Quando li pela primeira vez O clube dos feios, de Carlos Trigueiro, fiquei, além de muito bem impressionado, surpreso. Não parecia coisa de brasileiro. Tinha uma certa elegância, uma certa aristocracia, parecia coisa de estrangeiro. Não que brasileiros não saibam ser elegantes. Há vários prosadores em atividade que merecem o adjetivo. Mas Trigueiro é diferente. Há um cosmopolitismo genuíno, não forçado, em sua prosa. O que será fácil entender, se dermos uma olhada em sua biografia: graduado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, Trigueiro morou em cantos diferentes do mundo (Espanha, Itália, China, EUA). Agora, morando no Rio de Janeiro (parece que quietou), concedeu esta entrevista por e-mail.
• Se tivesse de classificar sua ficção, como o faria? A que estante de livraria ela pertence?
Tento fazer literatura de ficção afinada com o que percebo da condição humana (universal em inclinações, esperanças, fraquezas, distúrbios, limitações) fustigada pela consciência da temporalidade — da impermanência. Talvez uma biografia repleta de mudanças geográficas e o contato com diversos ambientes socioculturais tenham acelerado minha percepção da temporalidade que, acho, mais nítida que a consciência da morte, é a nossa fonte de inquietação de todas as horas. Embora essa consciência esteja presente em outras artes, na literatura é transcendental. Há inúmeros exemplos dessa fixação humana na temporalidade, a começar pela infinidade de “Memórias” publicadas em todos os quadrantes. Às vezes, essa fixação já aparece no título dos livros. A obra-prima de Proust é Em busca do tempo perdido, enquanto Cem anos de solidão a de Gabriel García Márquez. Nas elocubrações de Ítalo Svevo (em A consciência de Zeno) o tempo é tanto memória quanto profecia. E Faulkner é pungente: “… cada homem vem a ser a soma das suas desgraças. Se ocorre a alguém pensar que um dia essa desgraça termina, bem, nesse caso, a desgraça é o tempo”. Então, minha ficção, com a devida condescendência, não iria para uma estante com identificação geográfica (de nacionalidade), preferiria que ficasse no âmbito do pensamento de Sabato: “… o escritor é testemunha e mártir do seu tempo”.
• Seus contos saem completamente da linha urbano-violenta-escatológica, de certa forma predominante no Brasil. São eruditos, filosóficos, bem-comportados, mágicos, enfim, parecem ter sido escritos por um estrangeiro (não que não haja brasileiros eruditos e bem-comportados, ou que a linha urbano-violenta-escatológica seja ruim). Embora nascido em Manaus, morou em várias partes do Brasil e do mundo. Será essa a causa? Você se desenraizou?
“Fiz o que pude, o destino o que quis” é uma frase de Lope de Vega bem a calhar. Imagine um jovem curioso — de raízes amazonenses, alma cearense, coração carioca, sonhos de brasileiro — tendo oportunidade de ler, estudar, trabalhar, observar, comparar, viver na Itália, Espanha, China e nos Estados Unidos, além de viajar alhures… Acho que tudo que fizesse com pretensão literária agregaria alguma dose de cosmopolitismo. Quanto ao lado mágico e (quem dera) filosófico da minha literatura, talvez seja influência dos autores que li, dos ambientes fascinantes que vi e em que vivi, e, claro, da índole observadora. E sobre o lado bem-comportado em toda a minha ficção, isso é verdade, não há nem mesmo um único palavrão explícito. Nada de falso puritanismo, mas porque, penso, a emoção artística talvez seja a única preciosidade da condição humana. Acho que, no gênero literário maiúsculo, quando a palavra vaza pornografia ou ejacula obscenidade torna aquilo que descreve muito real. Roland Barthes dizia que as pessoas não querem a paixão, mas a imagem da paixão. Na minha percepção, recorrer à verbalização grotesca para desnudar tanto o instinto quanto o passional borra a essência mágica da literatura. Essa, num plano superior, deveria apenas sugerir e insinuar imagens ao leitor. Se isso não acontece, o papel sagrado do livro vira papel de embrulho, papel sanitário. Quanto ao meu desenraizamento, bem, foi provisório. Não perdi minhas raízes. Tanto assim que O livro dos desmandamentos – Profecias de um excluído (Bertrand, 2004) procura eviscerar com o gume da alegoria as misérias sociais e políticas do Brasil nos últimos cinqüenta anos, e “…serve de instrumento relevante para entender os excessos políticos impostos aos analfabetos e miseráveis do país”, segundo resenha do livro na Biblioteca do Congresso, dos Estados Unidos, claro, sabemos que “santo de casa não faz milagre”.
• Alguns de seus contos parecem impregnados de filosofia fenomenológica (Heidegger, Husserl). (Por exemplo: Terminais) É consciente?
Talvez seja mais intuitivo do que consciente. Só fui saber um pouco da filosofia alemã nos bancos universitários, enquanto bem cedo, e ao vivo, impactos existenciais pesavam na minha formação psicológica. Em Memórias da liberdade, isso já aparece no menino de sete ou oito anos, no interior do Amazonas, numa canoa, seminu, inculto, sem nenhuma fobia freudiana, nenhum desejo de reconhecimento lacaniano, admirando a grandiosidade das águas e da floresta, o vôo da passarada, a necessidade de perceber a essência das coisas para viver e sobreviver. Depois, outro impacto: ainda adolescente, trabalhei num sanatório psiquiátrico, onde pude encarar as mil faces da angústia, perceber a precariedade da existência, os absurdos do comportamento humano, ter consciência do caminho indesviável para a morte. O conto Terminais reflete o aprendizado desta fase, digamos, hospitalar. Mas o esbocei quando vivia na China, que também foi uma experiência tremenda: tentar compreender a existência sob a interpretação de uma cultura que há 5.000 anos observa, naturalmente, a essência das coisas.
• Em Confissões de um anjo da guarda, noto certa tendência até então inexistente em seus contos. Uma questão de cor, O jornalista e Clínica para normais são um tanto doutrinários, o que, penso eu, os empobrece um pouco. É mesmo uma tendência? E (de novo) é consciente?
É consciente, porém menos tendência e mais coerência com o propósito da obra, já que o anjo Mahlaliel enfatiza no conto que dá nome ao livro: “Tudo começou porque pensei além do permitido nas cortes celestes… Tornei-me um anjo da guarda dissidente… Quero abalar crenças e descrenças… Então, melhor confessar de uma vez que os anjos varrem a imundície dos céus para debaixo das nuvens. E como todas as porcarias costumam vir de cima, está mais do que explicado por que os humanos pegam, pensando que é de Graça, tudo que não presta”. Hoje, mais maduro, estou convencido de que cada leitor percebe aquilo que lhe interessa. Se existe algum tipo de doutrinação deliberada no livro talvez esteja mais visível nesta confissão de Mahlaliel: “Ressalvo que o ato de contar histórias é invenção do homem. Somente o gênero humano é capaz de falsear e subverter o uso da língua de tudo quanto é maneira, desde promessas de políticos em campanha, ao tropismo boca a boca nas imagens de telenovelas — delito que uma parcela das elites comete, outra propaga, outra custeia, outra acoberta. Delito em cadeia, como se vê. Mas é só trocadilho, ninguém vai preso”. Enfim, me permitindo parodiar o pensamento de Sábato, diria que o escritor é testemunha, verdugo e mártir do seu tempo.