Uma das vozes mais expressivas da poesia angolana e africana chama-se Ana Paula Tavares. Ela nasceu na Huíla, sul de Angola, em 1952. É historiadora e mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Publicou, em Angola, Ritos de passagem (poesia), União dos Escritores Angolanos, 1985; O sangue da buganvília (crônicas), Cabo Verde, 1998; O lago da lua (poesia), Editorial Caminho, 2001 e, pela mesma editora, o recente Dizes-me coisas amargas como os frutos (poesia), 2002. Sua poesia é notadamente lírica, refere-se ao outro num tom romântico, com fortes traços eróticos, em suas duas obras poéticas anteriores. Na mais recente, isso dá lugar à sensação de algo que se perde e é irrecuperável: “Amado, por que voltas/ com a morte nos olhos/ e sem sandálias/ como se um outro te habitasse/ num tempo/ para além/ do tempo todo/ Amado, onde perdeste tua língua de metal/ a dos sinais e do provérbio/ com o meu nome inscrito/ Onde deixaste a tua voz/ macia de capim e veludo/ semeada de estrelas…” O título do livro é bem adequado. Reproduz um provérbio Kwanyama, povo do que habita o sul de seu país: “Dizes-me coisas tão amargas como os frutos”. Mas não só os provérbios de origem africana como também o “Cântico dos Cânticos” bíblico ou os “Cantares de Salomão” aparecem como uma das vozes que compõem sua poética. No entanto, os amantes do Cântico dos Cânticos são felizes e encontram-se em pleno gozo de sua paixão, em vez da sombra, da desesperança, da falência dos sentidos, toda uma aposta vibrante no futuro:
“Voz de meu amado/ ei-lo que chega/ corre pelos montes/ salta nas colinas/ o meu amado é semelhante a um gamo ou a uma cria de gazela/ ei-lo por detrás dos nossos muros/ olha pelas janelas/ espreita pelas frinchas/ fala o meu amado e diz-me/ levanta-te minha amada/ minha bela vem para mim/ pois o inverno já acabou/ a chuva passou de vez/ despontam flores na terra/ chegou o tempo das canções/ ouve-se na nossa terra/ a voz da rola/ a figueira brota seus frutos/ e a vinha florida exala perfume/ levanta-te minha amada/ minha bela vem para mim.”
Deve-se observar que a escritura de Paula Tavares carrega as marcas de sua africanidade, da desterritorialização de um povo que, durante muitos anos, sonhou com uma nação, com a revalorização de sua cultura. E em meio a este sonho, tamanho o desejo da volta às origens, encontramos não só nela, mas também em vários poetas anteriores à sua geração, como Noêmia de Souza, este retorno, num movimento nostálgico, à infância, à doçura, onde a terra, a vegetação, enfim, a natureza, faziam parte de um universo ainda não decomposto. A poética dominante de Paula Tavares, no livro mais recente, parece ser a poética da decepção, do desconsolo, do Caos, título de outro poema do volume: “Caos/ cactus/ cacos/ mãos feridas d’espinhos/ pousadas pássaros/ no meu rosto”. Nesta entrevista, ela fala sobre sua obra, a literatura e a vida angolana.
• A poesia angolana pode ser abordada como uma poesia de gênero?
Até muito pouco tempo, isso não era preciso. A voz da mulher realmente não tinha uma identidade, embora houvesse vozes femininas que tinham construído seus trabalhos em determinados momentos, como a poesia sobre a terra… Mas eu penso que essas mulheres, incluindo dentre elas Alda Lara, não tinham ainda uma consciência das particularidades do “eu feminino” dentro daquele universo. É muito difícil falarmos da poesia de gênero, pelo menos até certa época, até certo ponto, com relação à poesia angolana escrita por mulheres.
• Dentro da poesia de gênero, ela deve ser tomada como lugar específico no espaço e no tempo?
Sim. É muito recente este fenômeno de haver uma consciência do “eu feminino” e uma tentativa de reivindicar este espaço que ele comporta. Mas também não podemos interpretar, mesmo em relação às novas tendências, mesmo em relação à coisas que surgiram há pouco tempo, não podemos interpretar isso como uma poesia de gênero. Digamos que algumas mulheres, sobretudo a partir dos anos 80, começaram a deslocar o centro onde o sujeito poético estava muito fincado. Então, há uma poesia que surge falando da problemática de ser mulher numa sociedade africana como a nossa.
