Ao invés, por exemplo, de uma continuação de Nihonjin, romance que conquistou o prêmio Jabuti em 2012, Oscar Nakasato publicou, no fim do ano passado, Dois. Nesta narrativa longa, que se passa na segunda metade do século 20 e chega ao tempo atual — parte significativa dela ambientada no Norte do Paraná, o escritor problematiza o conflito de dois irmãos, Zé Paulo e Zé Eduardo. O primeiro, o mais velho, é, de acordo com o próprio autor, retrógrado, regrado e responsável. Já o segundo, também na definição do escritor, é revolucionário, aventureiro e mimado. “Um justifica a existência do outro enquanto seu oposto”, explica.
Nakasato concedeu entrevista ao Rascunho por e-mail e comentou alguns aspectos de Dois, livro que dialoga, entre outros títulos, com Dois irmãos, de Milton Hatoum, Esaú e Jacó, de Machado de Assis e Os irmãos Karamazóv, de Dostoiévski.
Relações familiares e a passagem do tempo são questões que perpassam, não apenas Dois, mas o projeto literário de Nakasato, que também leva em consideração a recriação da memória. “A recriação da memória é uma palavra-chave no meu processo de escrita, pois os fatos do passado não chegam límpidos, prontos para serem transferidos para o papel. E a memória nem sempre é minha, eu me valho da memória alheia, que posso acessar através de uma conversa ou através da leitura de um livro. Os meus romances são uma soma de pesquisa, observação da realidade e memória”, diz o paranaense nascido no município de Floresta, doutor em Letras pela Unesp e professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus de Apucarana (PR), cidade onde vive.
• Tanto em Dois, seu mais recente romance, como em Nihonjin, um dos temas é a deterioração familiar ou os conflitos familiares. A família é, pelo menos até aqui, um dos temas centrais de sua literatura?
Sim. E não sou nada original nesse tema, que é o mais recorrente na história da literatura. A família é a metonímia das relações sociais mais abrangentes, é o espaço onde todos, de alguma forma, estão inseridos e interagem. Portanto, ninguém escapa de suas influências.
• Com quais outros livros, a respeito de família, Dois se filia e dialoga? Esaú e Jacó, do Machado, Dois Irmãos, do Milton Hatoum? Há flerte literário com autores russos? E há uma filiação de Zé Paulo e Zé Eduardo com Caim e Abel?
Pensei em Dois irmãos, de Hatoum, e Esaú e Jacó, de Machado de Assis, quando escrevi o romance. Penso, agora, em Aliócha, Ivan e Dimitri, de Os irmãos Karamazóv, de Dostoiévski, porque você se refere à literatura russa. E Caim e Abel estão na gênese de toda narrativa de conflito entre irmãos. A literatura sempre cria uma rede de relações e influências que se eterniza.
• Adaptando um título do Marçal Aquino, todas as famílias são terrivelmente infelizes? Ou, também numa apropriação de ideia, no caso, do Tolstoi, todas as famílias felizes se assemelham; mas cada família infeliz é infeliz a seu modo?
Não, a maioria das famílias não é terrivelmente infeliz. Eu acredito em relações sólidas entre pais e filhos, acredito em harmonia conjugal e fraterna, mas a felicidade não é tema de literatura. Penso em grandes romances, como Senhora, de José de Alencar, o já citado Os irmãos Karamazóv, de Dostoiévski, Os Maias, de Eça de Queirós, e Madame Bovary, de Flaubert. Há momentos de ventura e até finais felizes, mas o conflito é a base de toda trama romanesca. Eu fico com Tolstoi. As famílias felizes se assemelham, por isso o leitor não se interessaria em acompanhá-las em um romance. Quando a harmonia familiar impera, o romancista procura um enredo que valha a pena fora dos muros da casa.
• Zé Paulo e Zé Eduardo representam opostos? Seriam opostos complementares, mas que não conseguem conviver? Como você elaborou a dupla? O prático versus o deixe estar?
O duplo não é matéria nova na literatura. Jorge Luis Borges, que uso na epígrafe de Dois, talvez seja o escritor mais insistente nesse tema. No meu romance, essa questão foi se desenvolvendo naturalmente, pois a narração gira em torno de dois irmãos muito diferentes que vivem uma relação conflituosa. Ocorre que nele, o duplo está sob a máscara da individualidade, pois Zé Eduardo e Zé Paulo se esforçam (são eles que enunciam suas histórias) em estabelecer um modo de ser que os distancia. Cada um busca firmar a sua identidade apontando o seu contrário. Mas um não é sem o outro. Zé Eduardo existe enquanto revolucionário, aventureiro e mimado porque Zé Paulo é retrógrado, regrado e responsável. Um justifica a existência do outro enquanto seu oposto.
A literatura sempre cria uma rede de relações e influências que se eterniza.
• E a narração de Dois? Poderia falar sobre como foi optar pela narração do jeito que ela é?
A opção por dois narradores, que são os protagonistas do romance, com dicções diferentes e visões de mundo opostas foi exatamente o ponto de partida de Dois. Pensei em Dom Casmurro, em que a subjetividade da narrativa pede um leitor atento e desconfiado, e em Rashomon, de Akira Kurosawa (eu ainda não havia lido o conto de Ryūnosuke Akutagawa que deu origem ao filme), em que a mesma história é contada sob enfoques diferentes por várias personagens, para elaborar um enredo em que o leitor ficasse em dúvida em relação a uma tragédia familiar. O grande desafio foi encontrar essas duas dicções e as possíveis implicações de cada um dos narradores com a morte de um personagem. Para a questão das dicções, optei pela oralidade de um, que conta as suas impressões sobre e a vida e as suas memórias para o neto, e a linguagem escrita, portanto, mais formal, de outro. Quanto às implicações dos narradores-personagens com a tragédia, o leitor dessa entrevista terá que ler o romance para chegar às suas próprias conclusões.
• O capítulo 10 de Dois, em especial, apresenta um tom, uma linguagem e um efeito únicos. Não é possível transcrever o conteúdo na íntegra aqui, mas aquele é o ponto de vista de um artista, é daquela maneira que um artista olha e vive o mundo (ou pode olhar e habitar o mundo)?
É interessante você se referir a esse capítulo. Ele quase ficou fora do romance porque me pareceu subjetivo demais, quase uma fuga do enredo. Há outros momentos em que o personagem Zé Eduardo faz reflexões sobre a vida, mas esse me pareceu demasiado, pois ocupa um capítulo inteiro. Fiquei com receio, inclusive, de que a minha agente literária, que é bastante criteriosa, ou a editora fizessem objeções a esse capítulo, mas isso não ocorreu. Então fiquei mais tranquilo. O capítulo 10, realmente, estabelece um olhar sobre o mundo. E é claro que teria que ser de Zé Eduardo, que tem uma sensibilidade artística e partilha com o autor o gosto pela literatura e a admiração pela cultura japonesa. É o olhar de quem exercita todos os sentidos e o faz de maneira sinestésica. É o olhar de quem valoriza a liberdade, inclusive para os animais. É o olhar de quem acumula muitas vivências, mas assume suas incertezas. Mas é claro, também, que Zé Eduardo “escreveu” esse capítulo porque é vaidoso e quer que gostem dele.
• Dois se passa durante o período da ditadura militar brasileira e, especificamente, a narrativa cita Antônio dos Três Reis, estudante e ativista. Você se interessa pelo assunto, considera que aqueles anos, e o que eles representam, são discutidos? Ou merecem mais reflexão?
Pouco tempo depois que me mudei para Apucarana, foi inaugurado na cidade um colégio público chamado Antônio dos Três Reis de Oliveira. Como tudo que é estranho, o nome despertou o meu interesse. Fiz uma pesquisa e descobri que Antônio dos Três Reais era um jovem estudante de Apucarana que participara da Ação Libertadora Nacional, criada por Carlos Marighella, e havia sido assassinado em 1970 numa ação da polícia repressora. Alguns anos depois, quando comecei a escrever a parte de Dois em que o protagonista Zé Eduardo se envolve com a guerrilha urbana, resolvi incluir Antônio dos Três Reis como personagem. Era uma forma de homenageá-lo. Como Zé Eduardo morava em Maringá, que fica somente a 60 quilômetros de Apucarana, foi tranquilo estabelecer uma amizade entre os dois. Eu vivi a minha infância e parte da minha adolescência sob a ditadura militar sem nunca ter me dado conta dessa situação. Somente no Científico (atual Ensino Médio), quando comecei a me envolver com o movimento estudantil secundarista, passei a entender o que vivíamos. Depois, quando ingressei na universidade, participei do DCE e de centros acadêmicos. Eu era de uma família conservadora e pouco politizada, e o universo de contestação e subversão me conquistou. Confesso que durante um tempo foi mais importante ser contra um status quo do que, realmente, lutar contra um regime de que eu discordava. Mas sempre fui interessado sobre os assuntos relacionados à ditadura militar e nunca tive dúvidas em relação aos males que o regime causou. Creio que hoje, em função dos rumos que está tomando a política nacional, é necessário que esse assunto entre na pauta de discussões em todos os espaços possíveis.
• Há algumas frases impactantes em Dois, entre as quais: “porque quem se vinga nunca ganha”, “A gente educa, ensina o que é certo e o que é errado, bota na escola, depois cada um faz o seu destino”, “aprendi que apanhar é melhor que bater”. Independentemente de cada frase estar em seu contexto próprio, elas sinalizam visões de mundo, não muito distante do que encontramos e escutamos por aí, na realidade. Você é atento ao que falam por aí? Anota, usa bloquinho?
Quem tinha essa mania de anotar em bloquinhos era o Guimarães Rosa, e sei que outros escritores fazem anotações em guardanapos ou em qualquer outro papel que esteja à disposição quando têm uma ideia. Eu anoto numa página do Word, e isso significa que a anotação não é imediata. É claro que, com isso, às vezes, a percepção inicial se perde ou sofre alguma alteração. Mas eu sou muito curioso, como todo escritor. Sou atento à vida, ao mundo e às personagens que o habitam. E anoto as ideias na cabeça. Por isso, quando vou ao computador, não transcrevo exatamente o que ouvi alguém dizer ou a ideia que tive há algumas horas atrás ou um dia antes. As frases que você cita, é claro, nasceram dessa observação da realidade, do mundo. Observo muito, mas também preciso do distanciamento para elaborar o que observei. Preciso do silêncio. O escritor que vive distante do mundo não encontra matéria para a sua escrita, mas aquele que não consegue se distanciar dele não sabe o que fazer com ela.
• Além da família, outra questão aparece em seus dois romances: ou tempo ou a passagem do tempo. Seria esse outro assunto central de sua literatura?
Eu penso sempre sobre o tempo, e a literatura é um espaço adequado para se fazer reflexões sobre esse tema, pois ele é fundamental na sua constituição. E ainda que não seja tema, o tempo é matéria natural da literatura, pois o escritor articula os personagens num determinado momento e os desloca temporalmente, às vezes num movimento que abrange anos ou décadas, outras vezes em histórias que duram um dia. O que faço tanto em Nihonjin quanto em Dois é assumir que não existe um domínio sobre o tempo, que ele não pede licença para deixar suas marcas e interferir na percepção que temos do passado. E nesses romances em questão, o problema é potencializado porque não é um narrador isento e demiúrgico que conta os fatos do passado, mas os próprios personagens. E o passado, às vezes, é tão distante que antecede o seu próprio nascimento. Por isso, o registro da memória não é fotográfico, documental, sólido. Contar o passado é sempre uma recriação.
O escritor que vive distante do mundo não encontra matéria para a sua escrita, mas aquele que não consegue se distanciar dele não sabe o que fazer com ela.
• Ter conquistado o Prêmio Jabuti em 2012, na categoria romance, com Nihonjin, provocou rebuliço em sua vida. A edição do prêmio foi polêmica, você já comentou o assunto em diversas entrevistas, mas, agora em 2018, com algum distanciamento, como avalia os impactos daquela premiação em seu percurso? Foi decisiva para você estar onde está hoje?
Eu nem sonhava em ganhar o Jabuti. Nunca acompanhei a premiação, não sabia quem eram os ganhadores dos últimos anos. Em relação à literatura, a minha ambição era ser publicado por uma editora que garantisse uma boa distribuição e desse alguma visibilidade ao meu romance, o que já havia conquistado com o Prêmio Benvirá (2011) e a publicação pela Saraiva. Pensei na possibilidade de ganhar o Prêmio Jabuti somente quando o editor me disse que inscreveria o meu livro, mas a questão nem me deixou ansioso. Quando vi o meu nome entre os finalistas, fiquei contente e pensei: “Está de bom tamanho”. Tanto que no dia em que anunciariam os vencedores, eu havia me esquecido completamente do assunto. Veio o anúncio e imediatamente depois a polêmica da nota zero que um dos jurados tinha dado para a Ana Maria Machado e outros escritores. Senti um desconforto tão grande que pensava: “Poxa, podia ter ficado somente entre os dez!”. Eu me chateava porque se falava muito mais sobre a polêmica que sobre o prêmio. Talvez ela tenha me prejudicado, não sei, mas passou, e Nihonjin conquistou milhares de leitores. As pessoas liam o romance porque ele ganhara o Jabuti, mas, após a leitura, o prêmio passava a não ter mais importância.
• Quais as principais diferenças e os pontos de contato entre Nihonjin e Dois? Considera Dois mais bem escrito do que Nihonjin e, caso sim, o que seria esse mais bem escrito?
