Contos, freqüentemente

Entrevista com Hélio Pólvora
Hélio Pólvora por Ramon Muniz
01/04/2012

Nunca é tarde para o acolhimento de um contista de qualidade, como Hélio Pólvora, na coleção Melhores Contos, da Global, dirigida por Edla Van Steen. O gesto chega na fase de plenitude criadora deste autor baiano que, aos 83 anos, e com cerca de 30 livros publicados, abraça o romance, após dedicar a vida literária ao exercício do conto, sem dúvida a sua grande paixão, parece que agora sazonada de vez.

A partir da estréia, em 1958, com a coletânea Os galos da aurora, Hélio Pólvora aprofunda e alarga o seu conceito de conto literário: sua short story não é mera anedota, não se resume a peripécia ou mero incidente; é o conto artístico, porque a literatura é, para ele, arte aberta a investigações e aventuras. Pode parecer exagero, mas qualquer conto de Pólvora, ou quase todos, escolhido ao acaso dentre os 120 que escreveu, é um texto denso que preza o verossímil, ao mesmo tempo em que deflagra a sugestão e instiga o leitor a descobrir o que há na parte submersa do relato. Sim, porque o escritor que ele é dota o texto de significados vários, inclusive metalingüísticos. Também crítico literário, Pólvora sabe levar pontos de vista para o conto e, se para tanto precisa seguir a via da intertextualidade, assim o faz como quem revolve camadas com destreza, uma a uma, nas complexas dobras e escaninhos da arte e da vida.

Por seu muito saber do quanto viver é negócio perigoso, conforme anotou João Guimarães Rosa, o contista Hélio Pólvora não permite que se lhe escapem circunstâncias e vicissitudes eloqüentes; garante ao leitor, se entusiasmado ou cúmplice, estupefato ou indignado, mais de uma leitura, segundo planos narrativos insinuados ou interpostos, e mais os protagonistas que narram e são narrados. Por vezes o seu leitor indagará quem narra, de fato, e em que tempo exato.

Os mais recentes títulos de Hélio Pólvora são romances: Inúteis luas obscenas e Don Solidon, ambos editados pela Casarão do Verbo, respectivamente em 2010 e 2011, sendo que o primeiro título foi um dos finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura. É de 2011 a edição de seus Melhores contos, seleção e estudo introdutório de André Seffrin. E mais: está no prelo, a sair em edição da Academia de Letras da Bahia — da qual é membro — uma antologia pessoal, ao modo de Borges, em dois volumes alentados que reúnem 70 histórias curtas — as preferências do ficcionista. Com tanto para comentar, o escritor aborda em entrevista todos esses eventos, a vida dedicada à literatura e a obra que vem construindo.

• A seleção de 15 contos para a antologia da Global, Melhores contos de Hélio Pólvora, feita por André Seffrin, leva o leitor a concluir que qualquer escolha representaria bem a sua contística, tal o patamar que as narrativas alcançam. É uma peculiaridade ou há o cuidado de publicar somente o que julga melhor, com vistas a um padrão uniforme de qualidade?
A emoção é má conselheira. Deixo o texto esfriar, sujeito a reprovação ou aprovação posterior, quase sempre com ressalvas. Há casos de revisões radicais. O ficcionista teria de ser exigente a partir da ferramenta da linguagem atrelada à expressão. Se esta for de fato pessoal, ele satisfará, assim, um compromisso de qualidade assinado em branco e sem prazo de vencimento. A escrita, como a urina, não deve sair em condições de sumário satisfatório ao primeiro jorro. Há que decantá-la. A metáfora talvez seja de mau gosto para os beletristas, mas é verdadeira. Em geral, eu reescrevo, no esforço de unir timbre e significado. Apurar o ponto de cozimento da escrita não significa necessariamente cortar, enxugar, como queria Hemingway. Às vezes é preciso acrescentar, conforme lições de Balzac, Henry James e Joseph Conrad. Entendo que retórica não é apenas adorno; também acentua as ênfases, tangencia o indizível.

• Ainda sobre a antologia: a seleção de André Seffrin me parece excelente. Nada a opor. Mas o ficcionista nem sempre concorda com as preferências. Teria sido o seu caso?
Antologias exprimem sempre um gosto pessoal. Portanto, são indiscutíveis, menos aquelas que caracterizam ação entre amigos. No caso de Seffrin, crítico e pesquisador aparelhado, sensibilidade de alta voltagem, ele há de ter partido de uma tese, de um esquema a priori. Escolheu alguns contos que se ajustavam e esqueceu outros porventura de igual nível ou superiores. Eu teria incluído, pelo menos, A caderneta e Pavana para uma menina quase defunta, da série de histórias anteriores a Estranhos e assustados, porque reproduzem situações de uma literatura tipo raw life — aquela que me agrada em cheio. Mas havia um limite para o número de páginas… Portanto, concordo cabalmente com a escolha de Seffrin.

• A propósito: circularam censuras à segunda edição, em 2002, dita, nas suas próprias palavras, como “versão definitiva”, de seu volume de estréia Os galos da aurora, de 1958. Houve quem falasse em livro novo…
E com razão. É que a minha concepção de conto mudou de lá para cá. O que eu entendia por incidente, instantâneo ou fatia de vida, envolvidos em palor poemático, expandiu-se e exigiu desdobramentos. Senti que o conto literário, por ser breve e estruturado em circuito fechado, à maneira do soneto, requeria tensão de corda esticada, densidade. E se submetia ao contágio das sujeiras da vida, se é que desejava refletir a vida em reverberações paralelas. Além disso, o conto-título, vencedor de concurso famoso, fora muito imitado. Decidi preservar-lhe a essência — e nesse lance prolonguei a descrição da noite de um menino que deseja amanhecer para a luz forte do dia. Os demais contos não tiveram a mesma sorte; deles restavam, a meu ver, resíduos que eram tições mornos, tive de soprar, entende? E soprarei enquanto pulmões tiver. De resto, os contos me pertencem, eu estou neles e devo saber o que mais lhes convém.

• Sua voz ficcional vigorosa, de corte realista, vem da experiência concreta da vida não apenas experimentada, mas fruto de muita reflexão. São sempre necessários para o escritor essa vivência e esse entendimento da tragicomédia humana, ora estarrecedora, ora sublime, como fornecedores do instrumental temático?
Sim. A vida fornece as histórias, contos e romances, seja diretamente, seja por via da sugestão. A vida é o manancial, a arca. Não inventamos; recriamos, reescrevemos. Ultimamente a vida tem sido de uma criatividade espantosa: seus enredos ultrapassam a ficção mais descabelada. O jogo Vida versus Ficcionismo atingiu uma escala atordoante. O que explica, provavelmente, essa atual crise de leitura no Brasil e no mundo inteiro, apesar das fornadas de livros. Será que o livro se transformou em objeto explícito de desejo e adorno? Para que a intermediação, o leitor pergunta, se a realidade se assemelha àquela ave de rapina de Kafka, que bica os nossos pés, sobe, entra pela goela e despedaça entranhas? E, no entanto, a vida pode ser bela, é um rolo de perplexidades sedutoras à análise. Resta-nos, então, a capacidade de resistir e alinhavar esperanças. Nunca os ficcionistas se viram tão acuados, pressionados, apostrofados. Perderam, pelo menos, aquela aura de heróis, aquele prestígio que os fazia competidores das divas do teatro e do cinema. Era assim, até os anos 30 ou 40 do século passado.

• Aos 83 anos de idade, o escritor Hélio Pólvora continua produzindo e trilhando uma nova vereda com a publicação recente de dois romances, Inúteis luas obscenas, em 2010, e Don Solidon, no ano passado. É a sua receita de resistência?
É a minha trincheira. Eu não saberia fazer outra coisa. Ler e escrever dá sentido à minha existência, existência, que, de outra forma, seria baça e vazia de significados. Uns ganham dinheiro, outros roubam, outros matam, há os que choram. Eu escrevo. Para quem, não sei ao certo. Para um leitor sem rosto. Para um interlocutor que procurei a vida toda — e estava dentro de mim, à espreita. Acho que escrevemos basicamente para nos encontrar, contradizer, condenar e executar, sentenciados e carrascos a um só tempo. Não há heroísmo nisso. Há desespero. E não adianta ninguém se fazer de vítima.