• Existe algum tipo de preconceito com relação à poesia escrita por mulher em Angola?
Não. Não existe assim generalizado. Não existe esse preconceito. Há preconceito em relação à poesia em geral. Por outro lado, a poesia e a escrita ainda funcionam como um argumento poderoso, contestatório. O escritor possui um estatuto muito particular naquela sociedade.
• A questão do erótico refere-se à sociedade tradicional ou mais à sociedade urbana?
Eu acho que quando esses assuntos se pegam, nós não podemos separar as duas sociedades porque o clichê é a idéia de que a mulher angolana é a mais livre, a mais sensual, é um clichê generalizado, pois a sociedade africana cobra um certo papel da mulher; como ser uma boa mãe, uma boa esposa… Quando na poesia há uma referência a esta temática do corpo, da sensualidade, não pensamos numa única mulher, mas em todas as mulheres. Sendo assim, as duas sociedades, de formas diferentes, conservam seus rituais.
• Quais os pensadores e poetas que têm influência em sua formação como escritora?
Eu citaria três poetas angolanos que tiveram muita influência no trabalho que eu fiz, de uma maneira ou de outra: Davi Mestre, Arlindo Barbeitos e Rui Duarte de Carvalho. Os poetas brasileiros — Bandeira e Drummond — eu diria que são minhas referências diretas. Mas, em determinadas épocas da minha vida, fizeram parte de meu universo literário: Murilo Mendes, Clarice Lispector, Octávio Paz, Soyinka… Tudo isso são referências.
• Existe alguma influência dos escritores modernos brasileiros, do Movimento Antropofágico, na literatura angolana?
Não, talvez não uma relação direta e aberta como aconteceu em Cabo Verde, mas toda a geração que escreve em Angola depois dos anos 40, a partir de 1945, talvez, é uma geração que inclui todos os escritores brasileiros. De Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado; toda a gente de várias gerações… Antes de Jorge Amado ser transformado em moda, muita gente leu suas obras.
• Em termos de poesia, me parece, que o mais lido lá é o Manuel Bandeira…
Em determinada época… A geração poética mais nova que surge nos anos 80 é uma geração que já não leu tanto Manuel Bandeira, leu um certo Drummond e buscou poetas mais novos como Manuel Prates, por exemplo, que foi muito lido nesta geração nova.
• Como historiadora, qual a importância do conceito “revolução” para a formação literária angolana?
A literatura, em determinadas alturas, foi profética, esteve antes da revolução, muitas vezes como elemento mobilizador dessa mesma revolução. Já no Vamos Descobrir Angola, uma literatura de manifesto, uma literatura panfletária em torno da angolanidade, a partir de 1948.
• A citação de provérbios, presente em sua obra, recupera uma dimensão africana na literatura?
Tenta. Mas não podemos esquecer que literatura é literatura, tudo isso é artifício… Aquela forma da tradição oral surgiu para cumprir um determinado papel e o que a poesia faz é retirá-la de seu próprio contexto e refazer essa mesma poesia. Eu trabalho com isso e me debato com esse problema entre desrespeitar a fórmula da tradição oral, para trazê-la até nós, e chegar nela para retrabalhá-la. É um desafio…
• Como você acha que seus poemas interagem com seus leitores na Angola de hoje?
A repercussão dos meus poemas, para mim, tem sido uma grande surpresa, pois eu não esperava que fossem tão bem acolhidos. As pessoas gostam, compram! O primeiro livro esgotou rapidamente, o segundo livro também tem vendido muito… As crônicas, as pessoas também gostam… Há um eco de uma importância conferida à minha poesia que eu, francamente, não esperava!..
O canto da noite
Paula Tavares
Por que bebes o meu vinho, amigo
como se fosse o último
um vinho que te amarga a boca e perfuma as vestes
enquanto um coração de sinos toca
a descompasso, com palavras amargas
que te povoam a garganta
Nas mãos desfaz-se o copo
vício antigo
de amassar a massa de deus
soprar os ventos
despertar o espírito do vinho
plantar a despedida
sobre o canto da noite.
(poema extraído do livro Dizes-me coisas amargas como os frutos)