Abrir portas

Entrevista com Paulo Rodrigues
Paulo Rodrigues, autor de “As vozes do sótão”
01/01/2010

Paulo Rodrigues é um autor sem pressa. Estreou na literatura somente aos 53 anos, em 2001, com o romance À margem da linha. Em 2004, publicou os contos de Redemoinho, escritos durante um intervalo de 25 anos. Agora, lança As vozes do sótão, cuja idéia surgiu de anotações feitas por seu padrasto há 52 anos. Mas se Rodrigues não tem pressa, a crítica não perde tempo em recebê-lo como um dos grandes autores surgidos nos últimos anos. Para Marcelo Coelho, “seu despojamento, sua falsa simplicidade seriam como que a tentativa, minada por dentro, de reatar tudo aquilo que, com o mundo moderno, se rompeu”. O escritor Rodrigo Lacerda defende que “À margem da linha já nasceu clássico”.

Nesta entrevista por e-mail ao Rascunho, Paulo Rodrigues comenta o seu “lento” ritmo de trabalho, a boa aceitação de sua obra pela crítica, o ambiente literário brasileiro e seu início tardio como leitor, entre outros assuntos.

As vozes do sótão nasceu a partir de anotações pessoais de seu padrasto. Como se deu a costura entre ficção e realidade no romance? Quais os riscos que o senhor correu ao resgatar histórias que sempre pertenceram ao seu núcleo familiar?
Em verdade, no que se refere às questões familiares, creio não ter corrido nenhum risco, já que todas as situações são imaginárias. O que acontece é que eu tinha escrito uma história em terceira pessoa, que, embora similar, tinha outro nome e outras intenções. Eu acreditava na idéia, mas a história não me convencia, faltava alguma coisa fundamental. Então, deixei na gaveta descansando. Foi quando eu li o minidiário do meu padrasto, uma caderneta com 15 ou 20 anotações ao longo de anos de intensa vida interior. Ele era um homem muito reservado, e essas anotações eram extremamente concisas: 2 de maio de 19…: “Guido quase morre afogado ao cair no rio…”; 4 de julho de 19…: “Fulana trai Guido” etc. Achei que tinha encontrado o espírito que faltava à minha história, e, a partir dessas anotações, criei uma outra história. Usei um diário em terceira pessoa, como ele fazia, e um narrador em primeira, para criar ao menos duas versões sobre o mesmo fato.

• Na página 23 de As vozes do sótão, lê-se: “O que vale está além da imagem, e esse valor escondido é uma pedra bruta que ninguém pode mudar”. Esta afirmação do narrador pode ser transposta para uma definição sobre a literatura, sobre o poder da palavra escrita?
Creio que o narrador acredita que a essência é imutável, enquanto que a imagem se compõe pelos olhos de quem vê. A palavra escrita fixa uma versão, e isso pode fazer com que ela seja entendida como verdade.

• Em À margem da linha sobressai a figura paterna; em As vozes do sótão, a presença da mãe é muito forte; e na maioria dos contos de Redemoinho, a família e seus desacertos estão presentes. Pode-se afirmar que a família é o centro da sua literatura, o grande tema que lhe ronda toda a obra?
Não creio que as minhas preocupações se limitem ao núcleo familiar, mas como procuro falar sobretudo daquilo que conheço, uso muito esse artifício, assim como uso a paisagem suburbana da minha infância como pano de fundo. A família contém o embrião de quase todas as coisas que formam (ou deformam) uma sociedade: norma e conceitos, o bem, o mal, o autoritarismo, a submissão, o medo etc. Assim, quando escrevo sobre a família, ouso acreditar que estou falando de um campo ilimitado onde cabe a intervenção de cada leitor de acordo com sua experiência.

• O senhor estreou na literatura em 2001, aos 53 anos, com o romance À margem da linha. A escritura dos oito contos de Redemoinho (publicado em 2004) teve intervalos de 25 anos. As anotações de onde partiu As vozes do sótão foram feitas por seu padrasto há 52 anos. É deliberada esta “lentidão”, em contraponto a certa ânsia que domina a nova geração de escritores brasileiros?
De fato, não tenho ansiedade em publicar. Escrever é uma necessidade, publicar pode ou não ser uma conseqüência. Como já respondi anteriormente, As vozes do sótão foi totalmente reescrito. O mesmo se deu com À margem da linha e Redemoinho. Tenho dois livros inéditos que estou permanentemente reescrevendo, pois, para mim, trabalhar o texto é tão gratificante quanto concebê-lo.

• Com À margem da linha o senhor recebeu o prêmio de autor revelação da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Além disso, a crítica recebeu o livro com muito entusiasmo. O escritor Rodrigo Lacerda afirmou: “À margem da linha já nasceu clássico”. Este início lhe foi benéfico ou criou certo “peso” sobre a sua produção seguinte? Que balanço o senhor faz da sua trajetória literária?
Quando publiquei meu primeiro livro, não tinha grande expectativa. O máximo que eu sonhava era ver meu livro numa estante de livraria e, quem sabe, uma nota positiva num jornal. Quando a coisa ganhou uma dimensão inesperada, a princípio me envaideci, em seguida me bloqueei, fiquei um bom tempo sem conseguir escrever uma só linha. Depois me desliguei desses fatores que fazem parte do processo editorial e voltei a escrever pelo simples prazer.

