“Ainda não superei a ausência de João Cabral”

Entrevista com Marly de Oliveira
Marly: “O silêncio é necessário, é como um retirar-se para pensar”
01/08/2003

• Há uma dificuldade da crítica brasileira em pensar o poema como filosofia poética? Seria um medo ao obscuro, que também atinge Jorge de Lima?
Não sei se há ou não dificuldade da nossa crítica em pensar o poema como filosofia poética. Nunca notei isso em Antonio Candido ou Benedito Nunes. Quanto ao José Guilherme Merquior, falou em dado momento da poesia de Goethe como se ocupasse o lugar de uma filosofia na Alemanha da época. No Brasil, no Rio sobretudo, houve grande insistência do João, quarenta anos passados fora, na materialidade da linguagem, na imagem como núcleo do poema. Já Drummond dava primazia à palavra, pois o simbolismo francês deixara a lição de que não é com idéias que se faz o poema. Murilo era um visionário, um surrealista, que mereceu o respeito de todos. Tudo isso depois de 22. Sei que então o Jorge de Lima, que não afastava a música do poema, não era muito admirado por eles. João jamais gostou de música, salvo a espanhola. Em verdade, como sempre aconteceu e Alfonso Reyes transformou em teoria, cada época se opõe a anterior, como aquele movimento pendular do apolíneo e o dionisíaco de Nietzsche. O movimento de 22 queria acabar com o parnasianismo, a que se seguiu a geração de 45 e depois o que temos visto até agora. O que houve em comum em alguns poetas importantes do século passado foi uma espécie de despersonalização, não como um Fernando Pessoa, com a criação dos heterônimos, mas para fugir ao eu, à confissão, característica mais dos românticos. No entanto Dante, na sua Commedia, já mostrara sua visão do mundo, unindo São Tomás e Aristóteles. E com todos os exegetas que teve, jamais foi tido como obscuro. Quando escrevi o Narciso, logo depois do Cerco da primavera, era um momento em que Mario Faustino e seus colaboradores falavam da beleza pura, completa em si mesma. Mas eu que havia lido os anteriores (de Ovídio, Calderón, Sor Juana, Valéry) tentei dar-lhe outra interpretação.

• Um dos enganos que podem ser impingidos a sua poética é pensar que ela foge do real, quando trata justamente de absorver o real até sua fartura. A sensação é que está tão dentro da escritura que ganha distanciamento?
É difícil para mim pensar numa poética que fuja ao real, já que para expor apenas idéias/pensamentos seria possível recorrer à prosa, sobretudo ao ensaio.

• Penso seus quinze livros como um opus, um mesmo manancial temático, que a cada obra ganha um novo ângulo, desdobramento, interrogação. Essa unidade é conscientemente almejada?
Essa unidade vai surgindo, porque, segundo Pedro Salinas ou Borges, a gente acaba escrevendo um só livro. E quando se começa cedo, é provável que se queira fazer algo mais, aprofundar, pois somos frutos de experiências internas e de muitas leituras.

• Uma das virtudes de sua fatura poética é comunicar o incomunicável, procurando sempre traduzir o indizível. Em Uma vez, sempre, essa marca é cada vez mais inconfundível, fazer do poema um caminho para indecifração, respeitar os mistérios, não agredir o quarto com excesso de luz. Sua poesia é feita do que não pode ser dito?
A idéia de comunicar o incomunicável mais parece convir à Clarice Lispector do que a mim. Não pretendi em uma vez sempre senão mostrar a relação de Mallarmé com a poesia, que tentou concretizar numa figura feminina, mas que fosse difícil alcançar, desdenhosa e alheia. Mas depois sofre com esse fato, segundo cartas a Cazalis e a outros amigos, tentei descrever seu sofrimento, quando não se viu logo entendido e irrompe em exclamações, que agora até me lembram Santo Agostinho, depois de sua conversão: onde o Deus que é dia e noite/inverno e verão, fartura e fome? Sente-se abandonado, inquieto. Acho que fala disso nas Confissões. Jamais me ocorreu fazer do poema um caminho para a indecifração, já que se lê pouco entre nós, os livros não são sequer bem distribuídos. E não creio que haja alguma coisa que não possa ser dita no que se faça.

