— Alô? — A voz é firme, mas sem rispidez.
— Wilson Martins? Estou ligando, como o senhor pediu, para confirmar a entrevista marcada para as 11 horas.
— Está confirmada, mas não é 15 para as 11 nem 11 e 15. É às 11 horas.
— Perfeitamente.
O homem do outro lado da linha é metódico. Apresso-me em chegar no horário ao local combinado: um apartamento de classe média, em Curitiba, no bairro Bacacheri. O anedotário da cidade diz que o nome se deve a um antigo morador francês, dono de certa “vaca chérie”. O endereço sugestivo para o temível crítico literário da escola francesa, Wilson Martins.
Chego 15 minutos antes e não me atrevo a entrar. O trecho da avenida João Gualberto é bem comercial. Possui uma via com três pistas; pela canaleta central circulam os ônibus das estações-tubo. O porteiro do edifício, que fica ao lado de um banco, parece desconfiado. Resolvo entrar e sou anunciado. Pelo interfone pedem para aguardar.
O porteiro, instado por mim, informa que Wilson Martins vive recluso. Compreensível no caso de um homem de 85 anos. Espontaneamente, ele acrescenta que o morador mais ilustre do prédio costuma receber os jornalistas sempre às 11 horas. Logo sou convidado a subir. Faltam cinco para as 11. Desço do elevador e uma senhora, que parece ser a empregada da casa, me espera. Sorri e manda entrar.
Na sala ampla, sua mulher aponta para onde fica o escritório do marido. Atrás da escrivaninha, sentado, o escritor, professor emérito da New York University, crítico literário, autor da monumental História da inteligência brasileira, aguarda. Não é um homem velho, apesar dos 85 anos. A fama de dogmático, reacionário, conservador, quinta-coluna não condiz com a figura que observo. No mundo das idéias, os adversários não perdoam a contundência de suas convicções, mas, pessoalmente, Wilson Martins é um senhor muito afável.
Durante a entrevista, fala com autoridade; olha para um lado, para o outro, depois diretamente para o interlocutor, mas sem arrogância. Faz pilhéria de si mesmo e dos outros. O discurso é fluente, mas sem pressa. O intelecto é fresco. Conhece a internet, embora não a use diretamente, fala sobre globalização, mídia e literatura com a mesma desenvoltura.
Surpreendentemente, Wilson Martins possui as idéias conciliatórias de quem já viveu bastante e bem. Exceto quando faz crítica literária. Em off, ele comenta ter uma receita infalível para identificar livros ruins em seu ofício de crítica. Ele lê deitado. Se depois de algumas páginas cair no sono, é porque o livro é muito ruim.
Costuma-se dizer: “Wilson Martins é o último grande crítico literário brasileiro”. Isso o incomoda ou, ao contrário, é uma espécie de reconhecimento tácito ao seu trabalho?
A expressão é um pouco retórica: “o último grande liberal”, “o último grande estadista”, o “último grande poeta”. No fundo não significa nada. Agora no que se refere à crítica brasileira, talvez seja uma expressão parcialmente verdadeira. A crítica literária, como eu e outros de minha geração praticamos, desapareceu dos jornais. Por motivos econômicos e outros próprios da administração dessas empresas. O grande espaço da crítica foi sendo gradativamente reduzido. Os jornais modernos, que dão preferência às imagens sobre as palavras, também concorreram para diminuir esse espaço. O crítico literário, nos últimos 40 anos, viu seu espaço cada vez mais reduzido nos jornais. Eu sou de fato, como um animal em extinção, o último crítico daquela fornada, talvez pela persistência de continuar sistematicamente fazendo crítica, sem interrupção, desde 1946. Não quero ser, não gostaria de ser. Mas as coisas mudam. Daqui a pouco alguém vai sentir necessidade de uma crítica mais desenvolvida e aparecerão outros críticos. Aqui no Paraná, nos últimos anos, apareceu um crítico, como Miguel Sanches Neto, da velha escola, embora 50 anos mais moço do que eu.
Hoje, por um lado, temos globalização, tecnologia digital e internet, mas há certa falta de cuidado, pelo menos no Brasil, com a palavra, com o idioma, com o tratamento da língua. São sintomas de que a literatura e a poesia estão com os dias contados? O que sobreviveria a elas?
Essa é uma questão bem mais complexa do que parece. Além do caso brasileiro, temos que levar em conta o quadro mundial, como você disse, a famosa globalização. Muitos modos de escrever e de encarar a literatura foram modificados por influência de nações poderosas.
O senhor se refere aos Estados Unidos?
Os Estados Unidos nunca tiveram um sistema de crítica literária ao estilo francês, permanente, como adotávamos no Brasil. Lá, por um critério, digamos, material, se implantou o sistema de resenhas, o noticiário a respeito dos livros. A resenha se destina a informar, não a julgar. Nos Estados Unidos quando se trata de um livro muito importante, que precisa de um espaço maior, contratam um especialista para escrever sobre aquele livro. Há diversos à mão. Mas a literatura comum não é mais criticada no sistema chamado “crítica de rodapé”, sistema que exige um espaço maior e que implica em julgamento de qualidade. Tudo isso foi um pouco compensado pelo aparecimento de jornais — nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França — especificamente literários. Não são como os jornais comuns que têm somente uma página ou suplemento literário. São jornais que se dedicam à discussão das idéias e da cultura. É uma espécie de compensação. Nesses jornais os leitores procuram artigos de mais substância sobre obras não só literárias, mas sociológicas, históricas, científicas e assim por diante.
O senhor transita em um mundo humanista de idéias, livros. Ao mesmo tempo, convive, como todos, com a sociedade de consumo, imediatista, ligada ao dinheiro, além é claro dos excluídos, o chamado “povão”, que tem outras prioridades, e pouco lê. Em que direção estamos indo?
Eu acho que sempre foi assim. O que mudou foi a escala. Hoje temos as imensas multidões que resultaram da explosão demográfica e a complexidade do mundo científico e técnico. Daí a idéia de que há menos interesse intelectual em favor de coisas mais materiais. Sempre foi assim. Eu imagino, teoricamente, que a proporção foi sempre a mesma. Quando Curitiba tinha 200 mil habitantes, provavelmente havia 50 intelectuais; agora que ela tem quase dois milhões de habitantes, haverá uns 200. Quer dizer, é sempre a mesma proporção. É verdade, porém, que alguns meios modernos de comunicação suplantaram muito a leitura. A televisão, por exemplo, substituiu de uma maneira espantosa a leitura no lar. Praticamente ninguém mais lê em casa. As famílias não lêem. Os filhos não vêem os pais lendo. Eles vêem os pais assistindo televisão. Não se lê mais, vê-se a imagem na tevê. A própria internet é uma espécie de substituição da leitura. É a leitura por imagem. Não se lê o texto na internet, está-se vendo o texto na internet.
Existe uma quantidade absurda de informações na rede mundial de computadores.
A internet dá informação, mas não dá conhecimento. Esse é um aspecto que pouco se observa. É facílimo levantar, por exemplo, uma bibliografia sobre Dante. Sabe-se tudo sobre Dante, mas nada sobre o poeta. Esse é o grande engano da internet. O que se teria de fazer é transformar a informação em conhecimento. Aí deve entrar a cabeça do pesquisador. Ele tem que organizar toda aquela informação em um sistema coerente de idéias. Isso não é dado pela internet que, ao contrário, fragmenta essas idéias. São como itens de dicionário: pode-se ler um dicionário e não se aprender nada sobre a língua, embora seja através dele que a língua é elaborada. Consultar uma fonte de informação é diferente de organizar, no plano do conhecimento, essa informação. É um problema, ainda, de escala. Onde havia uma pequena multidão, hoje há uma grande multidão. Hoje o mundo inteiro está aqui na nossa sala, instantaneamente.
Como tudo isso interfere na vida dos leitores modernos?
Esse fenômeno mudou completamente a mentalidade das pessoas. Somos homens do século 21; não somos iguais aos homens do século 20. Somos outros. A nossa cabeça está sendo condicionada de outra forma, por outros elementos. Não percebemos, mas ninguém hoje pensa ou sente da maneira que seu avô sentia e pensava, porque o mundo dele era completamente diferente, seus parâmetros, pontos de referência. Veja: uma carta. Uma família tinha um filho que viajara para estudar na Inglaterra. Comunicavam-se por meio de carta que levava dois meses para chegar aqui mais dois para voltar. Hoje não. A família liga o computador e fala no mesmo momento. Isso muda tudo. É tornar contemporâneo, simultâneo, tudo aquilo que em outros tempos era fragmentado no espaço.
A literatura brasileira, em geral, elabora pouco os temas que envolvem valores como o futebol, o carnaval, a televisão, a mística. Existiria falta de vontade ou de profundidade crítica e social?
A vida contemporânea é onipresente no espírito das pessoas. Essa obsessão pelo futebol… temos um presidente da república, cujo horizonte mental é o gol. Ele só pensa em metáforas futebolísticas e em exemplos tirados desse esporte. É o mundo em que ele vive. É um exemplo, entre milhões de outros. Noções fáceis, popularizadas pela televisão e pelo jornalismo, passaram a predominar no espírito das pessoas. Mais uma vez é a questão da contemporaneidade. Machado de Assis não tinha outro horizonte a não ser os livros e os jornais. Se vivesse nos nossos dias, provavelmente teria outro critério de interesses e avaliação.
Voltamos ao problema da leitura, da informação e do conhecimento.
A leitura é um problema muito sério. Em outros tempos essa era a maneira de integrar o intelecto. Hoje tudo se fragmenta no cinema, na televisão, na internet, nos enormes interesses econômicos, na propaganda, numa espécie de noção cumulativa, cada coisa produz outra, multiplica-se, em uma escala exponencial. Mesmo a pessoa mais indiferente, não vive sem televisão, recebe dela notícias, informações e… o ponto de vista que está propondo. As agências de notícias estão dominadas por agentes americanos. O noticiário é apresentado sob o ponto de vista dos interesses norte-americanos. Não estou censurando, menciono um fato da vida real. Observe certos acontecimentos internacionais. Todas as televisões dizem a mesma coisa. Todos os jornais repetem as mesmas idéias. Tudo aquilo vem de uma fonte comum. Há alguns anos, na Unesco, as nações pequenas queriam suas próprias agências de notícias. Não conseguiram. Isso tudo implica em um investimento financeiro extraordinário.
Uma sociedade altamente tecnológica e financista existindo no mesmo espaço globalizado de ignorância e miséria.
É verdade. Não há homogeneidade. Pode apostar que há tribos indígenas no Amazonas e no Mato Grosso com rádio de pilha e telefone celular. A penetração da tecnologia é muito maior do que a gente imagina. Assim, começamos, o mundo inteiro, a pensar da mesma maneira.
Estamos falando, então, do império, a “Nova Roma”?
É. No Japão ou na Iugoslávia, as pessoas que se encontram na rua têm a mesma fonte de informação que você tem em Curitiba. E você vai pensar: “como esse sujeito é bem informado” (risos). Não é isso. Ele é mal-informado. Ele tem a fonte única da informação, que é a nossa. E não há nada a fazer. Não proponho a idéia de que é preciso corrigir isso. Temos de ser realistas. Muita gente reclama contra a globalização como se fosse possível evitá-la. Não é mais possível. É ser contra a chuva ou o vento. Choveu, choveu. Ninguém pode fazer nada a respeito. A situação do mundo globalizado é essa, e tem muitas vantagens, é preciso dizer, como a circulação de mercadorias, facilidade de viagem e de comunicação entre os países, sei lá….
Voltemos à literatura. Fazer crítica é botar a cara a tapas, segundo suas próprias palavras. Que grandes erros e que grandes acertos o senhor cometeu em sua carreira?
Essa é uma pergunta que me fazem sempre e provoca uma resposta que parece vir de um perfeito idiota: ‘eu nunca errei na vida’ (risos) . Lembro o escritório de um grande editor nova-iorquino que tinha na parede um cartaz, com essa frase manuscrita: “nós nunca erramos”. Começava com letras maiores e ia perdendo a escala. Essa é a idéia. Mas, no meu caso, imagino manter certa coerência intelectual. Não se trata de erro ou acerto. Trata-se de pontos de vista. Posso escrever sobre um autor ou sobre um livro algo sobre o que o resto da crítica discorde. Mas não é um erro. É uma opinião. Uma posição pessoal. Sempre cito a frase de um juiz da Suprema Corte americana, que diz o seguinte: “não há idéias erradas”. De fato, não há idéias erradas. Há idéias. A sua, a minha, a do João. Nenhuma é melhor do que a outra. Cientificamente, uma pode estar certa em dado momento e errada noutro — ou o contrário. Antes que descobrissem a circulação do sangue, as pessoas que não acreditavam na circulação do sangue não estavam erradas. Estavam em face de uma realidade. Mas hoje ninguém vai defender essa idéia. O fato apareceu para demonstrar outra idéia cientificamente predominante. Na ciência isso é fácil de resolver, mas no campo intelectual — juízos de valor, julgamento de obras — não há idéias erradas, há idéias pessoais. Podemos gostar de um crítico e não gostar de outro. Achamos que um crítico é burro e outro não. Eu tenho mais de sessenta anos de crítica literária. Temo ter discordado de muitas idéias aceitas em determinado momento. Depois acabaram sendo aceitas e todo mundo esqueceu que fui o primeiro que havia proposto aquela idéia “errada” trinta anos antes. Isso é muito comum.
