Tradução do japonês: Lúcia Hiratsuka
Na reunião das novelas A piscina, Diário de gravidez e Dormitório, a japonesa Yoko Ogawa constrói as tramas a partir de lugares e personagens simples, envolvidos em mistérios não esclarecidos — uma característica de obras que lhe garantiram os principais prêmios da literatura japonesa e ser finalista do Booker Prize Internacional 2020, com A polícia da memória.
Nesta exclusiva entrevista trilíngue ao Rascunho (perguntas em inglês, respostas em japonês e publicação em português), Yoko faz revelações de como precisa imaginar um local com clareza, para depois começar a escrever e projetar as figuras humanas nos espaços. Também defende que o papel da ficção seria transformar em histórias as situações nem sempre explicáveis pela razão.
• Jean-Jacques Rousseau escreveu que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Em A piscina, os protagonistas Aya e Jun são dois exemplos antagônicos a isso e entre si mesmos. Você quis afirmar que a natureza da pessoa, boa ou má, prevalece apesar do ambiente?
É certo que a sociedade, o meio ambiente, a família, diversos fatores se entrelaçam e afetam os seres humanos. Entretanto, o mundo interno de uma pessoa é tão complexo e caótico que seria impossível explicar apenas pelas influências externas. Todos trazem, em segredo, algum mal, desconhecido até por si mesmo, sem que tenha controle sobre isso. A crueldade que Aya mostra contra alguém mais novo e frágil talvez seja um amor distorcido por Jun. Ou mesmo a bondade de Jun, por vezes, pode gerar uma melancolia. Não temos como dividir categoricamente o bem do mal, também não há como colocar em oposição. Penso que o papel da ficção seria transformar em histórias as situações nem sempre explicáveis pela razão.
• Aya vive um belo amor platônico, mas tem rompantes de extrema crueldade. É bipolaridade ou dificuldade em lidar com o primeiro amor?
Reluto um pouco em rotular como doença de transtorno bipolar. Ela própria está atordoada dentro dessa condição de incapacidade de controlar a crueldade interna e que se relaciona com algo puro denominado amor. Não será frequente o primeiro amor chegar acompanhado de memórias amargas? Quando há um intenso desejo por alguém, a razão se perde, o constrangimento fica de lado, e tomam-se atitudes inaceitáveis. Até por isso, o ser humano é uma existência passível de compaixão e de ser amado.
• Você usa em suas obras poucos personagens, sem grande intelectualidade, mas de fortes personalidades e sentimentos. O desejo é mostrar a complexidade humana, independentemente da posição social?
Exatamente isso. Pessoas que cumprem sem questionar os papéis que lhes foram atribuídos. Ao invés de lamentar as perdas, amam e cuidam do que têm agora em mãos. Perante a sociedade podem ser rotulados como medíocres, mas são os que carregam uma profunda escuridão na alma. Tenho escrito repetidas vezes sobre esses seres humanos. Se for citar algo em comum entre eles, talvez seja a escassez da fala, uma dificuldade em revelar verbalmente sua essência aos outros. Coletar as palavras guardadas dentro deles torna-se possível através dos romances.
• Lugares simples também são muito explorados por você: o orfanato, a piscina, a clínica, o dormitório universitário, a edícula do professor (em A fórmula preferida do professor). Lugares são importantes para você como são em seus livros?
Com certeza, o lugar desempenha um papel bem significativo nos meus romances. Só consigo começar a escrever quando o visualizo com clareza. A piscina, o dormitório, a casa do professor. Imagino esses espaços e não aparecem as figuras humanas. É um estado ermo. Mas há uma certeza de que ali existiu alguém, um vestígio denso da presença que ainda persiste. Concentro minha atenção aí e, aos poucos, as figuras humanas começam a ser projetadas. Dou um passo nesse lugar em situação de ruína, fecho os olhos, e faço ressuscitar pessoas que já estão mortas. Ao escrever romances, por vezes, entro num estado de espírito assim. Um lugar muito importante para mim é o quarto de trabalho da minha casa. Quando estou escrevendo nesse estúdio, obtenho a mais plena percepção de estar viva. Escrever um romance é difícil, mas bem melhor se comparado à ansiedade de quando não estou escrevendo. Mesmo durante uma curta viagem, logo tenho vontade de voltar para casa. A minha família não gosta desse meu lado.
• São lugares simples mas cheios de mistérios não esclarecidos. A intenção é jogar, deixar o leitor criar suas próprias impressões sobre esses mistérios?
Não é que esteja armando um enigma como num jogo. Ao se depararem com enigmas insolúveis, as pessoas tendem a ficar inquietas. Sentem-se mais confortadas com conclusões claras, quando encontram um sentido. Mas na vida defrontamos muitas vezes com situações inconclusivas. Apenas ao aceitar o estado ambíguo da não certeza, da falta de uma resposta, uma verdade pode ser percebida a partir daí. Não quero guiar o leitor dentro do romance, as personagens e os leitores é que irão se confrontar cara a cara, um a um, em conversas silenciosas, e que possam encontrar as próprias verdades, assim é o meu desejo.
• Alguns personagens simplesmente desaparecem. É uma relação com um recente problema social no Japão, o Johatsu, a “evaporação” de pessoas que saem de casa por conta própria e abandonam suas antigas vidas?
Não, não pensei exatamente em incidentes sociais. Mais do que aqueles ao meu redor agora, os que aqui estavam e não mais, esses não exalam um sentido de presença mais fascinante? Isso é forte para mim. Os ausentes, os que perderam parte de si, a memória que se esvaiu, algo que não existe, me interessa delinear coisas assim.
• Seus textos têm amor, ciúme, náusea, cheiros, silêncio, memória, sentimentos que nos passam despercebidos no dia a dia. Você pretende chamar atenção a isso?
Na vida cotidiana, atropeladas pela correria, as pessoas tendem a deixar passar as emoções sutis que oscilam misteriosamente. Mas, às vezes, é tão necessário um tempo para deixarmos submergir em nossos lagos internos e escutar atentamente as suaves ondas que não formam palavras. Que a minha ficção seja algo para oferecer um momento assim, desejo isso constantemente. Representar uma emoção em palavras é bem difícil. Se escrevo “estou triste”, entro num beco sem saída. Sem falar da emoção em si, mas optar por algo concreto, como o gesto da personagem, a mancha da roupa, a silhueta da lua, a frieza do vento, retratar de forma precisa, pode revelar o interior de uma pessoa. Acredito nisso ao escrever.
• Algumas pessoas acham que nem há gestação real em Diário de gravidez, que opõe duas irmãs de forma surpreendente…
Quase não escrevi sobre o passado dessas irmãs. Mais do que a fragilidade da relação entre irmãs, são duas mulheres frente a frente, joguei luz sobre o estado de espírito que nasce com a gravidez de uma delas. Quando a caçula testemunha a mudança extremamente radical no corpo da irmã, a gravidez, percebe um tipo de excitação que não consegue explicar até para si mesma. Aparentemente, mesmo apoiando a irmã mais velha, ela é atraída pelo mistério da existência de um outro ser humano (bebê) e é tomada por um desejo torto. Mais do que ser verdadeira ou não a gravidez, eu colocaria em dúvida se é real a conduta da caçula (fazer uma geleia envenenada) relatada no diário.
• Mulheres protagonistas são constantes em seus livros. É apenas inspiracional ou há um propósito nisso?
Todas as personagens nasceram de uma inspiração natural, e não escrevi com uma intenção particular em relação às mulheres. Independentemente de gênero, sinto-me atraída pelos seres que vivem silenciosamente. Não dizem, em voz alta e de forma autocentrada, eu estou aqui. São pessoas que levam a vida tranquilamente num lugar que lhes foi ofertado.
• Falando em mulheres, você conquistou um espaço importante na literatura mundial, muito maior que outras autoras japonesas da sua geração. Como você vê esse sucesso? Abre portas para mais autoras de seu país?
Atualmente, as obras das autoras da geração mais jovem estão em constante expansão no exterior. Ao estrear, nem cogitava a possibilidade do meu romance ser publicado fora do país. Mas a geração atual lança um olhar para o mundo desde o início. O Japão é um país pequeno em dimensão e sem recursos naturais. Coisas que as pessoas produzem são possíveis de serem exportadas. Uma delas é a arte. Podemos dizer que os mangás e os animes já plasmaram o seu sucesso. Para a literatura ser traduzida e alcançar repercussão no exterior, não basta apenas o esforço individual, necessita de um apoio do país. Ao escritor lhe cabe escrever bons romances, apenas isso. O que é óbvio. Justamente por ser simples, é de uma enorme responsabilidade.
• Você cita bastante O diário de Anne Frank. O que ele significa para você?
Ao ler O diário de Anne Frank, numa idade próxima à da Anne, fiquei intensamente tocada, e de como palavras podem expressar o nosso eu tão livremente. Foi um impacto. É o livro que me ensinou, através da escrita, a ser independente e sem amarras. Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de atentar pela primeira vez para um problema social como o holocausto. Para uma garota simples, de uma pequena cidade provinciana do Japão, que grande oportunidade de abrir uma janela interna para o futuro e a sociedade.
• Quais outro autor ou livro importantes para você?
É uma pergunta difícil. São muitos os autores que aprecio. Mas se tiver que escolher somente um, é o Yasunari Kawabata. Eu amo a coletânea de narrativas breves que se chama Contos da palma da mão. Apego, malícia, pureza, ódio, sensualidade, morte, humor… tudo o que é essencial para a literatura está contido aqui. De vez em quando pego-o nas mãos, folheio rapidamente e releio o trecho que chamar atenção, só isso me traz a vontade de escrever um romance.
• Uma vez fui na livraria Kinokuniya em Tóquio e só encontrei Paulo Coelho na seção brasileira. Como você vê a literatura do Brasil?
Certamente, uma pena, não dá para dizer que a literatura brasileira ocupa um espaço relevante no Japão. Apenas O alquimista, ou Veronika decide morrer, de Paulo Coelho, tornaram-se bestsellers. Para ser honesta, eu mesma não consigo lembrar de imediato uma obra de autor brasileiro. Mas Machado de Assis, Jorge Amado e Milton Hatoum tiveram suas obras publicadas por editoras conceituadas daqui. Quando tiver oportunidade, gostaria muito de lê-los.
• O protagonista de A fórmula preferida do professor é um personagem incrível. E traz consigo deliciosas aulas num livro que até ganhou o prêmio da Sociedade de Matemática do Japão. Como foi o processo de transformar matemática em literatura?
Não fui eu quem inseriu a matemática na literatura; desde o princípio, o estudo da matemática continha elementos artísticos. Ao entrevistar matemáticos, eles se referem ao universo dos números trazendo palavras abstratas como o belo. E dizem que não se torna um grande matemático sem senso estético apurado. Kiyoshi Oka, famoso matemático japonês, ficou obcecado por haicai. Encontrou paridade entre o haiku que exprime a ordem do universo em apenas 17 sons e a fórmula que exprime em uma linha o segredo dos números infinitos. O Professor foi se construindo como personagem de forma natural durante o processo em que eu lia biografias de matemáticos e realizava entrevistas. Abandonado pelo mundo dos acadêmicos, ainda assim, ele não perdeu a capacidade de amar os números e as crianças. Também eu, na minha infância, gostaria de ter encontrado alguém como ele.
• Se você pudesse encontrar um autor, vivo ou morto, para um bate-papo em frente à estátua do Hachiko em Shibuya, quem você escolheria?
Que pergunta singular. Nesta entrevista ganhei a oportunidade de pensar profundamente sobre a minha obra. Ao encontrar Yasunari Kawabata, sem trocar palavras, gostaria de ser contemplada pelos seus grandes olhos, uma das minhas ambições. Ou, então, encontrar a Anne Frank, entregar meu romance traduzido para a língua holandesa e declarar: “Graças a você, aqui está uma pessoa que realizou o sonho de ser escritora”.