Encontrei Walter Galvani de sandálias, com uma exuberante simplicidade franciscana. Nada a estranhar diante do verão temporão de Porto Alegre. O despojamento é próprio de seu temperamento, despreocupado com a glória mórbida da literatura. O escritor e jornalista Galvani, natural de Canoas (RS), 68 anos, tornou-se de uma hora para outra um dos mais importantes nomes do cenário editorial. Acaba de voltar de Cuba, onde conquistou o Prêmio Casa de las Américas/2001 por Nau capitânia. Recebeu US$ 3 mil e a publicação de seu livro em espanhol.
Nau capitânia (Record, 320 págs., 1999), biografia pioneira de Pedro Álvares Cabral, já teve cinco edições no Brasil e uma em Portugal (Gradiva, Lisboa, 2000), além de ter galgado a lista dos mais vendidos. Na ilha cubana, recebeu o título de “La Nave Capitana”, em tiragem inicial de dez mil exemplares, prometendo o mesmo sucesso alcançado na língua portuguesa. Além disso, ganhou os prêmios Clio História do Brasil, da Academia Paulista de Letras, Jônatas Serrano, da Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores, e Erico Verissimo, da Câmara Municipal de Porto Alegre. Comemorar, nem teve tempo. Está a realizar seu novo livro, com as expectativas redobradas e o nível de exigência quase assustador, que o faz adiar há meses o ponto final do inédito.
Colunista do jornal ABC Domingo, comentarista do Correio do Povo e com programa na rádio Guaíba, Galvani é ainda autor de Brasil por linhas tortas (1970), Informação ou morte (1972), Andanças e contradanças (1974), A noite do quebra-quebra (1993), Um século de poder (1994) e Olha a folha (1996). Foi com Nau capitânia que conseguiu a projeção internacional. Impregnado de olor quinhentista e turbulências de alto-mar, é um romance impressionante sobre a vida do descobridor do país, de sua viagens ao ostracismo em Portugal. Retrata a decadência do herói da corte portuguesa, que morreu como um célebre anônimo. Acostumados às loas escolares, encontramos o mito humanizado, o navegador desfigurado, vulnerável, com defeitos comovedores. Sem depender unicamente da poeira dos documentos ou do sextante, o estilo intensifica a dramatização, recuperando a história com sobriedade, distanciado de julgamentos morais e da sublevação processual. Depois de 500 anos, acabou sendo o primeiro painel de Cabral, resultado de quatro anos de pesquisa, junto da esposa e jornalista Carla Irigaray. Algo estava errado e continua errado. De um recorte, temos uma biografia coletiva, metáfora de um Brasil que tem pressa de enterrar os vivos e pouco talento para exumar seus mortos.
• O senhor recebeu um dos mais importantes prêmios hispano-americanos, Casa de las Américas (Cuba). Acredita que há um mal-estar da mídia com a premiação? Ou a ausência do devido destaque é resultado das dificuldades de um autor gaúcho no eixo RJ/SP?
Acho que o mal-estar é com relação a Cuba. Naturalmente a “mídia” brasileira tem resistências com relação ao modelo cubano de socialismo. Há empreendimentos particulares, inclusive no terreno do jornalismo, há muitas iniciativas na Internet por exemplo, como a excelente página La Jiribilla, mas é claro que os jornais oficiais como o Gramma e o Juventud Rebelde preponderam. Então, na hora de noticiar um prêmio que representa Cuba, que significa Fidel Castro, o regime, sempre há restrições. Mas o meu nome, o prêmio Casa de Las Américas para Nau capitânia acabou aparecendo em colunazinhas aqui, tópicos ali, registros, e por aí foi crescendo. No entanto, concordo, a divulgação em si não foi à altura do prêmio, que tem prestígio e significado internacional, 42 anos de tradição e muita seriedade de Júri. No meu caso, o livro concorreu com 250 títulos e muita gente ficaria assombrada com o nome e o prestígio dos concorrentes inscritos. Mas não creio que haja restrições ao fato de ser eu um autor gaúcho. Afinal, sou editado pela Record (Rio) e em nenhum momento a Nau capitânia sofreu qualquer tipo de restrição. Aliás, a editora Record publicou no Jornal do Brasil, caderno Idéias, um belo anúncio me cumprimentando pelos quatro prêmios que a Nau… conquistou, a propósito justamente do Casa de Las Américas.
• Nau capitânia vingou com um dos livros mais vendidos, chegando a quinta edição. É a primeira vez em sua trajetória que atinge o grande público. Agora a responsabilidade do novo livro não é maior, sendo maior a expectativa dos leitores e de sua editora? Há um novo projeto? Ou “projeto é coisa de arquiteto”?
Sim e tanto é assim que fiquei com meu novo texto na gaveta durante um bom tempo. Só agora o considero pronto, em condições de alçar vôo. Vamos ver o que acontece. Meus livros anteriores fizeram uma carreira regional, vários deles especializados em jornalismo. Minha única novela, A noite do quebra-quebra, editado por uma editora de Porto Alegre, a Sulina, não empreendeu o vôo que dela se esperava, talvez por falta de distribuição. Espero que a Nau… tenha contribuído para desencalhá-la… Estou conversando sobre isto com a nova direção da Editora Sulina. É verdade que a Nau capitânia jogou meu nome no mercado nacional e o tema e talvez o texto e os prêmios ajudaram a sua navegação. Estou neste momento trabalhando em novo texto e não sei ainda qual vai sair primeiro: o que já está pronto e que era um antigo projeto que foi desenterrado e retomado ou o novo, que me empolga neste instante e no qual estou trabalhando em Florianópolis. Espero conclui-lo antes da hora de voltar para Guaíba e Porto Alegre. Não acho que projeto seja “coisa de arquiteto”. Além dos dois em andamento, tenho mais quatro na gaveta… E olhe que não sou arquiteto… nem engenheiro. Qualquer casa construída por mim ruiria em três dias… (risos)
• Fugindo da biografia e entrando no romance, as dificuldades de inserção no mercado não serão redobradas?
A biografia que escrevi de Pedro Álvares Cabral foi aclamada como uma “biografia novelada”. Um jornalista português escreveu que eu poderia “ser um grande romancista” sem suspeitá-lo. Descontando a crítica, no caso, espero não decepcionar ao nosso colega lusitano. Acho que não haverá dificuldades de mercado. Meu nome já foi inserido no mercado com a Nau… e a expectativa deve ajudar os novos livros. Só espero que tenham a mesma sorte que o precedente.
• Sua formação é autodidata, tornando-se um dos principais comunicadores gaúchos. Não fica tentado a escrever suas memórias?
Vou deixar esta tarefa para mais adiante. Mas não acho que minha vida seja tão interessante. Prefiro meus personagens. Quanto à minha atuação no jornalismo, eis uma etapa que ainda não está encerrada. Com muito orgulho obtive ainda em 2001 o segundo lugar em crônicas no Prêmio ARI (Associação Rio-grandense de Imprensa) e colaboro com grandes jornais como o Correio do Povo, o ABC Domingo e A Razão de Santa Maria e o Diário de Canoas. E outros que têm me procurado.
• Foi preciso esperar 500 anos para ser publicada a primeira biografia de Pedro Álvares Cabral. Isso é uma amostra do desprezo do Brasil em contar sua história e a omissão de Portugal em resgatar seu passado?
As duas coisas. Tanto o Brasil que menospreza o próprio passado e precisa redescobri-lo para não ter que reinventá-lo, quanto Portugal que jogou Cabral ao ostracismo, num lance de submissão ao Rei, por parte dos cronistas da época, gesto que não é nosso desconhecido nos tempos modernos.