E quanto aos autores criticados?
Os autores descontentes sempre acham que o crítico está errado. É normal. Nunca me incomodei muito com isso. Não perco o sono porque alguém não gostou da minha crítica. O leitor tem direito tanto de concordar quanto de discordar comigo. O autor descontente tem direito de estar descontente e de me dizer uma porção de desaforos. Por outro lado, os autores contentes me cobrem de elogios. O que eu vou fazer pra desempatar? Nada! Não posso perder o sono por causa das restrições nem cair morto de vaidade por causa dos elogios. Encaro tudo com tranqüilidade. A regra do jogo é essa.
Como é o seu processo de trabalho diante da concretude de uma obra literária determinada? Existem tópicos que norteiam a sua crítica? A teoria literária serve de base à sua análise?
Não no meu caso. O processo é um pouco caótico. Depende substancialmente da leitura, não de um livro específico, mas da leitura em geral. Para escrever sobre um romance brasileiro, por exemplo, supõe-se que eu tenha conhecimento também de romances estrangeiros, que tenha lido alguns russos, ingleses, franceses e assim por diante. Nenhuma obra é julgada por si mesma, nem na poesia, nem no romance, nem na ficção em geral. Então essa coisa vaga que nós chamamos de ‘cultura geral’ talvez seja a ferramenta mais importante do crítico. Ele tem que ser um leitor onívoro. Incansável. Eu leio tudo, inclusive os livros ruins, ao contrário do que pensam os autores. Eu os leio do começo ao fim, morrendo de raiva, mas leio, porque é uma questão de honestidade intelectual. Sempre o autor descontente me insulta dizendo que eu não li o livro. Eu li. Infelizmente, eu sou masoquista, li aquele livro de cabo a rabo, por isso não gostei e digo por que não gostei. Mas é preciso ler tudo. A História da inteligência brasileira [obra de Wilson Martins] foi escrita sobre este ponto de vista. Literatura não é só literatura. É o aspecto de uma vida intelectual muito mais vasta, incluindo idéias, pensamentos, sistemas religiosos, técnicas, avanços sociais. A idéia da inteligência no meu livro é justamente mostrar como tudo isso se coordena e se influencia reciprocamente. Eu sempre digo, de brincadeira, que um país para ter um grande romancista, precisa ter também um bom dentista, porque são coisas que caminham mais ou menos passo a passo. Não se pode ter uma medicina pré-histórica e ao lado um grande romancista, como Tolstoi. Não é possível. O clima intelectual é homogêneo. Para se ter um Tolstoi precisa-se ter uma dezenas de sub-Tolstois, que foram trabalhando através dos séculos até amadurecer naquela cabeça. Por que certos países da África não têm literatura? Não existe ambiente cultural. Por que países como França, Inglaterra, Estados Unidos têm vida intelectual intensa? Porque há um ambiente cultural, intelectual, intenso. Tais coisas se acumulam. Um grande romancista precisa de um passado intelectual. Não é em qualquer pessoa que nasce uma certa idéia. Nem mesmo é ele quem tem a idéia. A idéia nasce de repente. Eu, por exemplo, quando começo a escrever, no decorrer do trabalho, muitas vezes, nem sei o que é que vai sair. De pensar é que vão nascendo os pensamentos. Isso me lembra a anedota que contam a respeito do Einstein. Um sujeito encontrou o cientista e disse: “professor, o senhor, decerto, sempre leva consigo algum caderninho onde anota as idéais que vai tendo”. E ele: “meu filho, até hoje eu só tive uma idéia” (risos). A gente tem uma idéia e ela aparece, às vezes, até espontaneamente. Tem esse lado. O trabalho intelectual se desenvolve por si mesmo ou a partir dele mesmo.
Existem muitos livros tentando explicar a literatura. Depois de tantos anos de crítica literária, o que é literatura, o que é poesia?
