Para Iacyr Anderson Freitas, todo poeta nasceu para ser antologiado. “Quando lemos qualquer livro de poesia, separamos as peças que mais nos tocam”, diz. “Esse é um processo normal, a consolidação de um caminho de leitura capaz de imprimir o rosto do leitor nas obras.” Sobre sua reação à edição da antologia poética Terra além mar em Portugal, Iacyr conversou com o jornalista e pesquisador Jorge Sanglard e com o escritor Luiz Ruffato. Na entrevista, o poeta mineiro também discorreu sobre as influências que mais marcaram sua escrita e analisou a qualidade da poesia brasileira atual.
• Ruffato — Quais escritores — poetas ou prosadores — influenciaram diretamente a sua formação literária?
Meu envolvimento com os livros se deu muito cedo. Com apenas 11 anos eu já havia lido boa parte dos romances de José de Alencar e de Machado de Assis. Mas a poesia entrou mais tarde na minha vida, aos 16, e por obra de uma pequena coletânea de Manuel Bandeira, comprada numa banca de jornal e “devorada” com devoção. Logo vieram as outras descobertas poéticas: Drummond, Murilo Mendes, Raul Bopp, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto, Mario Quintana etc. Na prosa, o maravilhoso conhecimento das obras de Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Esse talvez tenha sido um traço bem característico de minha geração: nossas leituras podiam estar inicialmente voltadas apenas para a literatura brasileira, sem complexos de inferioridade. Nosso grande patrimônio literário já estava consolidado nos anos 70, felizmente. Ampliando o leque, podíamos apelar para a matriz portuguesa: Camões, Bocage, Antero, Pessanha, Cesário Verde, Pessoa e muitos outros. Esse luxo, creio, as outras gerações brasileiras, anteriores, não tiveram. Depois vieram os estrangeiros: o conhecimento da literatura argentina, da grande lírica francesa e do Grupo poético de 1927, na Espanha, por exemplo, além da maravilhosa contribuição italiana.
• Sanglard — Mesmo sendo um dos autores mais premiados do Brasil, sua obra em poesia e em prosa ainda sofre com os problemas de distribuição num país continental. Como superar isso?
Algumas premiações, as melhores, permitem certa visibilidade ocasional de obras ou autores. Mas quando são conferidas a livros inéditos — e são cada vez mais raras aquelas que garantem a publicação digna do original premiado —, essas distinções não geram uma visibilidade efetiva, pois tais livros não estão disponíveis nas livrarias no momento da divulgação dos resultados. Ou seja: pipocam algumas notas ou matérias esparsas nos jornais, mas os livros destacados ainda não existem para o leitor. E talvez não venham a existir nunca, tendo em vista as dificuldades de publicação de textos poéticos no Brasil. Quando chegam a ser editados, geralmente aos trancos e barrancos, algum tempo depois, a visibilidade alcançada a duras penas já se tornou pó. Por isso, entre outras coisas, a maioria das premiações tem pouca influência na distribuição efetiva das obras para as livrarias. Mas quando o assunto é distribuição de livros de poesia (a quase totalidade de minha obra), bem como de volumes de contos de autores nacionais ainda não incensados pelo mercado livreiro ou pela mídia, problemas não faltam. A superação desses obstáculos depende de uma série de medidas, passando, por exemplo, pela consolidação de políticas de incentivo à leitura e pela alteração do papel da literatura na escola.
• Ruffato — Como você vê a produção atual da poesia brasileira?
Há muitos poetas de qualidade atualmente no Brasil, e em plena fase produtiva. A maioria, infelizmente, por conta dos nossos problemas habituais, imersa no mais completo abandono editorial, condenada ao anonimato. Por outro lado, há também uma parcela de poetas que, embora encontre divulgação e visibilidade nos segundos cadernos da vida, ainda não construiu obras de qualidade — e não me parecem, à distância, comprometidos com tal idéia. Esse é um fenômeno comum, já histórico em nossos tristes trópicos. Não obstante, talvez agora a situação esteja mais grave, talvez os obstáculos sejam maiores, pois a quantidade de “poetas” que não conhecem nada de poesia é enorme. E isso corrompe, na cabeça de qualquer leitor, a imagem do próprio gênero lírico, abrindo espaço para novos aventureiros. No meio desse turbilhão, é realmente difícil separar o joio do trigo. Como muitos dos jornalistas dedicados aos cadernos de cultura não têm, infelizmente, nenhuma bagagem cultural, alguns desses aventureiros acabam conseguindo seus centímetros de fama nos periódicos. E o círculo vicioso, assim, amplia sua rede de danos.
• Sanglard — Terra além mar alcançou grande repercussão em Portugal, sendo destacada em diversos jornais da terrinha. Pelas suas características editoriais, ela já nasceu como raridade. Essa vertente de publicações numeradas, assinadas pelo autor e com tiragens limitadas pode dar certo no Brasil?
O mercado de livros para colecionadores e bibliófilos é relativamente sólido na Europa, mas ainda é tímido no Brasil. Apesar disso, tem potencial para crescer substancialmente por aqui. Leitores informados tendem a valorizar certos aspectos editoriais ou gráficos de algumas publicações. Terra além mar já nasceu como raridade, realmente. A despeito da boa distribuição nas livrarias portuguesas, sua tiragem foi de apenas 450 exemplares, todos espelhando a minha rubrica, sendo 400 numerados seqüencialmente. Os 50 exemplares restantes, não numerados, foram destinados à divulgação do lançamento lisboeta, ocorrido em 10 de maio deste ano na Casa da América Latina. O miolo e as capas foram impressos em papel especial e, ao final do volume, na página destinada à numeração do exemplar, consta o compromisso da editora portuguesa (e meu também) de não permitir a reedição da obra com as mesmas características técnicas e artísticas da edição princeps. Buscando preservar o caráter extraordinário da publicação, a estampagem dos poemas respeitou a ortografia brasileira, o que não é comum por lá. Ou seja: tudo foi feito para que Terra além mar seja uma antologia ímpar, sem sombra de dúvida.
