Maria José Silveira, formada em Antropologia, se interessa por remover o véu de invisibilidade que continua ofuscando as mulheres. No começo deste ano, a autora goiana publicou o romance Maria Altamira, no qual conta a história de duas personagens enfrentando catástrofes: uma provocada pela natureza e outra pela mão insana do homem. “Não sou historiadora, embora meus romances estejam muito vinculados à construção de uma memória em que as mulheres apareçam exercendo suas inúmeras potencialidades”, diz em entrevista ao Rascunho.
No ano passado, seu romance A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, escrito com o objetivo de “mostrar mulheres fortes que se recusam a ser vítimas da sociedade”, foi reeditado pela Globo e ganhou um capítulo a mais. Publicada originalmente em 2002, a obra parecia ter nascido em um momento em que o feminismo ganhava espaço e volta agora, mais de 15 anos depois, quando o movimento adquire novo fôlego.
• A senhora poderia revelar alguns aspectos de estilo que vê como um desenvolvimento próprio de sua escrita (desde A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas)? E em relação ao enredo de Maria Altamira, o que o leitor pode esperar em relação às personagens mulheres e à história do Brasil?
Em relação ao estilo, eu diria que estou ainda mais atenta à questão da oralidade. Há, como muitas vezes em meus romances, uma multidão de vozes também nesse — de indígenas, ribeirinhos, interioranos, e das protagonistas, uma quéchua, outra quéchua-juruna —, e procuro mostrá-las de uma maneira que se sustente em uma narrativa literária. Um dos encantos da linguagem, para mim, é justamente sua plasticidade, sua transformação incansável, seus diversos modos de se expressar. Vou atrás disso. Quanto ao enredo, talvez eu deva dizer antes que não sou historiadora, embora meus romances estejam muito vinculados à construção de uma memória em que as mulheres apareçam exercendo suas inúmeras potencialidades, daí porque eles às vezes adquirem esse viés. Mas sou antropóloga, e o que me interessa sempre é desvendar os véus que até hoje continuam querendo envolver as mulheres em uma obscuridade intencionalmente fabricada. Procuro também, sempre que possível, olhar para a América do Sul, esse outro mundo tão perto, tão dessemelhante mas com problemas estruturais tão parecidos. No meu novo romance, publicado pela Editora Instante, são duas as mulheres protagonistas. A primeira está entre os poucos sobreviventes do soterramento de uma cidadezinha nos Andes peruanos, provocada pelo desabamento do pico do nevado que dominava a região. Em choque, ela inicia uma jornada por alguns países da América Latina, e acaba chegando à Altamira, no Pará, onde foi construída a Usina de Belo Monte. A segunda protagonista, Maria Altamira, nasce nessa cidade. O romance trata dessas duas mulheres enfrentando catástrofes: uma provocada pela natureza e outra pela mão insana do homem.
• No início de A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, uma voz anuncia que contará as histórias das mulheres da família. A voz, em certo momento, alerta-nos: “Se em algum momento acharem que estou passando depressa demais pelos varões, não venham me acusar de feminismo tardio. Já lhes digo de antemão que a vida dos homens é tão interessante quanto a das mulheres, e se não entro mais na seara deles é só para atender ao desejo de vocês”. Assim, o interesse do leitor é o que justifica o recorte pelos personagens femininos. O que seria um feminismo tardio? E parece-lhe que os leitores estão ávidos por saber as histórias das mulheres de suas famílias e de seu país?
Quando escrevi o romance, no começo do século 21 (sua primeira edição saiu em 2002), parecia haver certa calmaria em relação ao feminismo. O primeiro grande movimento feminista que presenciei foi nos anos 1960, 70 e 80. Digo “presenciei” porque, embora, evidentemente, sempre estivesse a favor de suas bandeiras igualitárias, não fui uma militante do movimento das mulheres. Minha opção foi pela luta revolucionária dos trabalhadores contra a ditadura civil-militar. Ainda que as feministas também fossem trabalhadoras e também lutassem contra a ditadura, havia uma diferença, seu foco principal era a questão feminina, como o próprio nome indica. Sempre houve uma grande discussão em relação a essas definições e creio até que afirmar o que acabei de afirmar no trecho que você destacou provocaria debates. De qualquer maneira, não era a minha luta específica, não foi a minha praia. Por outro lado, essa luta feminista à qual me refiro havia perdido o seu ímpeto no início dos anos 2000. Creio que houve um paradoxo: certa ilusão, de nossa parte, de que as vitórias então conquistadas traçavam um caminho sem volta, ao mesmo tempo em que a própria oposição ao movimento, que desde o início procurara ridicularizá-lo, ganhava uma batalha no sentido de fazê-lo perder sua força inicial. Curioso pensar agora que, na luta pela democracia, houve a mesma ilusão: pensávamos que um governo como o atual jamais ressurgiria no país. Assim, quando escrevi um romance que procuraria tratar da história da nossa formação a partir de suas mulheres, quis brincar com essa ideia de “feminismo tardio”, ao adotar uma visão que poderia ser considerada feminista. Por isso, também, a ressalva que fiz. Hoje, como o feminismo ressurgiu com nova força, talvez eu não dissesse isso assim. Ou diria de outra maneira. Ou diria da mesma maneira, vai saber! Quanto à segunda parte de sua pergunta, a resposta que o romance teve dos leitores desde a primeira edição mostrou que havia, sim, uma avidez por conhecer melhor a nossa história em um país que fez questão de envolvê-la, continuamente, com o véu da invisibilidade.
• A estrutura do romance, os nomes das personagens, a árvore genealógica ao início e o enredo de uma história nacional contada por outro ponto de vista, o do dominado (no seu caso, o das nativas), fazem ressoar Gabriel García Márquez e seus Cem anos de solidão. A senhora poderia nos contar um pouco sobre sua vivência na América Latina (Peru) e sua relação com a literatura latino-americana?
O romance não poderia receber um elogio maior do que esse de “fazer ressoar” a obra-prima de Gabriel García Márquez. Já escutei isso de alguns leitores, inclusive resenhistas, como recentemente na Itália. Esse “ressoar”, se de fato for procedente, deve vir justamente do chão sul-americano do qual esses romances se originam. Vivemos quatro anos em Lima, Peru, eu e meu marido, exilados. Foram anos que nos marcaram profundamente. Fizemos o curso de Antropologia na Universidad Mayor de San Marcos, tivemos professores e colegas que até hoje são nossos amigos, participamos de uma pesquisa antropológica em comunidades camponesas dos Andes peruanos, publicamos um livro com o resultado dessa pesquisa, tivemos nosso primeiro filho. Como vê, mais fundamental do que tudo isso, impossível. Já escrevi um romance onde o Peru, com seu Tupac Amaru, entra como um dos protagonistas — Com esse ódio e esse amor (2010), verso de um belíssimo poema de um dos maiores escritores peruanos, José María Arguedas. E no romance Maria Altamira, o Peru mais uma vez entra em cena com uma protagonista que vem dos Andes, expulsa por uma avalanche que soterra sua cidade — catástrofe natural acontecida no começo dos anos 1970. Ela segue em uma jornada por alguns países da América Latina, até chegar a Altamira, no Pará, onde encontra outra catástrofe, dessa vez provocada pela mão humana, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
“Um dos encantos da linguagem, para mim, é justamente sua plasticidade, sua transformação incansável, seus diversos modos de se expressar.”
• A literatura brasileira faz parte da literatura latino-americana no seu ponto de vista? Se sim, em que sentido? Se não, o que parece faltar para essa união?
Deveria fazer, mas receio que não faça. Há muito desconhecimento de um lado e de outro, provocado tanto pela língua quanto pela falta de uma união maior entre esses países. Quando chegamos ao Peru, descobrimos escritores dos quais jamais tínhamos escutado falar, como, para citar apenas um, José María Arguedas, um dos grandes, traduzido nos anos 1970 no Brasil, quando houve uma brevíssima tentativa de criar um interesse maior pelos “hermanos latinos”, época em que surgiu o brilhante periódico cultural Versus, de curta vida. E até hoje é assim: você vê algumas tentativas de traduzir autores que não apenas os argentinos, mas lamentavelmente são poucas. Mesmo agora as nossas editoras não se interessam muito pelo lado de lá, nem as deles pelo lado de cá — a recíproca é bem verdadeira. E não se interessarão enquanto não houver uma política de união cultural entre esses Estados vizinhos que poderiam ser mais fraternos e interessados um no outro, mas estão longe disso.
• O romance A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas foi traduzido para o inglês e ganhou nova edição brasileira, com um capítulo especial final, que traz a história até os nossos dias. Como foi a recepção no mundo anglófono? E o novo capítulo altera ou reifica a versão original?
Não posso me queixar da recepção do romance lá fora. Recebi resenhas críticas muito boas e as traduções têm vendido direitinho. Quanto ao novo capítulo, ele é a continuação da mesma visão que me fez escrever o romance: mostrar mulheres fortes que se recusam a ser vítimas da sociedade e procuram fazer seu papel de construtoras de um país com menos injustiças e mais igualdades.
• História, gênero, loucura feminina, repressão política e mestiçagem parecem ser os principais interesses de estudos sobre a sua obra até o momento. Como a senhora vê as análises literárias que seu trabalho tem suscitado?
Vejo-as com grande interesse e me espanto como cada leitor/leitora, cada estudioso/estudiosa tem uma leitura diferente. Cada um destaca e aprofunda este ou aquele aspecto do romance. Sempre fico muito feliz quando recebo alguma referência ou trabalho a respeito. Pena que nem todos os que debatem e analisam o romance me enviam suas notícias. Seria um ótimo feedback se enviassem. É sempre bom para quem escreve escutar a voz de seus leitores.