico… Foi até o caso da Luciana [Villas-Boas, editora da Record] falar: “Sua pesquisa está de um jeito que parece que você inventou tudo”. Eu disse que é o que eu quero que o meu leitor ache: que eu inventei tudo. Aí é a estratégia do romancista em cima. Eu não traí a história, mas fiz a minha invenção em cima desta história. Primeiro criando personagens. Eu dou voz a uma estátua, o que é uma coisa que parece inverossímil. Mas eu levei anos a chegar a este gancho. Quando eu cheguei pensei: “Achei o romance”. Porque me deu uma liberdade de movimento, a estátua ficou minha narradora onisciente, me deu uma liberdade de ação incrível e de linguagem. A linguagem da estátua é a do dia em que ela está narrando a história, 6 de fevereiro de 2002, em Saint-Malo. Aí pronto, aí eu enlouqueci e disse: “Tu és um romancista. Vais embora por aí”. E fui embora. Eu dei voz à estátua, ao Rio de Janeiro, ou seja, já tem outro molho, outra pitada do romance histórico. Queria que o romancista superasse o pesquisador de história. É o tal negócio da auto-superação. É bom a gente discutir isso porque a pior coisa que pode acontecer e no nosso mundo eu acho que está havendo um retrocesso muito grande… Eu sou de uma geração que lutou o tempo todo para quebrar com seus preconceitos. E de repente parece que o mundo está virando tudo de novo. Aí vem com preconceito com o escritor, com não sei o quê. Importa o seguinte: o cara deu conta do seu recado bem? Te satisfez? Ele chegou àquilo: satisfação garantida ou seu dinheiro de volta? Se chegou a isso, vam’bora.

• O senhor fez no O nobre seqüestrador uma opção pela linguagem atual. Gostaria que o senhor me explicasse esta opção. Porque não usou uma linguagem… histórica?
Porque eu queria dar um sentido contemporâneo. Buscar uma visão contemporânea. Porque a história da invasão francesa, toda questão européia no Hemisfério Sul, tudo isso está contato na visão deles. E eu queria colocar um ponto-de-vista brasileiro, um narrador brasileiro, hoje, vendo isso. Porque no fundo a minha grande obsessão em correr atrás deste personagem se deu por vários motivos. Primeiro, a coisa que me seduziu foi o fato de ele ser herói e bandido. Segundo, o herói que não teve um fim heróico. Os últimos anos da vida dele [Duguay-Trouin] foram melancólicos mesmo. Daí eu disse: “Isso é romance!”. É até teatro. Tem a coisa dramática. E eu quis dar voz também aos jornais. Mas todas as vozes, no fundo, não passam da minha voz. O que eu busco, na verdade, é o encantamento do leitor.

• Como é o seu relacionamento com a crítica?
A melhor possível.

• Mesmo quando falam mal?
É tão pouco que falam mal que eu até desejaria que falassem mais. Vou te dar um exemplo. Na minha estréia a crítica foi praticamente unânime em me aplaudir. No segundo livro houve certo equilíbrio, mas tudo muito respeitoso. Esse eu acho que é o problema da crítica. O Hélio Pólvora, por exemplo, ele escreveu uma crítica me elogiando e ao mesmo tempo mostrando os defeitos. Eu preguei esta crítica na parede e fiquei lendo três dias. Pensei: “Legal. Ele está sendo meu parceiro”. Aí um dia eu saí de uma festa com ele e ele me disse: “Poxa, se todos os escritores fossem iguais a você…”. Eu perguntei: “Por quê?”. Aí ele disse: “Só porque eu fiz uma restriçãozinha a um escritor tal que era meu amigo, ele ficou meu inimigo. E eu disse coisas pesadas ali em relação a você…”. Eu disse: “Sério?! Você não sabe quanto eu sou grato a você”. Então, não tenho do reclamar de nada. É a dinâmica da vida, cara. Uns dizem uma coisa, outros dizem outra coisa. Livro ruim é aquele de que ninguém fala.

• E a Academia Brasileira de Letras está nos seus planos?
Eu vou pelas palavras de Jorge Amado: “Não se pode dar crédito ao escritor que aos vinte anos quer entrar para a Academia e nem para aquele que não quer entrar nela depois dos 40”. Mas é complicado falar disso, porque eu querer entrar pressupõe a morte de alguém e…. Deus me livre! Agora, eu não posso dizer que não está nos meus planos. Só estou esperando um comunicado para eu me candidatar.

• Mas isso não tem de partir do senhor?
A gente sempre precisa de um empurrãozinho.

LEIA RESENHA DE O NOBRE SEQUESTRADOR

Obras de Antônio Torres

Um cão uivando para a lua (1972)
Os homens dos pés redondos (1973)
Essa terra (1976)
Carta ao bispo (1979)
Adeus, velho (1981)
Balada da infância perdida (1986)
Um táxi para Viena d’Áustria (1991)
O centro de nossas desatenções (1996)
O cachorro e o lobo (1997)
O circo no Brasil (1998)
Meninos, eu conto (1999)
Meu querido canibal (2000)

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho