Entrevista com Mariana Ianelli

Entrevista com Mariana Ianelli
Mariana Ianelli, autora de “Fazer silêncio”
01/11/2004

• Tenho em você uma revelação na poesia deste pobre país. É bom saber, nesse caso, que o pobre país não vive só de angústia. É muito difícil encontrar, na sua idade, poetas como você. Não é elogio. É uma constatação que fiz desde que a conheci. Como é que você começou a escrever poesia? O que a levou a escrever poesia?
Desde a adolescência, preferi estar em casa. Felizmente, tive a oportunidade de fazer essa escolha. Então, quase todas as noites, eu transitava do quarto de minha mãe, onde havia a biblioteca, para o meu quarto, onde eu me fechava para ler. Foi assim que, por volta dos quinze anos, conheci os poetas modernistas e comecei a escrever com mais freqüência. Antes disso, eu já escrevia alguns contos e poemas, mas o que influenciou o início desse caminho, penso eu, foi ter visto a morte no corpo de uma colega de escola. Acontece assim, de repente, certo dia. Uma criança se levanta, sai para o fundo de um quintal e passa horas brincando. Mas por um descuido e uma série de pequenos incidentes, tudo se acaba. A idéia da morte e o pensamento de Deus me levaram muito cedo àquelas perguntas para as quais nenhuma resposta basta. E a poesia surgiu justamente dessa tentativa de buscar pelo sentido das coisas, no simples gesto de apoiar a cabeça entre as mãos e começar a pensar. Creio que para a poesia não há idade, assim como não se é muito novo ou muito velho para sentir e pensar. Quando a consciência desperta, uma porta se abre. Por ela se pode chegar à loucura, ou ao caminho da arte.

• Você tem três livros publicados aos 25 anos e já está caminhando para o quarto. O que significa isso para você?
Cada livro publicado é um passo que se dá. Em seqüência, eles formam um percurso. Talvez um percurso da esperança ao desespero, mas, enfim, o que vale é estar sempre caminhando, não importa exatamente a que destino; estar sempre se indagando, embora sem jamais encontrar uma resposta que seja apaziguadora ou definitiva. Afinal, a poesia fala sobre a vida, a morte, o tempo, o amor, e tantas outras questões da existência, tendo sempre o homem como fim. E esta é sua única certeza. Todo o resto faz parte de uma verdade que só se mostra por completo na medida do indizível. Não à toa se diz, muitas vezes, que os livros de um escritor são partes de um único grande livro nunca terminado. Um poema não é apenas fruto do pensamento, mas é também um pensamento em processo, um movimento que tende ao infinito. Percebi isso com os poemas de Duas chagas. E, mais tarde, novamente, com Passagens, um livro que dividi em cinco partes, mas que, em seu conjunto, possui uma unidade implícita. Mesmo o título do meu primeiro livro, Trajetória de antes, já apontava para o início de um caminho, ainda que de maneira intuitiva.

• Já houve quem dissesse que a poesia é um sacerdócio. Você acredita nisso?
Inteiramente. Penso que o poema é um ato de fé do homem em vista do próprio homem. Por que escrever senão para falar a alguém? A experiência com a linguagem provém do nosso espanto diante da realidade, e também do nosso deslumbramento. Todo processo de criação passa por esse desconforto de consciência que leva o poeta a pensar sobre a absurda situação do homem no mundo. E a poesia, em especial, tem esse poder extraordinário de dividir em dois o pão que não basta para um, ou seja, ela nos convida a sermos irmãos de um só pensamento, de um mesmo sentimento do mundo. E falar em fraternidade, hoje, diante de tanto individualismo, consiste já numa atitude transgressiva. Mais do que isso, a poesia é um completo modo de ser, um exercício amoroso de resistência contra a bestialidade e de luta pela vida. Nesse sentido, digamos, existencial, a devoção do poeta à palavra é uma devoção de corpo todo, um obstinado voto de confiança do homem no próprio homem, diante do qual desaparecem os limites.

• Qual é sua visão para a poesia brasileira hoje?
Fico um pouco aflita com a obsessão dos poetas de hoje pela metalinguagem. Que um escritor reflita sobre o seu ofício e investigue as inúmeras possibilidades que a palavra oferece de falar e de calar, eu compreendo. Aliás, trata-se de um fenômeno típico da modernidade que fez do artista um indispensável crítico de si próprio. Mas quando o poeta se deixa fulminar pela idéia da criação, ele corre o risco de perder de vista a dimensão essencialmente humana da linguagem. E aí está o mal. Falar da criação supõe que se fale do mundo. Imagine Deus especulando sobre o ovo cósmico e sobre a poeira das estrelas sem nunca dar a ver ao homem a humanidade… Qual o sentido disso? O fato é que estamos vivos, absurdamente vivos, e que assistimos escandalizados ao massacre das crianças no ginásio de uma escola, a centenas de cidadãos que explodem dentro de um metrô ou no sexagésimo andar de um escritório, e resistimos. Esta nossa perseverança beira o inominável. Mas para exprimir este silêncio, na poesia, antes se deve trilhar uma longa estrada. E é onde reina a crise do pensamento e da fé que o ato da escrita mais do que nunca se afirma como uma perspectiva de transformação das coisas tal como elas nos são dadas. No poema que fala sobre o homem, e para o homem, está a verdadeira metalinguagem.

• Com três livros sérios já publicados acredito que você já tenha percebido o vale de lágrimas que é a poesia brasileira atual, com algumas raríssimas exceções. Você já entrou em contato com as coisas ridículas que andam por aí com amplo amparo de um jornalismo cultural sujo? É difícil para você falar sobre isso?
Lastimo não só o pouco destaque dado à poesia, na imprensa em geral, mas sobretudo o generoso espaço que se dá a esta ou aquela ciranda de amigos. Os autores que escapam às relações de mercado e coleguismo, ou são nomes já indiscutivelmente consagrados, ou então são dádivas que aparecem como se num raro triunfo da sensibilidade sobre o império da vacuidade jornalística. Quando isso acontece, nós aplaudimos. Num país em que somente um terço da população adulta alfabetizada tem prazer na leitura, a poesia é esta flor que desabrocha no fundo de um abismo sem ser vista, senão por uma caravana de intrépidos aventureiros dispostos a chegar até ela para festejá-la e descobri-la. Penso sempre em Hilda Hilst, que precisou morrer para assumir o lugar que desde havia muito merecia. Basta que um artista maior esteja morto para ser honrado em grande estilo. Como se, por estar fora de combate, ele se tornasse estranhamente inofensivo. Por isso, continuamos legando ao tempo o privilégio do último juízo.

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho