Encontraram-se em Porto Alegre, para um bate-papo sobre prosa, poesia e outros espantos, o jornalista Marcio Renato dos Santos e o escritor e compositor Sergio Napp. Autor da canção Desgarrados — verdadeiro hit no Rio Grande do Sul —, Napp, hoje à frente da Casa de Cultura Mario Quintana, escreveu Memória das águas (poesia), Delicadezas do espanto (prosa poética) e o recém-publicado A gangue dos livros.
• Sua estréia literária foi tardia, comparada à de vários outros autores. Como interpreta o fato?
Tenho uma razoável trajetória diluída em pouco tempo. Por insegurança, falsa expectativa e falta de oportunidades, comecei a publicar muito tarde, em 1985. Minha geração produziu gênios: Scliar, Verissimo, Lya Luft, Nejar, Faraco. E todos publicaram com a mesma idade, entre os 20 e os 30 anos. Eu não. Também na literatura há uma fase em que se pode arriscar, uma juventude em que tudo é permitido, até errar. Publiquei aos 46. Pulei essa fase da inconseqüência, e caí em um limbo. Desgarrado da minha geração, não havia como me enquadrar em outra. Ao mesmo tempo, diversifiquei muito, busquei caminhos, o que é próprio da adolescência. Pode até parecer incongruente. Mas de uma coisa não me arrependo: acertando ou errando, sempre arrisquei, nunca tive medo de tentar.
• Você tem publicado praticamente um livro por ano. Os “meus documentos” em seu computador estão repletos de inéditos?
Sempre escrevi de forma desordenada. E fui guardando. Nunca com a intensidade de agora. Maturidade? Prazer? Confiança? Um pouco de tudo. O certo é que tenho publicado um título por ano. E tenho prontos Caixa de guardados (poesia), Passarinhar-se (infantil) e Pássaro dos dias de verão (esgotado), reescrito no formato de novela infanto-juvenil. Pela metade, e esperando a vez, Paixões (contos), Tartaruga verde (novela) e algumas encomendas mais suaves. E uma penca de histórias iniciadas na fila. Também planejo uma caixa com cinco CDs, em que traço um panorama de minha carreira desde os anos 60 até os dias de hoje. Dá pra dizer que os “meus documentos”, se não estão repletos, encontram-se com um bom estoque pronto para a desova. No aguardo de quem os queira.
• O espanto é algo muito presente em sua obra. É ele que o faz criar?
A criação é feita de espantos. Como diz a Lya Luft, o espanto é mais essencial que a compreensão. Não é à-toa que, na maioria dos livros que amamos, o espanto das situações é o que nos faz virar, sofregamente, as páginas. A capacidade de espantar define o talento. Isso se aplica a qualquer das áreas culturais.
• Imagens, referências geográficas e recriação da oralidade do Rio Grande do Sul figuram em meio à sua produção. Isso atrapalha ou ajuda?
Todo criador de qualquer região usa o seu sotaque. O contrário seria surpreendente. Minha obra não chega a ser regional, mas retrata o meio em que vivo e, portanto, meus personagens agem como os vejo. E como os ouço. Quem não ouviu falar na lagoa do Abaeté? Mesmo sem conhecê-la, sua presença na literatura baiana não causa espanto a ninguém. O mesmo acontece com nosso Rio Guaíba, que de rio não tem nada. Não creio que ajude ou prejudique a obra de qualquer autor gaúcho o uso de expressões regionais. No máximo, talvez desperte curiosidade. Ou espanto.
• Você é fascinado pelo dia-a-dia e seus anônimos?
Li muito quando jovem. Hoje leio com menos intensidade. Um livro que me marcou, pelo espanto e pelo encantamento, foi As vinhas da ira, do Steinbeck — quem sabe o meu autor favorito (por coincidência o livro foi publicado no ano em que nasci). Nele há vários momentos dramáticos, um deles guardei para sempre. É quando um dos párias retratados diz: “Um camarada tinha uma parelha de cavalos; lavrava com eles e cultivava a terra e ceifava com eles. E nunca teria deixado que morressem de fome quando não trabalhassem”. Ao que o outro responde: “É que são cavalos, e nós somos homens”. O barro em que construo meus personagens é feito do desencanto do cotidiano. Desde meu primeiro livro de contos, Para voar na boca da noite, são os anônimos que me atraem e provocam. Neles, em seus descaminhos e anseios, artimanhas e risos, crueldades e ilusões, torpezas e amenidades, encontro o fio das minhas histórias. E nunca costumo julgá-los.
• O que pesa mais: o que você experimentou vivendo ou lendo?
Sou introspectivo e observador. Um tipo de voyeur. Esteja onde estiver noto o que se passa ao meu redor. Minha memória, seletiva, guarda o que interessa. Uma frase escutada na rua, uma situação vivida. Engendro ações. Creio que, em maior ou menor escala, acontece com todos os criadores. Somos arquivos ambulantes. A memória é o motor que deflagra a ação. Mas de nada valeria se não houvesse sensibilidade e talento. Mesmo o contador de histórias que vive de sua memória ancestral a recria constantemente. É nesse recriar que nos transformamos em autores.
• Em A gangue dos livros, toda uma transformação é deflagrada por meio da leitura. A arte transforma o mundo?
Infelizmente a experiência me faz pensar o contrário. A arte pode modificar uma ou outra pessoa, desde que ela esteja disposta a admitir essa transformação. Mas não opera revoluções. A arte pensa, retrata, discute, analisa as revoluções. Por mais importantes que tenham sido o tropicalismo, o concretismo, o existencialismo, o quanto mudaram o curso da vida como um todo? Influenciaram a mim, que os vivi. Foram fundamentais em minha formação. Mas quem, dessas gerações mais novas, sabe de que se tratam? Por outro lado somos eternos sonhadores. E teimosos. Continuaremos acreditando na boa literatura, na boa música, no bom texto teatral. É o que faço em A gangue dos livros.
• Costuma se dizer que o Paraná é um estado autofágico. Há autofagia no Rio Grande do Sul?
Com raríssimas exceções, não há crítica literária no Brasil. O que há são escritores/leitores/resenhistas que opinam sobre livros a seu bel-prazer. Em muitos casos, amigos divagando sobre amigos. Quando, eventualmente, uma voz mais forte se ouve, aturde. Causa estranheza. E, não raro, provoca respostas iradas, cheias de fel. Noutras vezes o pseudocrítico confunde a obra com o autor, provocando mais estragos. Há outra situação: quando determinado autor atinge um patamar de excelência ou de vendas, torna-se uma espécie de bicho raro: é inatacável. Sabemos que em todo grupamento humano há malquerenças e desafeições. A área cultural, além de suas particularidades, é carente. Isso a torna frágil, susceptível. Nos tempos de agora não se percebe essa autofagia. Há grupos que se unem por amizades ou afinidades culturais/literárias, mas não se percebe essa suposta concorrência predatória. Por outro lado, surgem, a todo instante, novos autores de muito talento que, de uma forma ou de outra, conseguem manter-se com a cabeça para fora do oceano comum. E competem, de igual para igual, com os nomes consagrados. Mais: observa-se, atualmente, um claro olhar das editoras nacionais sobre os autores gaúchos, o que não acontecia nos tempos de antanho. Isso é salutar. Provoca inveja? Sim. Mas faz parte da condição humana.
• Você é mais conhecido pelo seu trabalho com música do que como autor de literatura. Como analisa isso?
Tenho consciência de que, na música, desenvolvi um trabalho consistente. Na literatura, ainda não. É o que busco com empenho. Mas devo concordar com o Dalton Trevisan em sua entrevista para o Rascunho. Se não concretizei a grande obra, trabalho, faço o que posso. Agora, diante de muitos nomes que andam por aí e se consideram mais do que são, até que me consolo.