• Caso nossa colonização fosse outra é uma pergunta sempre feita para aliviar nossos pecados. Quais os motivos da desvalorização do legado português? O que seria necessário para aproximar as duas culturas? Unificação ortográfica daria resultado?
Colonização é colonização, fatos históricos não podem ser mudados. Além do mais, termos sido colonizados pela Holanda ou pela França como querem alguns saudosistas do absurdo adiantaria alguma coisa? Poderíamos ser uma nova Guiana, quem sabe, ou uma Indonésia. Portugal era uma das nações mais adiantadas da Europa nos séculos 15 e 16. Tecnologia, cultura, capacidade e valentia tinham os portugueses, de sobra. Isso de escolher ser colonizado por este ou aquele é subdesenvolvimento puro. Temos é que trabalhar, mais e melhor. Quanto a aproximar as duas culturas, falta ação dos dois governos. Unificação ortográfica não dá resultado em lugar algum. Só quando há dominação cultural. Não é o caso. O que o Brasil precisa fazer é assumir a liderança dos países de língua portuguesa. Há uma CPLP (Comunidade dos País de Língua Portuguesa) reunindo Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, o Cabo Verde e a Guiné Bissau e futuramente o Timor Leste, que pela primeira vez tem uma secretaria executiva brasileira. Vamos adiante. Mas com força senhor futuro presidente da república!
• O que pesou mais em Nau capitânia: a pesquisa do jornalista ou a mão do ficcionista? Completando a reflexão, o senhor não se restringiu aos documentos da época, muito menos à documentação de Pero Vaz de Caminha. Recriou diálogos e intuiu situações, trazendo uma figura histórica de volta à sua humanidade essencial. Nau capitânia seria mais ficção do que biografia?
Poeta Carpinejar, você o diz: “trazer uma figura histórica de volta à sua humanidade essencial”. Este foi o objetivo maior de Nau capitânia. Se o consegui, então estou em paz comigo mesmo e com o trabalho de desencavar documentos, pesquisar velhos textos, cartas e bilhetes, feito por mim e pela minha mulher, Carla Irigaray, que me acompanhou na pesquisa em fontes primárias. É isto que é preciso fazer: pesquisar em fontes primárias, muita mão-de-obra e depois produzir o resultado. A pesquisa foi de jornalista e de investigador histórico, segundo os portugueses. A ficção foi indispensável para completar o personagem. Como disse Miguel de Unamuno, “nós os autores, os poetas, nos colocamos, nos criamos em todas as personagens poéticas que criamos, mesmo quando fazemos História, quando poetizamos, quando criamos pessoas que julgamos que existem em carne e osso fora de nós. Dom Quixote é para nós real e efetivo como Cervantes, ou melhor, tanto o é este quanto aquele!”
• O romance tem tudo para virar filme, as descrições apresentam o detalhismo de um roteiro cinematográfico. Houve alguma percepção de aproveitamento futuro da trama?
Já houve contatos. Por enquanto apenas conversações. Mas escrevi para que fosse um livro, este personagem maravilhoso da nossa civilização e que nos traz a lembrança de coisas tão maravilhosas como a Biblioteca de Alexandria e tão terríveis como a queima de livros do III Reich ou dos brasileiros em 64.
• O Rio Grande do Sul vive um precioso momento de ebulição cultural, com Feira do Livro consolidada em Porto Alegre, Jornada de Passo Fundo que reúne milhares de pessoas, Prêmio Açorianos para a produção local, mercado editorial autônomo, uma série de novos escritores desde o conto ao romance. O que falta para acontecer a explosão da literatura gaúcha no país?
O Rio Grande do Sul tem há muito tempo um grande número de bons escritores, excelentes editoras e um bom mercado consumidor. Mas é preciso ir além do Mampituba, sempre. Há a necessidade de ser citado como “escritor” e não como “escritor gaúcho”. Não vejo a necessidade deste adjetivo regional. Escritor brasileiro, isto é que é preciso ser. Nunca desleixar dos valores locais, mas lutar pelo reconhecimento nacional.