Hélio Pólvora, autor de “Noites vivas”

• A passagem do conto ou novela para o romance aconteceu de que modo? Houve preparação, amadurecimento, a necessária espera? O romance exige mais?
Não há mais romance. Não há mais conto. Ambos os gêneros se dessangraram, tomados pela afasia, corroídos pela anorexia que tirou do romance à feição de Tolstói aquele estridor, aquele timbre épico, e criou, além dos romancinhos, a fraude a que chamam miniconto. Eu me exaspero com essas bobagens, esses truques de mágico de aldeia. Não defendo o conto clássico, tradicional. Defendo o conto a meia distância, pelo menos, da facilidade do legível e dos tormentos do escriturável — o que implica técnicas de montagem e uso de meios de expressão sinalizadores de ruptura. Sem vanguardismos estéreis, porque a hora de espantar o burguês já passou; mas com a lucidez de quem pretende fincar um marco, mesmo ilusório. Ainda há espaços vazios na literatura de ficção. Ela está cheia de mansões, tal e qual a casa do Pai bíblico. Mas vejo agora que divaguei. Você me perguntou sobre a travessia da história curta para o romance, que quase sempre, entre nós, é um conto espichado, à falta de fôlego, ou porque há pressa. Em resenha ao meu primeiro livro, Adonias Filho, romancista e crítico literário, vaticinou que cedo eu chegaria ao romance. Creio que ele divisou algum material disfarçado sob forma de sugestão. Acontece que eu estava apaixonado pelo conto, suas reticências, seu confinamento, suas apoteoses. Eu era do conto, como certas pessoas são do mar e outras se agarram ao pó da terra. Nesse ínterim, tecia-se, entre uma descoberta e outra, aquela ponte invisível. E eis que, sem querer, embora tenha trilhado caminhos dissimulados, vejo-me autor de um romance, o Inúteis luas obscenas, tumultuado, perverso, lírico e provocador, onde se experimenta o apresamento do amor e tenta-se vencer barreiras na comunicação humana. Chega o instante em que o personagem, que é surdo ou meio surdo, deseja ter um amigo mudo e outro amigo cego. Assim se completariam. Basta. Não serei o crítico de mim mesmo. Tenho pudores iguais aos de Graciliano Ramos. Direi apenas que o romance seguinte, Don Solidon, é diferente, é um livro de formação, gira em torno da personalidade de um protagonista, plasmada ao longo da vida. Ou, quem sabe, o personagem principal é a literatura como fiandeira de achados e perdidos.

• O argentino Ricardo Piglia considera não haver diferença entre vida e literatura: “São a mesma coisa”. E vai além: “A literatura é o lugar onde as pessoas experimentam o que pode ser uma emoção verdadeira”. Qual o resultado, para a ficção, do quociente entre verdade e invenção?
Acho que já tocamos neste aspecto. A verdade… O que é a verdade? Interrogado a respeito por Pilatos, que desejou salvá-lo do martírio, Jesus Cristo calou-se. Talvez não soubesse. Talvez apenas intuísse a verdade. Ou pressentisse a inutilidade do esforço de buscar a verdade. Eu conheço vagamente a verdade da ficção. Ela equivale à verossimilhança de contingências, reações e emoções com que a vida, essa abstração solar, me dotou.

• Segundo o mesmo Piglia, “a literatura é uma prática de seitas e, portanto, seu valor deve ser resolvido entre os interessados, por aqueles que compõem uma espécie de sociedade secreta de indivíduos atados pelo mesmo interesse”. Observamos que tal sociedade parece cada vez menos numerosa e, talvez, a causa esteja no distanciamento da literatura em relação à cultura de massa. Enfim, a literatura converteu-se em algo cada vez mais artístico?
Receio que sim. A literatura, em especial a outrora chamada prosa de ficção, está em retirada. Não sei se ainda haverá tempo de nós, escritores, marcarmos encontro nas catacumbas, ao redor de fogueiras, e lermos nossos textos uns para os outros, enquanto devoramos nacos de carne crua.

• Sua bagagem de leituras seguramente influiu na formação do ficcionista. Afora os franceses dos folhetins na infância, afora a literatura americana dos anos 30 e 40 — destacando aqui William Faulkner, sua admiração confessa — e, ainda, afora Machado de Assis e Graciliano Ramos, quais os autores que parecem ser, em qualquer época de sua vida, os responsáveis pelo grande modelo da ficção?
É lendo que se aprende a escrever, se há vocação. Caso contrário, seria melhor ficar nas leituras, ou vender melancia nas feiras. Um escritor de raça pode deflagrar outro. Faulkner, por exemplo, inspirou vários, na América Latina e Europa. Foi o último grande ficcionista americano, conforme disse García Márquez. Perdão, eu fico também com Hemingway e Saul Bellow e Carson McCullers. Os russos do século 19, entre eles o Saltykov-Shchedrin de A família Golovliov, são gigantescos. Há alguns italianos, os franceses de Flaubert a Stendhal e Marcel Proust, os ingleses representados por Joseph Conrad e Thomas Hardy. Alguns alemães, como Von Kleist, Musil e Franz Kafka. Quem enveredar pelo conto não poderá esquivar-se aos fundadores ou fixadores e reformuladores do gênero: Edgar Poe, Maupassant, Tchekhov e certos discípulos. Por fim, mas não necessariamente por último, os brasileiros Alencar, de O guarani, Raul Pompéia, Euclides, três ou quatro títulos de Graciliano, o mesmo de José Lins do Rego, a saga O tempo e o vento, de Erico Verissimo. A prosa hispano-americana legou-nos Cem anos de solidão [García Márquez], Pedro Páramo [Juan Rulfo], Dom Segundo Sombra [Ricardo Güiraldes]. Atualmente, no Brasil, abrem caminho Luiz Antônio de Assis Brasil, o Milton Hatoum dos primeiros títulos, Ronaldo Correia Lima, Francisco J. C. Dantas, Cristovão Tezza, Ana Miranda, o Salim Miguel de Nur na escuridão, o Aramis Ribeiro Costa dos contos. E temos as obras consolidadas de Autran Dourado, Lygia Fagundes Telles e Dalton Trevisan. Machado de Assis está no pedestal, erguido única e exclusivamente por ele próprio, em vida. Essa gente mexeu comigo, anda comigo.

• Suas narrativas são ricas em técnicas, em cruzamentos de pontos de vista e jogos de tempo. John Irving disse que a espontaneidade muitas vezes é um fato matemático. Isto equivale a dizer que a técnica se impõe de forma sutil e pode chegar ao ponto de não ser visível?
Exatamente. A estrutura do conto literário é muito débil, como disse H. E. Bates. A do romance é um pouco mais forte, no entanto são ambos incapazes de sustentar o peso da teoria, tal e qual a vemos, sobranceira e imperialista, nos textos universitários. O armênio-americano William Saroyan entendeu que se devia atirar regras pela janela, ao escrever ficções. Não é bem assim. A técnica literária deve ser acolhida, absorbida e diluída na escrita, de modo a preservar a fluência do rio do romance e a queda livre das cataratas do conto.

