A cidade fictícia onde se passa Jenipapo western, novo romance de Tito Leite, está longe de ser distópica. Sua dinâmica de funcionamento é a mesma de muitos municípios interioranos espalhados por todo o país: há fome, desigualdade e uma figura poderosa disposta a aniquilar qualquer um que ouse questionar sua autoridade.
Em Jenipapo, o trabalho pesado é o que ocupa os corpos e as mentes de boa parte da população. Ainda assim, como uma fagulha capaz de provocar um grande incêndio, vez ou outra aparecem pessoas dispostas a denunciar a violência comum àquela cidade. Como resultado, novos tiros e mortes e desaparecimentos.
Nesse bangue-bangue nordestino, relações familiares e buscas insaciáveis por vingança constroem uma trama irresistível, em que a violência se estabelece como banal desde as primeiras páginas. Tantos disparos e cadáveres podem surpreender aqueles que não sabem que o livro foi escrito por um monge beneditino.
“A minha escrita nunca foi bem-vista no meio monástico e eclesial. Era algo muito chato, sempre tinha alguém dizendo que eu deveria pensar na salvação da minha alma e cuidar das coisas do Mosteiro. Por isso, sempre gosto de lembrar que a vocação cristã não é apenas batismal, mas profética. Eu nunca tive a intenção de fazer da literatura uma catequese, o que deixou alguns religiosos frustrados”, diz o autor nesta entrevista concedida por e-mail.
Situações violentas no sertão semiárido também aparecem em Dilúvio das almas, seu romance de estreia, publicado em 2022. Antes disso, Tito Leite se dedicava à poesia, com dois livros publicados: Digitais do caos (2016) e Aurora de cedro (2019). “É visível que muita coisa no meu processo como poeta já faz parte da minha prosa. Observo bem isso, na preocupação com o trabalho de linguagem. De modo especial, a vontade de deixar o texto sempre compacto, tirando toda a gordura para deixar na página só o filé.”
Ao longo da entrevista, o escritor cearense ainda aborda as influências literárias e cinematográficas presentes em Jenipapo western, fala sobre sua ligação com a religião e celebra a atenção que a literatura produzida no Nordeste tem recebido em todo o país.
• Jenipapo western conta a história de pessoas que lidam diariamente com injustiças e outras formas de violência. Como surgiu a ideia para escrevê-lo?
Sou do sertão e cresci escutando histórias envolvendo guerras de parentelas, geralmente eram brigas por causa de um pedaço de terra. Sempre pensei em escrever um romance abordando essa temática. Na verdade, era apenas uma premissa para falar de uma violência não apenas física, mas também social, praticada pelos latifundiários. Uma violência que tem como origem o monopólio de uma atividade econômica. Assim, semelhante a que faz o ausente aparecer, desejei transformar a minha narrativa no retrato desse povo oprimido. Desejei falar de homens e mulheres que vivem numa realidade onde o próprio silêncio dos poderes públicos é também uma forma de violência. Essa guerra de família não seria uma briga entre iguais, mas entre oprimidos e opressores. A violência não é apenas física, mas também social, ao elaborar um modelo econômico que não favorece aos mais necessitados. Essa foi a minha motivação, fazer de uma narrativa um retrato de um povo que já não aceita de forma confortável uma situação de cativeiro.
• Na orelha do livro é dito que o romance parece evocar tanto Sergio Leone quanto Graciliano Ramos. De que forma esses dois artistas — um cineasta italiano e um escritor brasileiro — dialogam com o livro?
Gosto bastante da obra de Graciliano Ramos, uma narrativa ambientada em algum lugar árido do país, uma leitura social de uma realidade distante dos grandes centros. Penso que embora o autor fale de personagens distantes das grandes metrópoles, a leitura do drama humano em situação de cativeiro é universal. Quando estava escrevendo o Jenipapo western não era Vidas secas que estava lendo, mas o São Bernardo. Reli essa obra porque gosto do modo como o personagem Paulo Honório é construído, de modo especial, seu núcleo emocional. Pensei muito em algo semelhante para a construção de um personagem forte e, de certa forma, serviu de inspiração para a construção do usineiro Martins. Além disso, gosto da secura na obra desse autor. O que gosto de Graciliano Ramos é a profundidade em que a alma humana é observada em situação de opressão. Sobre o Sergio Leone, acho bacana a forma como ele reinventa o gênero de faroeste. Os filmes de western ajudaram muito a refletir sobre o sertão que eu narrava. As pessoas acreditam que todo cenário rural com armas e bois é um faroeste, não é bem assim. Por isso, os elementos do western que transporto para o meu sertão são os conflitos: civilização e barbárie; nativo e colonizador; democracia e obscurantismo e a questão das minorias. Não é à toa que esse cineasta rejuvenesceu o faroeste, quando esse gênero americano já estava com um sono de pedra. Um dos motivos era o maniqueísmo presente no western americano. Com o Sergio Leone, temos novas peculiaridades com a figura do anti-herói. Essa peculiaridade mencionada diz muito para a minha escrita, até porque escrevo sobre um sertão sem épica. Observei que além do ambiente árido e forte, têm também os dilemas entre vingança e justiça. Se em muitos filmes há heróis e vilões, no meu romance há oprimidos e opressores. Semelhante ao cineasta italiano, tento escrever uma narrativa sem maniqueísmo.
• Um de seus personagens trava constantes embates com seus familiares na tentativa de alertá-los sobre o quanto os mais pobres são explorados pelos poderosos. Alguns desses diálogos me lembraram Eles não usam black-tie, peça de Gianfrancesco Guarnieri, que ganhou adaptação de Leon Hirzman no cinema. É, de fato, uma influência?
Conheço o filme e gosto da tensão do conflito familiar que é algo bastante imagético. Além disso, tem o drama dos trabalhadores que, assim como no meu romance, é um problema coletivo. Gosto do filme Eles não usam black-tie, mas não foi uma das minhas influências para o Jenipapo western. O ato do personagem Ivanildo elaborar indagações é inspirado nos primeiros textos de filosofia que li na minha formação acadêmica. Desde o primeiro semestre da graduação, gostava da noção de filosofia como não aceitar verdades dadas sem antes questionar. E se tem algo que não abro mão, é de colocar o meu mundo em questão. Acredito que a função do pensamento é criticar o que existe, até porque vivemos numa sociedade da não crítica. Lembro de Herbert Marcuse, esse pensador diz que, um método autêntico reconhece duas proposições: “O todo é verdade” e “O todo é falso”. A proposição “O todo é verdade” manifesta um momento positivo em que as coisas estão determinadas, derivadas das contradições anteriores. Contudo, essa síntese com o estabelecido não é definitiva. Sempre devemos manter a mente pronta para modificar o estabelecido. De modo especial, quando a identidade entra em conflito com a alteridade. Pensando na diferença, encontramos a segunda proposição, “O todo é falso”. Uma realidade compreendida como alteridade nega o imediato e motiva uma superação do que é dado. Essa relação dialética que busca no negativo a liberdade é o que me inspira. Negação não como uma ação débil de protesto, mas como uma recusa em aceitar de forma confortável qualquer sistema que nega a liberdade. Com a filosofia aprendi que pensar verdadeiramente é pensar a alteridade.
• Logo no início do romance, uma personagem diz que “em Jenipapo uma parte do povo é cruel, outra parte também, mas pensa que não é”. No Brasil também é assim?
Semelhante ao sertão, no Brasil também tudo é por um fio. Mas como mencionei, queria uma narrativa de um sertão sem épica, mostrando a região tal como ela sangra. Em Jenipapo western, um dos personagens afirma que a injustiça é o rosto do mal. E a desigualdade é também uma das suas marcas. Principalmente, quando não se permite nenhuma forma de alteridade e não reconhece uma relação de igualdade entre as pessoas. Assim, apesar da imagem do Brasil como o país da alegria, com um povo dado ao riso, o Brasil é também cruel, tal crueldade é também estatal. É até curioso que a narrativa acontece no final da década de setenta, mas as velhas formas de coronelismos ainda são atuantes, com as novas oligarquias do sertão e até da política brasileira. Um exemplo, são os partidos com pautas voltadas para a disseminação do ódio, projetos que se transformam numa verdadeira maquinaria de morte. Sem exagero, digo que o maior objetivo é a dizimação das minorias. No governo passado, isso era bem visível. Como podemos observar, no sertão ou em qualquer litoral brasileiro, as novas oligarquias estão presentes, somando os direitos dos trabalhadores e pobres para menos. Enquanto existir oligarquias que, apoiadas num neoliberalismo, usurpam os direitos dos menos favorecidos, principalmente quando os direitos já não assegurados; terei que dizer: no Brasil uma parte é cruel e outra também.
• Jenipapo western é seu segundo romance. O primeiro, Dilúvio das almas, foi publicado em 2022 e também apresenta uma história de violência numa pequena cidade do interior. De que forma as violências retratadas nessas duas obras se aproximam?
Dilúvio das almas é uma narrativa em primeira pessoa em que tudo é filtrado pelo olhar de Leonardo, o personagem-narrador. Em Jenipapo western, temos uma narrativa em terceira pessoa e busco uma visão mais ampla daquela realidade. No entanto, há uma grande diferença, porque no primeiro livro mergulhamos no drama de um personagem que carrega também as questões dos seus parentes. Já em Jenipapo western, o drama é comunitário. Acredito que a violência nas duas obras é caracterizada pelo silêncio das autoridades e o abuso de poder das oligarquias locais. Essas oligarquias não reconhecem os direitos dos menos favorecidos e utilizam das desigualdades sociais para formar novas hierarquias sociais. Um bom exemplo, encontramos numa expressão popular, em que o opressor diz: você sabe com quem está falando?
• Desde quando você é monge beneditino? Isso se relaciona de alguma forma com sua produção literária?
Acredito que a escrita entrou na minha vida como uma forma de dialogar com o meu mundo e entender as minhas verdades. A minha formação monástica faz parte do meu processo de escrita. No Mosteiro aprendemos a cuidar de tudo como se fosse um jarro sagrado do altar, isso se relaciona com a minha escrita, pois cuido de uma palavra ou metáforas como se fossem um jarro sagrado do altar. Em 2014, entrei na comunidade monástica do Mosteiro de São Bento de Olinda, professando meus votos solenes em 2020. No começo entrei pela busca de Deus no silêncio e na solidão, mas com o tempo percebi que posso viver essa busca fora do claustro. Dentro de um Mosteiro beneditino a regra de São Bento ensina que nada devemos antepor ao amor de Deus. Acontece que chegou um momento em que o escritor sempre esteve em primeiro lugar e, aos poucos, a vida monástica começou a ficar em segundo plano. Então achei mais coerente pedir uma licença de seis meses e ficar esse período afastado do Mosteiro. No momento, estou em Aurora, no interior do Ceará. A licença acaba em breve e não pretendo retornar. Pedirei uma dispensa dos votos e largarei a vida monástica.
• As pessoas costumam achar inusitado um monge beneditino escrever romances em que a violência aparece de forma tão crua? Como você enxerga essa questão?
As pessoas ainda têm uma visão de que a salvação das almas é a única preocupação de um monge. Parece até algo platônico, o mundo das ideias e o mundo sensível. É até curioso que Nietzsche já dizia que o cristianismo é o platonismo do povo. Na verdade, a forma em que os meus irmãos religiosos enxergam a minha escrita é o que me deixa triste. Infelizmente a igreja não suporta algumas verdades que incomodam. A minha escrita nunca foi bem-vista no meio monástico e eclesial. Era algo muito chato, sempre tinha alguém dizendo que eu deveria pensar na salvação da minha alma e cuidar das coisas do Mosteiro. Por isso, sempre gosto de lembrar que a vocação cristã não é apenas batismal, mas profética. Eu nunca tive a intenção de fazer da literatura uma catequese, o que deixou alguns religiosos frustrados. Como sabemos, o processo de evangelização dos indígenas foi umas das primeiras formas de violência no Brasil. Sinceramente, acho que o grande problema é a falta de capacidade da Igreja de dialogar com o mundo. O papa Francisco tenta dialogar e sempre encontra adversários dentro da própria igreja.
• Antes dos romances, você publicou livros de poesia. Houve dificuldades para se adaptar a um novo gênero literário? Ou, no fim das contas, escrever romance não é tão diferente de escrever poesia?
Sempre gosto de pensar que a poesia afina um pouco o sangue da minha prosa. No começo eu tive que conhecer algumas ferramentas, como foco narrativo, construção de personagens e também outros atalhos, para o caminho de um bom livro. No primeiro romance, a minha dificuldade era escrever um texto que não ficasse muito explicativo. É visível que muita coisa no meu processo como poeta já faz parte da minha prosa. Observo bem isso, na preocupação com o trabalho de linguagem. De modo especial, a vontade de deixar o texto sempre compacto, tirando toda a gordura para deixar na página só o filé. Um exemplo disso, são as frases curtas que utilizo para oferecer velocidade à narrativa. Escrever romance é diferente de poesia, mas ambos podem se complementar no processo de escrita de cada autor.
• Em relação ao momento em que você fez sua estreia na literatura, acredita que atualmente os leitores, as editoras e a crítica especializada prestam mais atenção na literatura produzida por autores e autoras do Nordeste?
Acredito que o sucesso do Torto arado [Itamar Vieira Junior] foi o grande acontecimento da literatura brasileira recente, fortalecendo o interesse pelo Brasil profundo e um novo olhar para o que se passa nos rincões do país. No Nordeste, há autores, que sem exageros folclóricos e distantes dos clichês, revelam para os leitores como a vida sangra em outras partes do Brasil. Assim, o interesse não é apenas pelos autores que escrevem fora das metrópoles e do eixo Rio-São Paulo, mas pelo que há de profundo em determinadas partes do Nordeste e ainda ausente ao grande público. Além disso, acredito que o sucesso de vários autores brasileiros é também um incentivo, até porque é uma prova de que a literatura brasileira é capaz de fazer sucesso no Brasil e fora. Basta observar os clubes de leitura e as listas dos mais vendidos, sempre têm autores brasileiros. Além de Itamar Vieira, outros autores nordestinos continuam ganhando muitos leitores e escrevendo grandes obras, como por exemplo, Micheliny Verunschk, Christiano Aguiar, Samarone Lima, Socorro Acioli, Raimundo Carrero, Jussara Salazar e Stenio Gardel.