Cenário cotidiano, a cidade, a minha, a sua — seja ela qual for, esteja onde estiver — é muito mais indecifrável do que aparenta. Tentar traduzir uma cidade pode parecer tarefa simples, enquanto projeto. A partir do momento em que se inicia a empreitada, a situação se complica. Não são poucos os que partem em busca de estatísticas, mapas, depoimentos e, no final, não chegam em nenhum lugar, ou, no máximo, em um lugar-comum. Por mais incrível que possa parecer, são os cronistas, munidos unicamente da percepção, que conseguem captar a alma das cidades. E é justamente a alma de Curitiba que encontramos no recém-lançado Onde me doem os ossos, de Ernani Buchmann.
São 23 crônicas, algumas publicadas em jornais e revistas locais, outras inéditas. Estes textos (crônicas que são) revelam, obviamente, como o autor se projeta na cidade e como a cidade se reflete nele. Buchmann analisa e reclama do clima, do frio tão característico de Curitiba. E talvez seja este um dos elementos que tanto influencie o comportamento dos habitantes da capital paranaense. Tímido, fechado, carrancudo em algumas ocasiões, o curitibano não abre o jogo nos primeiros, nem nos segundos ou terceiros contatos. Muitas vezes, nem nos seguintes.
O cronista consegue, em poucas linhas, definir precisamente o jeito curitibano de ser: “Gosto desta timidez polaca que nos faz atravessar a rua para evitar o cumprimento ao amigo que vem lá. Somos tão reservados que se víssemos a própria sombra caminhando em sentido contrário, desviaríamos. E, sem olhar para trás, o traço grosseiro que trazemos atávico diria alguma maldade”. Em sua busca de pistas que ajudem a desvendar a cidade, Buchmann catalogou palavras que, se não foram inventadas na província, seguramente fazem parte do vocabulário, da cultura oral, como penal, ynhapa, piá, búrico, croca, vina, entre outras curitibanidades.
O olhar do cronista enxerga alguns monumentos e eventos oficiais, indiscutivelmente cafonas. No entanto, a maior implicância dele é com o carnaval curitibano, que não passaria de obra de ficção. E argumentos para comprovar a tese não faltam. Mas ao contrário de Dalton Trevisan, que espuma de raiva diante de algumas manifestações locais, Buchmann vale-se de ironia, de senso de humor e, em irmandade com o vampiro, de um saboroso texto. Tanto, que sua prosa chega a estimular as papilas gustativas, sobretudo, nos momentos em que aponta os endereços gastronômicos de sua preferência, revelando, por exemplo, onde podem ser encontrados inigualáveis bolinhos de bacalhau, batatas, carne de onça e outros tira-gostos.
Apesar de em alguns textos também retratar personagens e até mesmo ironizar-se, o que predomina é o olhar crítico sobre a cidade. Se até agora, de uma maneira geral, jornalistas culturais simplesmente ignoraram o autor, daqui em diante a situação deve se modificar. Com a publicação de Onde me doem os ossos, Ernani Buchmann passa a fazer parte da escalação do time titular da primeira divisão dos autores que, pela ficção ou não, colaboram para a compreensão dos mistérios de Curitiba. Time este que conta com o já citado Dalton Trevisan, além de Wilson Martins, Cristovao Tezza, Roberto Gomes, Carlos Dala Stella, Wilson Bueno, Carlos Alberto Pessôa, Jamil Snege, Fábio Campana e Miguel Sanches Neto — autor do excelente Hóspede secreto, que se torna ainda mais secreto ao ser completamente ignorado pelos resenhistas e comunicólogos dos segundos cadernos de todo Brasil.
P.S. Onde me doem os ossos apresenta um caprichado projeto gráfico, assinado por Luiz Antonio Solda, também responsável pelas ilustrações — que, sozinhas, renderiam outro livro.
Ernani Lopes Buchmann (1948) nasceu em Joinville (SC), tendo migrado ainda jovem para Curitiba. Formado em Direito, atuou como cronista esportivo em diversos veículos de comunicação. No entanto, seu nome está vinculado à propaganda: Buchmann é um dos mais bem-sucedidos publicitários em atividade no Paraná, armazenando no currículo passagem — como diretor de criação — pelas maiores empresas do ramo no Estado, entre as quais, Exclam, Master e Get. Publicou os livros Cidades e chuteiras (Módulo 3, 1987) — crônicas, Os heróis da liberdade (Letra Viva, 1999) — ficção, e Quando o futebol andava de trem (Imprensa Oficial do Paraná, 2002). Nesta entrevista ao Rascunho, o assunto principal foi a cidade onde os ossos do escritor doem. E muito.
• Jamil Snege tem um livro de crônicas chamado Como tornar-se invisível em Curitiba, título de um texto homônimo que dá a entender que a melhor maneira de ser ignorado em Curitiba é ter talento. Você acredita que os jornalistas culturais locais ignoram sua produção de escritor pelo fato de você ser um dos mais bem-sucedidos publicitários em atividade no Paraná?
Acho que esta é uma das razões. Outra é a de que boa parte dos jornalistas culturais locais não é muito atilada com relação à produção na área — o que é um contra-senso, já que ela [a produção cultural] é a matéria-prima do trabalho deles. Há outro detalhe: os jornalistas culturais restringem-se às próprias patotas. Em terceiro lugar, nunca saí pedindo para que ninguém publicasse o quê, ou sobre o quê, escrevo.