Hélio Pólvora por Ramon Muniz

• O escritor Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental, afirma que alguns escritores são melhores quando se dirigem à nossa imaginação verbal, enquanto outros exercem mais força sobre a imaginação visual. Ele chama o primeiro tipo de “escritores verbais” e o segundo de “escritores visuais”. Isto porque, para Pamuk, ao lermos certos escritores ficamos mais envolvidos com as palavras, com o curso do diálogo, com os paradoxos ou pensamentos que o narrador está explorando; já outros nos impressionam com imagens indeléveis, visões, paisagens, objetos. Ele exemplifica: “Enquanto Tolstói está repleto de objetos sugestivos, sutilmente situados, os aposentos de Dostoiévski quase parecem vazios”. Não se pode situar os escritores exclusivamente de um lado ou de outro dessa classificação, reconhece Pamuk. Portanto, pergunto: as narrativas de Hélio Pólvora tendem mais para o escritor visual ou o verbal?
A classificação de Pamuk me parece mera anotação didática ou paradidática. A Casa da Literatura tem muitas mansões, e nestas cabem todas as supostas verdades — que são as verdades ditadas pelo temperamento e formação de cada escritor. Condena-se a retórica, privilegia-se o estilo seco, enxuto — e, no entanto, Faulkner é um escritor retórico, Conrad é um retórico. Retóricos são dois de seus seguidores, García Márquez e José Saramago. No ficcionismo francês contemporâneo houve um roman du regard. Fez algum furor, está esquecido. Era moda passageira. Quero com isso dizer que a literatura de criação está aberta a todas as expressões possíveis, sem posicionamentos radicais, sejam ideológicos ou estilísticos. Uma coisa, porém, é certa: deve-se evitar o supérfluo, o detalhe inútil. Se um escritor menciona e descreve móveis, estes terão de ser um prolongamento das circunstâncias do personagem. O mesmo vale para descrições da paisagem (e, por extensão, de cenários), que mudaria segundo o estado de espírito do protagonista. Esses recursos constituem uma espécie de moldura, o mais leve possível, já que o retrato é o que importa. Do outro lado, nada tenho contra os “aposentos vazios”. Há ficcionistas que, de tanto enfocar o mistério da personalidade, as refulgências e desertos do ser humano, criam figuras espectrais. São assim alguns personagens de Dostoiévski, especialmente mulheres que duvidamos sejam capazes de amar, enquanto Anna Karenina freme de amor e punição dos equívocos do amor. O mais correto seria reconhecer que o empenho verbal e o empenho visual andam juntos, e em dosagens diferentes. São indissociáveis. Tchekhov ensinou que, se uma espingarda for mencionada na parede, é preciso fazê-la disparar. Ou imaginar outro incidente a respeito. Poucos “ficcionistas” de hoje se preocupam em abrir espaços ao ficcionismo; ficam no exercício inócuo de palavras vazias, preferem atirar regras fundamentais pela janela e escrever textos anódinos. Ocorre, então, o nivelamento por baixo, com a conseqüente fuga do leitor.

• Sobre seus dois romances, Inúteis luas obscenas e Don Solidon, vem a calhar o que Samuel Beckett escreveu em Marlone morre: “Antes de mais nada, quero dizer que não perdôo ninguém. Desejo a todos uma vida atroz nos fogos do gélido inferno e nas gerações execráveis que hão de vir”. O sarcasmo presente em Don Solidon é sinônimo de uma postura implacável ao longo da revisão que se faz da vida — no caso, sendo um romance de formação, da vida revisitada pelo personagem João Pedro, que não cogita do perdão?
O narrador das peripécias e testemunhos de João Pedro, ora ele mesmo, ora a entidade invisível da terceira pessoa, decide sabatiná-lo. João Pedro é instigado, acuado, contra ele batem imprecações — e é no desespero que ele se revela. Quem passa por esses transes escolhe a ironia, apela para o sarcasmo. Quem afinal ri de si mesmo não pede perdão; salva-se.

• Há claramente três aberturas na obra de Hélio Pólvora: os textos ambientados na zona baiana do cacau, os locados em Salvador da sua juventude e os emoldurados no Rio de Janeiro. As circunstâncias próprias de cada ambiente determinaram e fermentaram sua obra ou, segundo a definição sartriana de liberdade, tendo o homem como autor e responsável pelos acontecimentos, a obra obedeceu exclusivamente ao livre arbítrio do seu criador?
Fui punido pelo contágio da tragicidade. A reserva de livre arbítrio é pequena para o descampado de circunstâncias tecidas sem o conhecimento pleno do indivíduo. As mouras misturam os fios de seus enredos e temos de nos desembaraçar. Como qualquer mortal, o escritor é produto do meio: origem, renda, formação intelectual. Alguns, poucos, trazem o roteiro da evasão. Outros permanecem na bastilha. E erguem outra bastilha dentro da enxovia, na tentativa de libertação.

• A inquietação é uma característica de todo o artista. A razão da inquietude estaria no desejo de construir outros universos porque a realidade não lhe é suficiente, ou porque o artista se julga capaz de mudar o mundo? Enfim, o escritor tem algum poder?
O escritor sabe-se vencido de antemão, inclusive pela linguagem incapaz de acompanhar-lhe o pensamento, por mais que ele a deforme ou apure. Isso explicaria a inquietação permanente. Mas convém atentar para os textos fraudulentos disfarçados ainda sob o rótulo de vanguarda.

Melhores contos
Hélio Pólvora
Org.: André Seffrin
Global
287 págs.
Gerana Damulakis

É escritora e crítica literária. Autora do livro de poesia Guardador de mitos e organizadora da Antologia panorâmica do conto baiano —século 20.

Rascunho