• Assim como Clarice Lispector, sua vocação literária é o equivalente a guardar um segredo sem descobrir a senha?
Não creio. Mesmo em Clarice, quando comecei a ler sua obra em 1960, voltando da Itália, o que me entusiasmou foi o fato de que seus grandes romances a gente lê sem aflição de saber o que acontece. É claro que no romance em geral, há muitos fatos, muitos personagens. Não é o caso de Faulkner, nem de Carson M’Cullers nem de Virginia Woolf, nem Camus, nem de Clarice.

• Não pretende salvar ninguém, nem a si mesma, o ímpeto que aparenta, a princípio, ser messiânico, estaria propondo o contrário: o aprendizado pela negação e pelo vazio. Um ensinamento que, no fim das contas, quer compreender, sem necessidade de culpa e do perdão?
Às vezes você me atribui algo que eu atribuí a Mallarmé e nem acho que o aprendizado passe necessariamente pela negação e o vazio. Mme. Blavastski diz que o vazio é um fogo e o um sagrado forma com ele o número perfeito, na interpretação que faz do universo. Culpa e perdão já têm conotação psicanalítica, mas podem ser usados comumente, fazem parte da linguagem despretensiosa do dia-a-dia.

• O silêncio aparece sempre afirmativo,“vivo”, como uma pessoa, alguém que questiona a existência da ordem doméstica por uma ordem supra-real. O silêncio é o idioma estrangeiro de nossa língua? Exercitar esse idioma é aprender a esquecer?
O silêncio é necessário, é como um retirar-se para pensar, mas não entendi quando você aproxima o silêncio de um idioma estrangeiro, porque já escrevi em outras línguas e não vejo a relação.

• Um de seus versos afirma: “terminado em fracasso, como sempre e sem motivo”. O fracasso significa a mais genuína experiência poética? Esquecer o poema perfeito é o mais perto do que podemos chegar dele?
De forma alguma, o fracasso é o que acontece quando se tem determinada pretensão e não a realiza. Também não sei o que é o poema perfeito. Há certos poemas que ficam em nossas memórias até bem curtos como aquele em que Ungaretti descreve a manhã:         M’illumino

D’immenso.

• Em Uma vez, sempre (2000), seu livro mais recente, retoma o espelho como elo da duplicidade humana, ser e não estar ou estar e não ser, nunca havendo convergência entre os dois estados. Traz à tona a figura de Hérodiade diante do espelho, a partir de Mallarmé, revigorando as reflexões sobre Narciso, seu segundo livro de 1960. Há uma evolução emotiva entre uma obra e outra: de uma solidão inexorável chega a uma solidão acompanhada, cintilando uma aliança no dedo?
O espelho retorna porque Mallarmé põe Hérodiade diante dele, não porque assim eu o tenha desejado. O Narciso está diante de uma fonte, que é um espaço aberto. Se o meu Narciso termina numa solidão luminosa, Hérodiade é apenas o início da obra de Mallarmé, que, como você sabe, foi mestre de muitos autores, reunindo vários deles em seu apartamento às quartas-feiras. Não notei que se tratasse da solidão acompanhada, mas de vontade de comunicação, pois fora professor durante anos.

• Na poesia de João Cabral, há uma mesma insuficiência, uma incompletude interrogativa, destruindo um conceito por uma melhor definição. Se nele a imagem é o núcleo do poema, em seu caso, a posição central é exercida pelo pensamento. Em ambos, há uma objeção ao confessional. Se em Fábula de Anfion, Cabral joga a flauta aos peixes surdos-mudos, dessacralizando a escrita, Marly sacraliza a falta, a ausência do dizer, deixando os peixes falarem. Ou seja, não é mais o poeta que fala, mas o poema. “Falta que nenhuma flauta pudesse descrever.” Essa parábola é possível?
Não sei se a posição central de meus poemas é o pensamento. Só porque tenho algo a dizer algumas vezes? Em Fábula de Anfion, não há a dessacralização da escrita, mas um impasse vivido pelo poeta. No meu caso essa “sacralização da falta” lhe parece uma constante em todos os livros? Fora do contexto qualquer coisa pode ter o sentido que se lhe quer dar. Quanto à Fábula de Anfion, que em Valéry leva a uma construção, o João inverteu a situação, porque achava que não escreveria mais, estava num impasse. No entanto chegou-lhe às mãos uma revista que mostrava que os hindus viviam mais que os pernambucanos. Foi então que escreveu O cão sem plumas, belíssimo poema, mas ainda muito metafórico.

• Em A incerteza das coisas, afirma que tem “o sentimento do mundo (de Drummond) e o sentimento do tempo (de Ungaretti)”. Eu acrescentaria principalmente que apresenta um sentimento do espaço, da vida como uma casa desconfiada, em permanente reforma.
A presença da casa em minha vida é algo muito forte, não estou falando daquelas em que vivi fora do Brasil, mas a da minha infância em Campos, a de Brasília que construí. Vir para o Rio foi algo que aconteceu, porque a casa teria que ser vendida. Meu primeiro marido (que é hoje embaixador no Marrocos) já estava casado de novo e teria que voltar a Brasília.

• Faz quatro anos que João Cabral faleceu. Como tem sido superar essa ausência do marido e do amigo?
Ainda não superei essa ausência, embora já me tenha casado sabendo que ele estava muito doente. Acho às vezes insuportável morar sozinha.

• Por outro lado, o casamento com João Cabral não provocou injustamente um ruído de comunicação do seu legado, sendo transformada injustamente em primeira-dama da poesia brasileira quando já era uma das principais vozes de nossa lírica?
É provável, mas isso não me importa porque nem me considerava importante, já tinha 14 livros e queria que ele estivesse sempre melhor.

Marly no espelho

Depoimento inédito da poeta Marly de Oliveira

Quando publiquei o primeiro livro, Cerco da primavera, ainda estava na Faculdade de Letras da PUC, mas desde cedo, senti uma espécie de chamado, ouvindo as cantigas de roda. Exercitei-me na prática do verso com o tratado de Olavo Bilac e Guimarães Passos, que encontrei na biblioteca de meu pai em Campos.

Assim como no piano se faziam exercícios de Bach, antes de começar a tocar qualquer coisa, eu afinava versos. Ocupava-me com a idéia de um dia ser escritora. Imagine, em Campos, lendo o que tinha à mão, antes de sair de uma escola particular e passar para uma escola pública, Liceu de Humanidades, devido a problemas familiares. Fui obrigada a uma alteração de idade.

Vindo ao Rio com meu pai, tive a chance de conhecer Cecília Meireles, que fazia uma conferência sobre a Índia, e Tasso da Silveira, que seria depois meu professor na PUC e que me deu um livro raro de Renan, sobre a vida de Cristo. De volta a Campos, fiz o curso normal, pois não havia ainda faculdade de Letras. Regressei ao Rio para o vestibular da PUC.

O grande impacto inicial foi com a literatura espanhola, dada por Emília Navarro, desde o início até a geração de 98, com Lorca, Guillen, Antonio Machado e Salinas; a literatura italiana, com Dante, Petrarca, Bocaccio; a literatura francesa, desde a Chanson de Roland até Baudelaire e Mallarmé.

Fiz em Roma a pós-graduação (que levaria ao doutorado) com Roncaglia e Schiaffini e entrei em contato com Ungaretti, que havia deixado o ensino, mas era a pessoa mais respeitada que conheci na Itália. Mais que Montale, Quasimodo e outros. Conversamos muito sobre Leopardi, sobretudo. E foi com surpresa que eu o ouvi ler alguns poemas que eu fizera em italiano, na RAI. Nunca os publiquei no Brasil, mas talvez o faça agora junto com um Um feixe de rúculas.

De volta de Roma, Antônio Houaiss já entregava a Explicação de Narciso e logo depois escrevi A suave pantera. Já então havia assumido na PUC do Rio, de Petrópolis e Friburgo, as cadeiras de literatura Hispano-americana e língua e literatura italianas.

Seguiram-se o Sangue na veia (65) e A vida natural, publicadas pela Editora Leitura juntas em 67.

Nenhum crítico falara de uma tendência filosófica, embora já tivesse deixado para escanteio a preocupação esteticista. O que se podia registrar era a minha preocupação com a morte, a exaltação adolescente amorosa no primeiro livro (que tive o prêmio do Instituto Nacional do Livro), a preocupação com a beleza pura, mas que tentei interpretar de modo diferente, com o Narciso, a objetivação do poema com A suave pantera. As inquietações maiores surgiram com A vida natural. Casada com um diplomata em 64, fomos em 68 para Buenos Aires, onde a vida social era intensa e os encontros nem sempre verdadeiros.

Não hesitei em procurar Borges, de quem fiz com Maria Julieta Drummond, a pedido de Fernando Sabino, a tradução da Nueva Antologia Personal. Borges era impressionante: quase cego, tinha uma memória fantástica, de modo que se podia conversar sobre Chesterton ou De Quincey. Foi um período muito bom. A ida para Genebra, quatro anos depois, me pôs em contato com Piaget, outra figura genial. Podíamos ir várias vezes à Itália, à França, à Grécia, à Alemanha (onde estava o José Guilherme Merquior, de quem traduzi Verso universo em Carlos Drummond de Andrade).

Quando voltamos ao Brasil (Brasília) em 74, construímos uma casa à beira do Lago Sul. Tinha duas filhas, uma de sete anos e outra recém-nascida.

Em Brasília escrevi o Orpheu, depois Aliança, A força da paixão, A incerteza das coisas. Com a separação, vim com as meninas alguns anos depois para o Rio. Um mês depois, João me pediu em casamento, ficara viúvo e precisava voltar ao Porto, onde era Embaixador para poder se aposentar. Acho que o aproximei mais de Portugal, pois sua paixão sempre foi a Espanha (Sevilha, sobretudo).

Mas logo teve uma úlcera que estourou e me deu um grande susto. João, saindo daquela cirurgia, tinha várias anotações, que reunimos em Crime na Calle Relator. Foi então que percebi, como insistia em separar a obra da biografia, tentando esconder os problemas pessoais, os conflitos, o que não deixava de ser atual, se a estética da contradição ganha agora status de novidade absoluta.

Só o José Castello foi fundo, mostrando as coisas que nunca tinham sido reveladas. Basta dizer que um cineasta, a quem autorizei um documentário a partir de uma entrevista, preferiu dar força de verdade ao que lhe disse Inez, filha mais velha de João, fazendo dele um brincalhão, rodeado de filhos e netos, quando na verdade, sempre mandou os filhos para o Brasil, com o argumento de que não podiam perder as raízes, sustentando-os de longe. Foi o que lhe expliquei, quando aqui chegamos. Pois eles pouco vinham vê-lo e preferiam pedir a mim o de que precisavam.

Assim, nos treze anos e meio que dele cuidei, com amor, da saúde, de seus livros, organizando a edição da Aguilar, prefaciando-a e retirando depois, com outros prefácios, uns livros para a Nova Fronteira, que já era a minha editora.

Ainda no Porto comecei o Banquete, editora Record, com prefácio de Mário Chamie e os catorze livros foram reunidos por Massao Ohno, comemorando seus 30 anos de editor.

João escreveu para mim, depois, Sevilha andando e eu, para ele, O deserto jardim, que lhe pareceu um pouco hermético. Ele gostava muito de minhas filhas, que eduquei sozinha, dando-lhes independência e vontade de trabalhar.

Quando se foram e escrevi o Mar de permeio (prêmio Jabuti) parece que se entusiasmou e preparou — com um resto de visão — minha primeira Antologia poética.

Quanto a Uma vez sempre, foi uma tentativa de comemorar o centenário de Mallarmé, mas para minha surpresa, ele me disse: “Este livro é meu”. E eu pensei: se Mallarmé dizia que era preciso poetizar o poema (no sentido de se tornar mais difícil a poesia) e João: é preciso despoetizar o poema, por que essa identificação? Reli Baudelaire, Auden, mas foi em Ponge que consegui compreender.

Com os Moreira Salles, organizei o primeiro caderno de literatura; as perguntas chegavam por fax e eu escolhia o melhor momento para que pudesse responder. Eu anotava o que ele dizia e depois respondia.

Como bom pernambucano, era muito possessivo. Quando eu chegava à sala, ele se calava (O Castello escreveu sobre isso, que, no entanto, não me incomodava, pois sei que se sentia melhor assim).

Já quase quatro anos se foram, mas sinto sua falta de modo intenso, porque me ocupava muito, fiquei estressada e um tanto deprimida. Só então reparei que, ao levantá-lo sempre com a mão direita, desloquei uma vértebra e não quero operar. Estou sem ânimo, pois minha mãe está com o Mal de Alzheimer e não vai durar muito. Eu me vi sozinha. Tenho convites para Stanford, alguns lugares da Europa e, no entanto, ainda não tive vontade de dar à Nova Fronteira o último livro. Também não reuni os artigos escritos em jornais e não aprendi a lidar com computador.

LEIA ENSAIO SOBRE MARLY DE OLIVEIRA

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho