Entrevista com Alexandre Soares Silva

Entrevista com Alexandre Soares Silva
Alexandre Soares Silva: bom texto, boas idéias, boa literatura
01/04/2003

Alexandre Soares Silva nasceu em 1968. Conta ele que começou a escrever com sete anos quando, numa ida ao supermercado com a mãe, pediu a ela um caderno quadriculado e começou a escrever a história de Hugue, um garoto de sete anos como ele. A partir de então, começou a escrever compulsivamente livros de aventura nunca terminados. Foi só aos 26 anos, contudo, que conseguiu publicar seu primeiro livro, A origem dos irmãos Coyote (Global). A mesma editora publicou Na torre do tombo. Ambos são livros infanto-juvenis. E finalmente um romance adulto que vinha escrevendo e reescrevendo bem devagar desde os vinte anos — A coisa Não-Deus. Ele se afirma como um quase recluso e diz não acreditar em coisas como “viver a vida intensamente“. “Prefiro viver a vida suavemente, obrigado. Ser gentil e tirar soneca no meio da tarde. Ler um bocado.”

Ao Rascunho, nesta edição de aniversário, Alexandre Soares Silva concedeu esta entrevista, que prima pelo bom-humor e por certa provocação que deveria ser (mas não é) a marca de uma geração de romancistas que recusam a pecha de brasileiros, mas apenas por preferirem a de universais. Com vocês, o próprio:

• Antes de qualquer coisa, eu queria que você me explicasse como foi conseguir editar seu primeiro livro e me dissesse quais os prós e contras de ser publicado por uma editora pequena.
Só fui publicado depois que arranjei uma agente. Antes disso, fiquei cerca de dois anos tentando publicar o livro. Recebi uma bela pilha de rejeições. Mas arranjei uma agente, e um mês depois tinha um contrato assinado. A grande vantagem de uma editora pequena é que você é importante para eles. Numa editora grande eles mal te dizem bom-dia. A menos, é claro, que você seja uma das Grandes Bestas Sagradas.

• A coisa Não-Deus passou pelo crivo de alguma editora grande? Sei que você tem um original inédito. Por que a Beca não o publicou? Você pensa em ser editado por uma grande casa editorial ou isso não faz parte de seus planos?
Passou por várias editoras grandes. Não fiquei abalado, em primeiro lugar porque não sou muito inseguro, e em segundo lugar porque vi que, nesse tempo todo, todas as grandes editoras iam publicando porcarias indescritíveis. Não é vergonha não ser publicado por uma grande editora, quando elas estão publicando as porcarias completas de Francisco Dantas ou algo assim. As Obras Completas de Ledusha. Francamente. Foi justamente aí que a Beca apareceu e publicou o livro. A Beca é uma editora pequena, mas publicaram Millôr Fernandes. Fiquei em boa companhia. Nesse sentido é melhor uma editora pequena, discreta, de bom gosto. Quanto ao meu livro inédito, eles não me disseram o motivo da recusa, mas desconfio que é porque esse segundo livro não é lá muito sério. Não tem cara, digamos, de literatura brasileira. Não tem jegue, não tem mendigo, não tem manicure, não tem traficante. Literatura brasileira tem que ter essas coisas… Mas não tenho queixas da Beca, admiro a coragem deles de publicar iniciantes. Me trataram muito bem.

• Você tem contato com a chamada “nova geração” da literatura brasileira? Digo, esta “nova geração” que já faz parte do mainstream, que integra antologias, que vira filme nas mãos de diretor cult ou seriado de TV, personificada em Mirisola, Clarah Averbuck, Fernanda Young e quetais?
Graças a Deus tenho o menor contato possível com essa gente. Desprezo o tema da violência urbana, e a maior parte desses novos escritores são obcecados por isso. “Oh, mas é a nossa realidade…” A deles, talvez. A minha realidade é ler Tolstoi sentado numa poltrona. Ouvindo Schubert. Já a Clarah Averbuck e o Marcelo Mirisola me parecem obcecados com manicures e bêbados e cobradores de ônibus e cheiradores de cola e toda essa lengalenga. Entre todos os escritores da literatura mundial, eles escolheram Bukowsky e John Fante como modelos. Acho que isso diz tudo. A história da literatura brasileira é a história de uma longa paixão pela sarjeta, e só Machado de Assis escapou disso. O que fez com que fosse chamado de alienado. Como são grandes os escritores alienados! Da Fernanda Young não posso falar porque não li nada, mas Marcelo Mirisola, desculpe, é um escritor-gentinha. Disse que leu o primeiro livro aos 26 anos. Você confiaria num médico que confessasse que leu seu primeiro livro aos 26 anos?

• Sei que parece algo muito vulgar o que vou perguntar agora, mas acho que o leitor talvez o conheça um pouco melhor se você me disser (hesitação) suas influências. Quero dizer, acho que as pessoas entenderão um pouco algo que fica visível em A coisa Não-Deus, isto é, o desapego a um estilo único, a uma única orientação, se você deixar claro aquilo que o agrada em literatura.
Dois milhões de coisas. Borges, Oscar Wilde, Nabokov, Balzac, Tolstoi, Eça de Queiroz, C.S Lewis. P.G.Wodehouse é um escritor cômico inglês que eu tenho certeza que foi um gênio. Literatura inglesa e russa em primeiro lugar, francesa em segundo, brasileira em nenhum. Realmente acho que escritores brasileiros não deviam ler muita literatura brasileira, assim como escritores guatemaltecos não deveriam ler muita literatura guatemalteca. Porque são literaturas irrelevantes quando comparadas com as literaturas inglesa, russa etc. Da literatura brasileira um escritor só pode aprender a ser ruim. Acho que a minha maior influência é Oscar Wilde. Mas com o tempo, se ele progride, as influências de um escritor vão ficando menos visíveis. Tentei fazer com que o livro tivesse uma certa leveza, uma certa petulância, uma certa frivolidade agressiva. Isso, e algum charme…

• Há quem diga (e eu concordo) que o humor está em baixa na literatura contemporânea. Não falo deste humor de A praça é nossa, de Jô Soares a Luis Fernando Verissimo; nem tampouco do humor uspiano, cuja piada você só entende depois de duas notas de rodapé; falo desde humor que encontra sua melhor tradição em Machado de Assis e que, percebo, você tenta retomar por meio de uma verve ácida e irônica a não mais poder.
O humor é mais difícil que a seriedade. Sério qualquer besta pode ser. Aliás, as bestas costumam ser solenes. Quer dizer, se alguém tentar ser solene, vai conseguir, é fácil. Escrever sobre grandes dramas, incesto, loucura, muito seriamente, como um adolescente que leu muito Dostoievski. É fácil. Mas se tentar ser engraçado, corre o risco de não ser, o que é uma humilhação. Ou de ter sucesso demais, e ninguém perceber que você é algo mais do que um Costinha literário. Os riscos são tantos que todo mundo prefere ser sério, colocando aqui e ali alguma piadinha escatológica, porque afinal a escatologia tem uma função séria, que é mostrar que a vida é horrível. E mesmo as criaturas mais solenes aprenderam a se envergonhar de sua falta de humor e tentam demonstrar que têm algum senso de humor — nem que seja escatológico. Mas os verdadeiros escritores são um pouquinho mais inteligentes do que isso… Sim, gosto de Machado de Assis por causa do humor dele, que não é humor brasileiro, humor brasileiro é humor de propaganda de cerveja, uma coisa idiota. Mesmo em filmes, prefiro comédias. Nos dramalhões, quando todos os outros estão chorando, estou fazendo pfui.

• Pode-se perceber ainda que a sua literatura é uma literatura descompromissada. Você não tenta posar de intelectual. Não se percebe em sua literatura uma necessidade de escrever uma obra definitiva. Como você mesmo escreveu: “o prazer, e não a verdade, deve ser o nosso objetivo final”.
Quanto a posar como intelectual, até já fui acusado disso, acho graça, porque tenho certeza que não sou um intelectual. Minha cultura é esburacada, leio o que eu quero, paro de ler assim que o livro me chateia. E sinceramente acho que romancistas não deviam ser muito inteligentes. Não devem ser burros, mas também não devem ser inteligentes profissionais. Imagine um romance escrito por Heidegger, que porcaria. Ou pense nos romances de Sartre. Não tenho certeza se Sartre era inteligente, mas devia ser, porque era um romancista horrível. Acho a leveza uma grande qualidade. Ter humor não é tudo, é possível ter um humor pesado, como o do Marquês de Sade. O que mais me interessa é ter um humor leve, mesmo que, quase por acidente, profundo. Que seja profundo, que signifique alguma coisa, mas que seja leve.

 • Quero saber quais são suas aspirações em se tratando de literatura. O que você espera que os livros te dêem? Dinheiro? Academia Brasileira de Letras? Mulheres? Fãs enlouquecidas no hall de um hotel no Thaiti?
Quero ser bom, quero escrever bem, quero escrever melhor do que todo mundo. Essa é a minha ambição. Bom, isso e ter fãs, sim, não seria mau. ABL? Sério mesmo, no dia em que eu estiver para entrar para a Academia, quero que você apareça e me dê um tiro. Não, melhor: peço aos gentis psicopatas que por acaso estiverem lendo este jornal que, no dia da minha posse na ABL, apareçam e me dêem um tiro. Mas só no dia da posse, por favor, compreendam bem. Não quero estimular as pessoas a sair me dando tiros indiscriminadamente. Dinheiro não seria ruim, mas sinceramente quero ser lido por pessoas inteligentes, e não dá pra ficar rico com livros se você não escreve para gerentes de RH barrigudos, como o Luis Fernando Verissimo faz. E já pensei em escrever um romance pornográfico (me recuso a dizer “erótico”) só para que as mulheres achem que eu sou muito vivido. “Nossa, ele deve ser muito vivido…” Mas a sério, sério mesmo? Minha ambição é ganhar dinheiro suficiente para viver de escrever, comprar uma bela casa, com um belo jardim, e escrever. O melhor possível.

• Um traço forte da sua prosa é a metalinguagem. Você procura deixar claro, no decorrer do texto, e sempre com bom humor, que o processo da linguagem é um processo lúdico, que você busca compartilhar com os leitores. É quase como se acompanhássemos o livro sendo escrito.
Porque um dos assuntos do livro é o charme. Não sei por que as pessoas nunca escolhem o charme como assunto (escolhem o ciúme, a criação de milho, a sífilis, o incesto, mas nunca o charme). E me parece que uma das características das pessoas charmosas é que elas estão sempre se referindo a si mesmas como se estivessem inseguras, mas é uma falsa insegurança: “Estou bem nesta roupa? Está horrível, não está? Você gostou? Gostou mesmo?” E basicamente é isso que o texto metalingüístico faz… As pessoas fazem as teorias mais profundas para explicar a metalinguagem, mas realmente acho que é só charminho. Machado de Assis foi uma espécie de gênio do charme.

• Você ganhou uma pequena notoriedade escrevendo para a internet. O que você acha deste meio, no que diz respeito à produção literária. Ou a internet ainda é um grande samba do crioulo doido onde qualquer um escreve qualquer coisa, sem nenhum tipo de filtro?
Claro, existem milhões de pessoas escrevendo porcarias na internet, mas os jornais impressos ainda não entenderam o mais essencial sobre os blogs. Nas matérias de jornal impresso sempre se referem a blogs como “diários virtuais”, como se todos os blogueiros fossem adolescentes de treze anos escrevendo sobre um passeio no shopping. Sei de quatro ou cinco grandes talentos que estão escrevendo exclusivamente em blogs. Pessoas com muito mais estilo, imaginação, humor, do que os escritores brasileiros oficiais, os publicados em papel, as grandes bestas solenes. Mas ninguém percebe isso. Quanto a mim, tenho essa notoriedadezinha pequena dos blogs. É um mundinho pequeno, a maior parte dos melhores blogueiros se conhece. No blog ponho de tudo um pouco, minicontos, frases. Grande parte da diversão é irritar leitores desavisados. É muito divertido, tremendamente, gigantescamente divertido, ser odiado. É o meu hobby. E é fácil irritar as pessoas de esquerda, elas foram criadas pra isso mesmo.

• Vá lá: dândi é um adjetivo que você escuta muito, não é mesmo? O que há de dândi verdadeiramente em Alexandre Soares Silva? E na prosa de Alexandre Soares Silva?
Não muito. Admiro os dândis. Acho que são tipos mais interessantes para escrever a respeito do que mendigos, traficantes, matutos e essa gentalha toda que os escritores brasileiros adoram. Como eu queria que Guimarães Rosa não tivesse desperdiçado seu gênio com matutos, e tivesse criado dândis. E certamente eu queria ser um, e não apenas escrever a respeito — mas simplesmente não ligo para o que estou vestindo.

• Você também tem obras infanto-juvenis. Como é se comunicar com este público, reconhecidamente desinteressado da literatura. Seu livro é recomendado por escolas? O que você acha do ensino de literatura para jovens?
É horrível, todo mundo sabe. Acho que não faz o menor sentido ensinar literatura brasileira numa escola, devia ser literatura, simplesmente. Deviam começar por Homero. Na verdade acho que deviam ensinar grego e latim e ensinar as humanidades. Não se pode achar que se conhece alguma coisa de literatura só porque se leu Iracema, santo Deus. Quanto ao fato dos alunos se chatearem com Homero, bom, acho que se chateiam muito mais com José de Alencar. Homero é violento… Meus dois livros infanto-juvenis, publicados pela Global, foram recomendados por escolas, e os alunos têm gostado, mas o ideal para mim seria conseguir chegar até os leitores sem ter que passar pelo intermediário, a escola. As escolas têm a tendência a achar meus livros pouco apropriados para crianças, porque eles não seguem as diretrizes do MEC. Quer dizer, meus livros não falam sobre drogas, gravidez precoce, violência urbana, e todas essas chatices que o MEC quer que as crianças leiam. E depois estranham que as crianças prefiram South Park. Eu também preferiria, se tivesse que ler livros com nomes do tipo “Bebéu e o Vilão das Drogas”. Francamente.

LEIA RESENHA DE A COISA NÃO-DEUS

Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho