O poeta e escritor Barros Pinho acaba de lançar o livro de poemas Carta do pássaro. No fim do ano, ele deixa a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (CE). Nesta entrevista a Cláudio Portella, Barros Pinho fala da paixão pela poesia, ficção, do regionalismo nordestino e dos desafios de se gerenciar a cultura no poder público.
• Observo em seus livros de poesia, citando apenas Planisfério, que se encontra na segunda edição, e que é um sucesso, tanto estético, como de público e crítica, e esse agora Carta do pássaro (na minha opinião seu melhor livro, independente de gênero), que os poemas não trazem letras maiúsculas. A pergunta é: por que as minúsculas?
Não tenho muita consciência desta resposta, podia apenas dizer que uso minúscula porque não usei maiúscula na escritura dos poemas que publiquei a partir do Planisfério, segundo sua informação, consagrado pela crítica e pelo público, pois, não me satisfaz ficar tangenciando os questionamentos, absolutamente necessários ao processo criativo da literatura. Faço poesia como quem ama; ama exaurindo-se de paixão, submetendo-a a critérios técnicos formais, onde nunca se afastam a intuição e a imaginação. A matéria-prima usada é a palavra em sua total dimensão. Talvez a insistência no uso de letras minúsculas seja apenas um indício de fugir do convencionalismo sem a pretensiosa transgressão do modismo de circunstância que logo se extingue no tempo sem apresentar nenhum resultado estético convincente. O que persigo mesmo é a uniformidade estética do poema sem o sacrifício do ritmo sem as amarras dos sinais de pontuação. Gosto de acompanhá-lo livre na sua trajetória, marcado pela beleza que surpreende os olhos e encanta a alma, sem o derramamento próprio da pieguice adiposa para lembrar a expressão da inteligência inquieta do inesquecível talento de Eusélio Oliveira, mesofaciador do Planisfério desde a sua primeira edição.
• Já li muitos textos seus exaltando o azul. Você tem dois livros de poesia nos quais o azul é figura de frente. Natal do castelo azul, 1986, e pedras do arco-íris ou a invenção do azul no edital do rio, 1998. Seu novo livro Carta do pássaro é todo azul. Qual o motivo de tamanha atração pelo azul?
Se pela vida afora sempre há necessidade de escolher, assim gosto do vermelho, mas escolhi o azul. A cor me seduziu e passou a acompanhar e a se incorporar ao meu fazer poético com certeza, para consolar o menino que não se conforma em haver deixado a infância na paisagem empalmeirada das margens do rio Parnaíba, onde um céu limpo moldurava tardes verde-azuis preparando o nascimento do poeta. É forçoso acrescentar que, os versos daí surgidos vieram permeados de chão molhado e festejado pela escritura dos pássaros, das cores (sobretudo o azul) impregnadas de fantasia e de paixão (erótica) ousando reinventar pela palavra, o mundo do sonho na postulação da liberdade como destino maior do homem. E o azul persiste, tendo também, origem numa perturbadora paixão infanto-juvenil por uma menina-moça ainda hoje fixada em meus olhos, pastora do Natal que apenas vi num lugar tão distante na geografia de meus sentimentos, mas nunca devastada pelo tempo. Ela era do Partido Azul. Portanto, fica evidenciado que, azul em mim não é apenas um disfarçado ingrediente do poema; ele anda comigo, agarrado a todos os pedaços do meu cotidiano. Ele não se repete. Resiste como o escândalo ante a pureza, essa pureza que se dilui no embate com a hipocrisia dos homens cavilosos deste começo de século. Posto nestes termos, o azul insistente no meu discurso poético não persegue somente a cor; mais do que isso é o ontem projetando-se no hoje para assegurar, pela palavra, o desespero /o desespero/ que terrível forma de esperança. Portanto, advirto, é bom não ter medo de deixar o azul entrar luminoso em seu destino. Não me desencontro dele e por ele me encontro com a vida sem ficar distante da paixão. E assim, vivo. Viver é saber estruturar-se na paixão.
• Em 1969, você lançava Planisfério e acabava de sair da cadeia. Prisão essa devido a sua luta contra o regime militar. Fale de sua vida nesse período e até que ponto a luta pela democracia, nos anos de chumbo, influenciou os poetas de sua geração.
Em 1969, quando lancei Planisfério, mesmo que eu estivesse lutando tenazmente pela sobrevivência, uma vez que, enfrentava dificuldades para inserir-me no mercado de trabalho, não apenas sofri a história, como de resto, sobra para os poetas, quando estão envolvidos com a perplexidade das circunstâncias cruciais da vida. É bom que se diga que a cadeia não faz poeta, ele para nascer deve estar sempre além desse horizonte. O que faz a poesia é o conjunto da vida, assim, quando cheguei ao 23BC — quartel do Exército — para cumprir a prisão política, embora muito jovem, já levava comigo na bagagem da alma um bom estoque de poesia que precisava de mais leitura e de aprimoramento técnico e do domínio da linguagem. Lá, diante da perplexidade de alguns companheiros ou da lucidez histórica de outros, aprendi uma lição — a da solidariedade — e tive tempo para refletir e para ler demasiadamente a ponto de preocupar uma figura humana extraordinária que me prestava uma atenção paternal — Amadeu Arrais, procurando conversar comigo para me tirar da ânsia com que eu me debruçava sobre os livros. Confesso que, a literatura produzida logo, pós 64, não ousou em nada, foi uma produção tímida com raras exceções na prosa para José Cândido de Carvalho e na poesia uns poemas engajados de pouca expressão, salvo a produção poética de Carlos Nejar até conformar-se definitivamente na Academia Brasileira de Letras. No Ceará, houve o surgimento do Grupo SIN, nascido com uma postulação equivocada, a de substituir pela negação o Grupo Clã. Os integrantes do Grupo SIN enveredaram na sua grande maioria pela vida acadêmica e está aí na universidade, sobrevivendo, cada um para seu lado, sem preocupação política maior e sem unidade na produção literária. Os anos de chumbo interromperam o processo histórico no plano político e literário, castraram a criação pela censura e pelo pior, a autocensura que se estabeleceu numa desconfiança generalizada nos setores mais conscientes da sociedade. Desconfiava-se de tudo, até do salgadinho numa festa de aniversário. O medo foi a matéria-prima da resistência, até alcançar a guerrilha do Araguaia. Aí começa outra história, até se alcançar o Estado de Direito Democrático.
• Carta do pássaro traz seis poemas que versam sobre o Natal. O que representa o Natal para você como homem público e como poeta?
Talvez seja o que não representa o Natal hoje, o que, realmente, me fascina. O Natal que se apresenta agora, anda muito longe da pureza evangélica e paradisíaca do cristianismo primitivo, está muito mais próximo do mercado do que da fraternidade e da justiça social. Não é uma lição de vida. É sim, um belo empório comercial atormentando os assalariados que não podem comprar presentes para os filhos despertados pela fúria do consumo desvairado. Como não aceito essa degradação do humanismo que deveria permear toda a festa do Advento, respondo com uma certa nostalgia a lembrança do Natal, do presépio, da missa do galo, dos namoros no patamar da igreja de São Benedito, em Teresina, dos valores da vida rural, da vaca que sabe que vai mugir, do displicente jumentinho atômico carregando o apocalipse, do prefeito gordo e grave — cidadão pavão — entregando a chave da cidade ao nórdico Noel municipal. Sirvo-me, às vezes, da ironia e da realidade da vida rural para chamar a atenção dos homens sobre o essencial das coisas. Estou consciente de que o tempo não volta, nem me proponho esta sandice, mas não me conformo de conviver pacificamente com a hipocrisia dos que se cevam no egoísmo para explorar os humildes e os simples que constroem o mundo com o trabalho, o sofrimento, sem perder a esperança. Escrevo poemas de Natal como se fosse uma colheita de paz, de fraternidade e de resgate dos mais puros e legítimos sentimentos da humanidade. Insisto, não me canso nem me frustro, até onde sei, sou o único poeta do país que tem um livro sobre o tema e sobre o Natal continuo escrevendo, ouvindo o sino das capelas e o ruminar dos bovinos no pasto da solidão. Não estou me repetindo, pois quem se repete desgovernadamente é o Natal sem o engenho humano da missa do galo.
• Há um rio na vida de cada um. O seu, notadamente, como vemos em sua produção literária é o Parnaíba, do Piauí. Onde nasce e desemboca o Parnaíba em você?
O rio Parnaíba nasce e desemboca em mim mesmo. Corre no meu sangue, toma conta do meu corpo e entra no mar nas encostas de minha alma. Leva e lava minha solidão. Todos os poetas do Piauí começam e terminam seu discurso poético no rio Parnaíba desde Da Costa e Silva, com o velho monge, até os poetas de hoje, que reverenciam e celebram suas águas barrentas. O rio anda comigo no alforje de minhas esperas e, de minhas esporas usadas para fustigar os cavalos de carnaúba dos meus tempos de menino. Portanto, tenho apenas um displicente olhar para o mar em Fortaleza ou em qualquer parte do mundo onde eu estiver, mesmo assim, vejo nele o rio Parnaíba — o espelho de minha infância. É o menino teimando com a vida para não ser adulto. O adulto é triste e a tristeza não me completa.
mar que se abraça com o rio Parnaíba
sabe Deus o destino das águas
• Seu livro anterior, de contos, A viúva do vestido encarnado, foi umas das principais obras desse começo de século que resgataram o propagado neo-regionalismo. Como você vê esse novo regionalismo?
O livro é uma lavratura da aldeia. Ninguém escreve fora de sua vila. A vila é uma janela que se abre para o mundo. A dor do homem do Nordeste é indivisível sem ser diferente da do homem de Nova York. Todos os seres humanos, independentemente da Geografia, têm sentimentos parecidos e sofrem a angústia da espera. O neo-regionalismo é uma redefinição da literatura de ficção realista de 1930 (romance de 1930) que se faz pela linguagem. Ninguém pode ser escritor sem dominar sua língua e sem incorporá-la à sintaxe do povo. A minha experiência se fundamenta nesta direção. A viúva do vestido encarnado também propõe vencer todos os limites estabelecidos existentes entre a prosa e a poesia. Portanto, um texto único, um gênero só, uma vez que, o que importa é o texto, a linguagem no fazer poético e no exercício da prosa de ficção. Hoje, não há mais disponibilidade de tempo para departamentalização da literatura. Um bilhete bem escrito pode comover tanto que deve ser levado à categoria de literatura.
• Carta do pássaro traz um poema denominado andarandando. O também piauiense Torquato Neto tem um intitulado andarandei. Os poemas falam de assuntos diferentes. Mas, conteúdo à parte, percebo uma releitura entre você e Torquato. Até porque Torquato Neto, além de piauiense, feito você, também abusava das minúsculas. Existe de fato essa ligação? E se existe é intencional?
Não me ocorre, em tempo algum, haver lido o poema de Torquato Neto Andarandei. Li outras coisas de sua lavra, poemas dispersos composições musicais publicados em jornal, nada em livro. Como nascemos no mesmo chão sagrado do Piauí e tivemos uma vizinhança na rua do Barrocão, em Teresina, que só agora descobri, é justificável a coincidência, aliás, muito previsível na literatura. Em verdade, na vida, ninguém cria nem inventa nada de novo, recria-se pela grandeza ou pela mediocridade, dependendo do método adotado ou do estilo. Tudo está no mundo à disposição do homem. Portanto, o Torquato Neto, talentoso e inventivo, fez sua parte do lado de cá do rio (aliás, do mesmo rio dele). Procuro fazer o que posso usando letras minúsculas, mexendo com a sintaxe, à procura de minha própria identidade. Só quero o que “me sobra desse latifúndio”.
• Você representa a pasta da Secretaria de Cultura da quinta maior cidade do país. Como é fomentar cultura na cidade de Fortaleza? Quais seus critérios para a aprovação dos projetos?
Não é fácil, não é fácil. O problema não é só de orçamento, nem o de vencer os labirintos sufocantes da burocracia. O lidar com a emoção do artista é mais que um desafio; precisa-se de muita sensibilidade e de maior habilidade. Talvez necessite de um treinamento especial com os deuses gregos para não faltar inspiração na hora de decidir. Por mais que se faça, fica sempre alguma coisa para ser feita —, o que escapa da estrutura e da conjuntura. O artista não se satisfaz nunca. Satisfeito ele morre sem ressurreição no paroxismo cultural. Consciente do meu papel, deixo a cultura declamando São Paulo: “Combati o bom combate…” e entrego à cidade com a qual me identifico político e culturalmente, um selo editorial (publicações respeitadas), um jornal, uma revista, o Teatro Antonieta Noronha, uma lei de incentivo à cultura (tão reclamada pelos produtores culturais), o Memorial da Propaganda, muita ajuda e apoio aos artistas e agentes da cultura, a reestrutura da Funcet institucionalizando vários projetos em todas as áreas culturais. Fui além de mim para mudar os critérios de recebimento de projetos pela Funcet, priorizando a qualidade e o conteúdo da cultura regional. Às vezes, fui incompreendido, mas resisti. Precisava resistir para mudar. A intolerância e a crítica injusta nunca me abateram o entusiasmo. Nordestino, sou como aroeira, enverga mas não quebra. Recebo a tempestade nos peitos porque aprendi a colecionar relâmpago sem medo nem espanto. Desse cipoal fica uma lição imorredoura: na atividade da cultura se exercita mais a vaidade do que a humildade. Cada autor, cada artista é um príncipe à procura de uma coroa cravejada de estrelas.