• Nas crônicas aglutinadas em Onde me doem os ossos está evidente, ao mesmo tempo, seu amor por Curitiba e inúmeras críticas à cidade. Você diz com todas as letras que o carnaval é inviável em Curitiba, analisa o comportamento dos curitibanos, passando pelo frio e outras manifestações da capital paranaense. O fato de você ter nascido em outra localidade, Joinville (SC), mas ter sido adotado pela capital paranaense, lhe dá uma certa autonomia para olhar, analisar Curitiba?
Não sei se Curitiba me deu autorização para falar mal dela, mas falo mesmo assim. Acho que certas badalações sobre a cidade são ridículas. São coisas que têm origem no oficialismo, e o oficialismo é, de maneira geral, ridículo. Além do quê, no que diz respeito ao carnaval curitibano, ele não existe mesmo. É uma ficção, produto de nossas piores neuroses. Também falo de coisas que me tocam. O fato é que me sinto curitibano. Moro na cidade há mais tempo do que a grande maioria dos curitibanos nascidos aqui. Estudei aqui, fiz faculdade aqui e meus filhos nasceram aqui. Portanto, acho que sou merecedor desta liberdade.
• Como está a adaptação de seu livro Os heróis da liberdade para o cinema?
Os direitos de filmagem de Os heróis da liberdade foram vendidos para o Lucas Amberg logo após o lançamento, em 1999. Ele está tentando viabilizar. Conseguiu uma pequena parte dos recursos necessários com a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná. A cidade de Joinville (SC) já se comprometeu a disponibilizar a infra-estrutura. E a finalização deve ser feita na França, caso o projeto seja aprovado pelo programa de incentivo deles aos filmes de países do terceiro mundo. Faltaria, então, a parte principal, algo em torno de R$ 900 mil, que a Amberg Filmes está procurando em Santa Catarina. No Paraná, excetuando os R$ 150 mil da Secretaria de Cultura, todas as alternativas deram em nada. Posso dizer, portanto, que os heróis estão sofrendo por falta de liberdade. Liberdade financeira.
• Seu livro anterior, Quando o futebol andava de trem, foi o título de autor paranaense mais vendido durante a 48ª Feira do Livro de Porto Alegre, que aconteceu em novembro de 2002, ocasião em que o Paraná foi o Estado homenageado. Aqui em Curitiba, também é o livro de autor paranaense mais comercializado, por exemplo, na Livraria do Eleotério, uma das principais da cidade. Você poderia imaginar que o livro fosse obter tamanha repercussão?
Eu não esperava o sucesso comercial com este livro. Inclusive, brinquei com alguns amigos, como o Jamil Snege, dizendo que só eu e o revisor, este por obrigação profissional, leríamos aquelas histórias todas. Mas aconteceu o inverso. Meus, até então, parcos leitores viraram algumas centenas. Quando o futebol… vem sendo bem vendido, por exemplo, na Livraria Pontes, em Campinas (SP). O próprio Pontes chegou a me dizer que se houvesse distribuição para as grandes livrarias nacionais, o livro seria um best seller. Sei lá. A minha opinião é de que o livro apenas resgatou um pedaço importante do futebol brasileiro, de sua época romântica. Foi um trabalho de três anos, do início da pesquisa até o lançamento. Viajei, entrevistei, pesquisei na internet e por telefone, uma trabalheira do cão. Mas valeu.
• Você já publicou crônicas, ficção, pesquisa histórica e agora novamente crônicas, tendo transitado por todos os gêneros com boa desenvoltura. Em que gênero você se sente mais à vontade?
Antes de tudo, escrevo. E escrever é algo que me faz bem. Sou cronista há mais tempo do que ficcionista, ainda que tenha me sentido à vontade fazendo Os heróis da liberdade. Esta variação é uma necessidade de oxigenação. Não se pode esquecer que passei a vida escrevendo textos publicitários, o que significa parir desde discurso para cliente ler em solenidade até anúncio fúnebre, passando por comerciais para tevê e folhetões institucionais. Há uma variedade intrínseca à atividade. Talvez seja esta a origem da minha, vá lá, inconstância em relação aos gêneros.
• Qual seu próximo projeto?
A publicação de Onde me doem os ossos é o primeiro passo para que eu encerre minha carreira de cronista em livro. Restam dois outros temas. O primeiro é O ponta perna de pau, seleção de crônicas sobre futebol, assunto recorrente em minha vida de cronista, que deve ser publicado, nos próximos meses, pela Travessa dos Editores. Depois, há O caçador de moscas, que reúne 14 histórias dos bastidores da propaganda, algumas de chorar de rir. É um livro de 50 mil caracteres, coisa pequena, para um público específico, sobretudo, profissionais e estudantes de comunicação. Os originais estão nas mãos do Bira Menezes, que foi meu parceiro em muitas agências e em muitas das histórias. Gostaria que fosse um livro com papel mais encorpado, talvez até com capa dura: como se o projeto gráfico transformasse cada crônica em um anúncio. Vai depender da inspiração do Bira.
• E, pra terminar — plagiando a pergunta inicial do projeto Inventário das sombras, do José Castello —, por que você escreve?
Fazendo uma analogia um tanto grosseira, diria que escrever tem, para mim, uma função fisiológica. E, como as funções fisiológicas, você pode escrever por necessidade rotineira, por necessidade emergencial e até por prazer. Procuro fazer com que as do terceiro grupo sejam a maioria. E espero nunca precisar de nenhum tipo de viagra literário. Mas isto são os leitores que irão dizer.