• Ruffato — Embora você seja contemporâneo de uma certa “poesia marginal”, mais prosaica que lírica, seu posicionamento é mais clássico. Por quê?
Acredito que essa dessemelhança seja própria da literatura, em toda a sua já longa história. Por conta da periodização literária que absorvemos, geralmente a fórceps, nos bancos das escolas, olhamos para as obras do passado “com outros olhos”. Assim, tendo por base finalidades meramente didáticas, procuramos destacar determinadas linhas de força, aparando as arestas e comprimindo a multiplicidade reinante, mas correndo o sério risco de jogar no lixo, desta forma, boa parte das distinções que sustentam o próprio universo literário. Não obstante, quando lemos, por exemplo, sem reservas acadêmicas, dois poetas enquadrados sob o mesmo rótulo pacificador de uma certa escola literária, observamos melhor a força das inclinações individuais. Essa dessemelhança é o motor de todas as culturas.
• Sanglard — Para um poeta, como é ver sua obra selecionada e reunida numa antologia por outro autor, sendo publicada fora do Brasil?
Sempre afirmei que todo poeta nasceu para ser antologiado. Quando lemos qualquer livro de poesia, separamos as peças que mais nos tocam. Esse é um processo normal, a consolidação de um caminho de leitura capaz de imprimir o rosto do leitor nas obras. Eu mesmo me vi forçado a passar por essa prova de fogo, quando organizei minha antologia anterior, Oceano coligido, publicada em 2000. Não obstante, para quem responde pela autoria dos textos, a missão de expurgar talvez seja mais difícil e penosa. Afinal de contas, nossa relação de paternidade — acesa em cada fração de frase, em cada naco de palavra — não permite qualquer isenção. Estamos dentro do que escolhemos e, ironia extrema, estamos dentro do que alijamos também. Ter uma antologia poética publicada fora do Brasil, numa edição tão bela quanto Terra além mar, com todo o processo de seleção — extremamente cuidadoso e inspirado, devo reconhecer — sendo realizado por outro autor, é motivo de grande orgulho, realmente. Só tive essa antologia em mãos quando já me encontrava em Portugal, poucos dias antes do seu lançamento em Lisboa. Recebi um pequeno pacote de livros no hotel em que me encontrava hospedado, no Porto, na região de alguns de meus antepassados. Fiquei verdadeiramente satisfeito com o resultado. A edição me surpreendeu e me emocionou. Também, tendo em vista tudo o que representava aquela publicação, eu não poderia me sentir de outro modo.
• Ruffato — Você acha que a poesia brasileira tem a visibilidade da sua importância?
Não. O grande patrimônio formado pela lírica brasileira não tem visibilidade efetiva. E não é qualquer país que pode apontar para a totalidade de sua história lírica e relacionar os nomes que produzimos apenas no século 20: Bandeira, Drummond, Bopp, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mario Quintana, Henriqueta Lisboa, João Cabral, Mário Faustino, Ferreira Gullar e mais um rosário de grandes poetas, alguns infelizmente esquecidos. A despeito de todas as políticas de exclusão, tão cruelmente implementadas no Brasil, erigimos uma literatura notável. Sem embargo, boa parte desse patrimônio desapareceu das estantes das livrarias e até mesmo dos departamentos de Letras das universidades. Poucas são as pesquisas dedicadas à poesia. A natureza desse problema é bem mais complexa do que parece. E as soluções não serão alcançadas com facilidade.
• Sanglard — Qual é o seu desafio literário atual?
Para quem possui mais de uma vintena de livros publicados, o grande desafio é sempre encontrar o melhor caminho para continuar escrevendo com qualidade e sem se repetir. A essência desse desafio — que é desmedido por natureza — envolve também o avesso da moeda: perceber o momento de não publicar coisa alguma, pelo menos até que ventos mais favoráveis surjam no horizonte. Se tais ventos não surgirem, o melhor a fazer é não fazer livros. De obras menores o mundo anda cheio. Afinal de contas, não temos mais aquela profusão de água limpa em nossos poços. O manancial já não mana como dantes. E não podemos trair o caminho percorrido, enxertando, ao final do cultivo, erva-de-passarinho na nossa árvore bibliográfica.
• Ruffato — Parece que você é um poeta que não evoluiu na forma. E isso não é uma crítica, é um elogio. Ou seja, parece que, desde seu primeiro livro, você já sabia exatamente onde queria chegar. Você concorda com essa afirmativa?
Quando volto os olhos para o meu conjunto de obras — e em poesia já tenho 16 títulos publicados —, essa afirmativa não me parece muito razoável. Meus primeiros livros carecem de densidade, a meu ver. Sinto que comecei a publicar meus poemas cedo demais. Embora eu buscasse revisar, sem trégua, tudo o que escrevia, procurando encontrar eventuais falhas e flagrar as melhores soluções, faltava-me a indispensável maturidade para levar a bom termo tamanha incumbência. Não me arrependo, em suma, da minha trajetória bibliográfica. Mas acredito que minha obra estreou, ainda titubeante, bem depois do primeiro livro. Penso que essa “inauguração” se deu apenas com O aprendizado da figura, publicado em 1989.