Ninguém sabe. Como Santo Agostinho dizia a respeito do tempo: se não lhe pedirem a definição do tempo, você sabe o que é; mas se lhe pedirem uma, você é incapaz de dar. É o que acontece com a literatura. Se não lhe pedirem uma definição, você sabe perfeitamente o que é; mas quando se trata de definir… é uma noção tão complexa… que não tem definição. Só pode ter um desenvolvimento raciocinativo. Sarte escreveu um livro chamado O que é literatura. O José Veríssimo, no Brasil, tem um trabalho que se chama O que é literatura. Mas as respostas são sempre insatisfatórias. Por melhor que seja a obra, sempre fica faltando alguma coisa. Nem poderia ser de outra maneira. Tais definições são sempre tautológicas: “a literatura é aquilo que é literário”, quer dizer, a gente não sai do caminho. Agora o que é literário é que varia de pessoa para pessoa. Isso sim. Quem vê a novela das oito na tevê tem um conceito de literatura que é diferente do meu. O nível mental é outro. Não digo que seja inferior nem superior. É diferente. Tem outros parâmetros de julgamento. Quem gosta de ler Nho Totico não lê Joyce. E não acha graça nenhuma em Joyce. E vice-versa. Milhares de pessoas não agüentam ler Machado de Assis. Acham que é um homem confuso, difícil, mas são os mesmos que lêem qualquer literatura de aventura e acham o maior prazer naquilo. Há níveis diferentes de acesso. A literatura e a poesia são isso: uma noção flutuante. Temos que resistir à idéia de que seja uma noção fixa: literatura é isso. Não. Literatura é isso e mais aquilo e mais aquilo, conforme os diversos momentos e interesses que se tenha naqueles momentos. Discute-se, por exemplo, o Discurso sobre o método, de Descartes. É uma obra literária e ao mesmo tempo filosófica. Quem lê aquilo como filosofia encontra satisfação. Mas é tão bem escrita que é freqüentemente aceita também como uma obra de grande literatura de estilo. Pessoas pouco familiarizadas com a vida intelectual acham Os sertões um livro muito difícil e até artificial, com um vocabulário que ninguém compreende, mas, para quem está vivendo nesse meio, ao contrário, é um livro claríssimo e de uma beleza estilística extraordinária. Mas beleza você não define, você sente. É o que acontece com a beleza física. Você olha uma mulher e acha que ela é bela e outro sujeito acha que ela não é tão bela assim. Ou, ao contrário, alguém tem uma mulher feiosa e a acha belíssima. E você diz: “como é que aquele sujeito foi casar com aquela mulher?”. O Voltaire dizia que a coisa mais bonita para um sapo é a sapa (risos). Isso dá uma idéia da relatividade desse gênero.
Uma avaliação sua da literatura brasileira contemporânea.
Outra pergunta sem resposta possível, por dois motivos: primeiro pela complexidade do campo que se quer estudar; em segundo lugar pela falta de distanciamento, perspectiva. Na história da literatura quantos autores foram celebrados como grandes escritores, geniais, renovadores, e desapareceram, não significam mais nada? É que nós temos hoje outros critérios e também — distanciamento. Pegue um autor do século 19. Você se coloca diante dele numa perfeita objetividade. Você não é amigo dele, não conhece nenhum parente dele, não quer nada dele. Então seu julgamento, na medida do possível, é objetivo. Mas com a pessoa com quem você convive hoje e que encontra na Rua XV [centro de Curitiba], não existe essa liberdade. Você é influenciado por ela e por seus amigos, pelos jornais que você lê, pelas pessoas com quem você conversa. Tudo isso cria um quadro dentro do qual se vê aquele autor. Acontece com o Affonso Romano de Sant’Anna. Grande parte dos críticos e resenhistas brasileiros ainda não tem objetividade para julgá-lo. São influenciados por outros poetas mais presentes, atuantes na mídia, ou da mesma ideologia. Uma coisa que influi muito é isso, um autor comunista é sistematicamente elogiado por críticos comunistas. Um autor católico, por críticos católicos que, ao contrário, condenam o comunista. E os comunistas acham os católicos absurdamente abaixo da crítica (risos). Essas noções todas influem no nosso julgamento. Eu mesmo acredito que devo ser influenciado pela minha educação, meu passado, pelas cidades que conheci, pelos círculos que freqüentei, tudo isso foi sedimentando, de uma maneira obscura, e, sem perceber, reagimos a partir daquilo. É automático. Um agnóstico não encontra beleza no livro de um romancista católico, porque para o agnóstico aquele é um mundo fechado. Ele não tem penetração. E o contrário, o católico não compreende um agnóstico, de jeito nenhum, não concebe como é possível alguém ser agnóstico. Essa é a relatividade dos juízos. Como crítico aceito tudo isso. Eu, embora seja afirmativo e até dogmático, como às vezes dizem, dentro desse dogmatismo aceito as diferenças. Deliberadamente. Eu faço força comigo mesmo para não ceder a essas inclinações mais espontâneas.