As pessoas me perguntavam: “Quando vai sair o Nihonjin II?”. Era um reconhecimento ao meu trabalho, mas me incomodava. Então pensei em Dois como um desafio: distanciar-me de Nihonjin enquanto tema e técnica narrativa. Se no primeiro romance, conto a história de uma família de imigrantes japoneses sob a perspectiva de um personagem coadjuvante, no segundo, uma dupla de narradores-protagonistas relata os conflitos de dois irmãos descendentes de portugueses. Em Nihonjin, eu queria dar representatividade a nipo-brasileiros na literatura; em Dois, quis fazer uma homenagem a Maringá. Mas é claro que há convergências. Ambos se valem da memória, revelam pontos de contato com a biografia do autor, têm momentos de digressão e contam com personagens que se envolvem em questões políticas. O escritor não consegue escapar de si mesmo.
• Desde que foi publicado até agora, como é a recepção de Nihonjin entre os descendentes de japoneses?
Nihonjin contribuiu para dar visibilidade a uma parcela da população brasileira que é quase invisível na literatura. E essa visibilidade foi pensada como um objetivo. Quando pesquisei sobre personagens nipo-brasileiros na literatura para a minha tese de doutorado, incomodou-me o fato de encontrar pouquíssimos exemplos. Esse incômodo me motivou a escrever Nihonjin. Estávamos próximos à comemoração dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil, e a representação literária era mínima. Hoje são muitos os leitores nipo-brasileiros de Nihonjin. Homens e mulheres que não têm o hábito de leitura leram o romance. E os comentários vêm pelas redes sociais, em encontros fortuitos e nos eventos promovidos por entidades representativas da comunidade nikkei. O mais recorrente diz algo assim: “Olha, é igualzinho às histórias que ojiichan e obāchan contavam”. Há um sentimento de pertencimento numa área cultural em que não estão acostumados a se reconhecerem. Esse fato me proporciona uma alegria e um orgulho muito grandes.
• Você escreveu contos, e foi premiado, antes de Nihonjin. Agora, com visibilidade nacional, pretende publicar contos? O que acha do gênero? Tem alguma explicação para o fato de o conto, de acordo com muitas vozes, ser comercialmente inviável?
Tenho poucos contos escritos, ainda não são suficientes para um livro. Mas penso, sim, em escrever mais e publicá-los futuramente. Gosto muito desse gênero. Fazem parte da minha formação literária os contos de Machado de Assis, de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector e Dalton Trevisan, entre outros autores. E um dos livros que mais me impressionou nessas duas últimas décadas foi o eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, que reúne narrativas sucintas de grande impacto. Mas tenho lido poucos contos exatamente pela pouca visibilidade que têm no mercado literário. Já li e ouvi muitas pessoas, entre elas editores, referindo-se ao conto como um produto que não vende. Parece algo contraditório, considerando que hoje as pessoas não têm tempo ou não tem paciência para textos longos, informam-se com as duas ou três linhas de uma mensagem do Twitter ou da legenda de uma fotografia do Facebook e ficam satisfeitas. Então os contos deveriam fazer mais sucesso. Mas eles exigem um leitor sagaz, capaz de se aprofundar e apreender muito em poucas páginas, o que explica a contradição entre o mundo que tem pressa e a ausência desse gênero narrativo nas listas dos livros mais vendidos. Eu faço uma associação com o haicai, que também deveria atrair mais o leitor em função de sua brevidade, mas que o assusta porque parece traí-lo com a sua aparente simplicidade.
• A sua obra, os dois romances, sinalizam que você pesquisa alguns temas, mas também se vale da memória, da recriação da memória e, principalmente, de uma dedicação à escrita e reescrita. É isso mesmo?
Exato. Você acertou em cheio. A recriação da memória é uma palavra-chave no meu processo de escrita, pois os fatos do passado não chegam límpidos, prontos para serem transferidos para o papel. E a memória nem sempre é minha, eu me valho da memória alheia, que posso acessar através de uma conversa ou através da leitura de um livro. Os meus romances são uma soma de pesquisa, observação da realidade e memória. E criação estética, obviamente. Antonio Candido e outros estudiosos já disseram que a literatura é a transposição do real para o imaginário através de um trabalho estético. É isso. E nesse processo, que para mim é muito lento e sofrido, a reescrita é constante. Jogo fora páginas e páginas, as quais, na primeira leitura, parecem formidáveis, mas não resistem ao tempo, à autocrítica realizada um dia ou um mês depois.
• Dá azar comentar um livro que está em processo de elaboração, mas, apesar disso, tem algum livro em mente, em processo de elaboração? O que pode falar a respeito?
Sim, estou em processo de criação, embora as ideias ainda sejam bastante incipientes. A velhice é o tema do meu próximo romance. E retorno com a questão da identidade nipo-brasileira.