• O senhor teve acesso aos livros somente na adolescência. Como se deu esta aproximação e paixão “tardias” pela literatura?
A paixão acho que sempre tive. Não tinha era muito acesso a livros. Antes de aprender a ler, meu irmão se dispunha a ler para mim. Eram gibis de super-heróis, quadrinhos infantis. Depois de alfabetizado, continuei lendo os gibis e tudo que me caía nas mãos, até mesmo fotonovelas. Quando me deparei com os livros, embarquei movido pela curiosidade. Comecei pelos juvenis, cheios de aventura e fantasia: As aventuras de Tom Sawyer, O Sítio do Picapau Amarelo e tantos outros. Aí não parei mais e, aos poucos, fui definindo minhas preferências, meus ídolos.

• O senhor sempre esteve distante do ambiente literário tradicional: foram 20 anos trabalhando na Telesp e, agora, no Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações de São Paulo. Em 2001, quando do lançamento de À margem da linha, o senhor afirmou: “Adoro literatura, mas convivo em um ambiente de sindicato. Sindicalistas detestam ler, ainda mais ficção. É possível que achem até coisa de efeminado”. De que maneira viver neste mundo “à margem” ajuda ou atrapalha a sua produção como escritor?
À época dessa declaração, devo ter me expressado mal. O que eu quis dizer é que grande parte dos sindicalistas não gosta de ler ficção, prefere os temas econômicos, políticos, sociais, jurídicos, enfim tudo que se relaciona com o mundo do trabalho. Acho que trabalhar no meio sindical faz bem à minha produção literária. A literatura (ao menos a que me atrai) é feita de indivíduos comuns, e esse meu trabalho me permite conviver com gente de todo tipo, a maioria gente simples, que age sem afetação.

• Como se deu a passagem do leitor ao escritor? Quando e como o senhor decidiu se dedicar à literatura como autor?
Entrei no ginásio já adulto, aos 20 anos. Uma professora de português me incentivou, percebendo talvez que as minhas redações, por trás dos problemas gramaticais, podiam esconder uma imaginação promissora. Comecei a escrever pequenos contos sem compromisso e a submetê-los à paciência de alguns amigos. Até que uma revista da Telesp, Entrelinhas, passou a promover um concurso anual de literatura para os funcionários. Concorri por duas vezes e não fui sequer classificado. Então, percebi que escrever não se resumia a lançar algumas idéias sobre o papel. Só então comecei a me dedicar de fato.

• O senhor acompanha a produção literária brasileira contemporânea? Qual a sua opinião sobre esta produção, marcada por uma ampla diversidade de vozes e estilos?
Eu me considero um leitor aplicado, mas tenho consciência das minhas limitações. Como crítico, não passo do “gosto ou não gosto”. Há muita gente publicando, e eu procuro acompanhar na medida do possível. Acabo me interessando por alguns, e a esses eu acompanho. De outros eu não gosto, mas não julgo, pois o problema pode estar na minha falta de entendimento. Acho que o veredicto final pertence ao tempo. Ele define quem fica e quem passa.

• Que tipo de literatura não lhe atrai de maneira alguma?
Não tenho preconceito de espécie alguma. Creio que o texto bem escrito se sobrepõe ao gênero literário. Por isso, experimento de todos ao menos uma vez. Quando não gosto, não repito a dose.

• A sua aproximação tardia com a leitura é um exemplo de que é possível “formar” leitores em qualquer fase da vida. Que caminhos o senhor apontaria na difícil tarefa de seduzir mais pessoas em relação à leitura?
Conheço um trabalhador que se alfabetizou depois dos 40 anos e é um devorador de livros. Já se arrisca até a escrever uns versos simples. Mas acredito que o caminho mais eficaz é aquele indicado ainda na infância, de forma leve e gradativa. A sugestão sutil e oportuna é a que dá melhor resultado.

• Qual é o real poder transformador de um livro de ficção na sociedade e no indivíduo?
Dizem que alguns livros influenciaram toda uma geração. Acredito que foi antes a atitude de seus autores diante do mundo que operou tal transformação. Não sei. A maioria dos livros, a meu ver, não tem esse poder. O que fazem é contribuir (uns mais, outros menos) com o conjunto de fatores que transforma uma sociedade. Já sobre o indivíduo, creio que determinados livros podem contribuir com a abertura de portas que, embora em estado latente, já existem.

• Graças à internet e às facilidades tecnológicas há um verdadeiro exército de escritores a batalhar por um espaço entre os leitores. O senhor considera este “excesso” benéfico à literatura brasileira? Ou ainda não se pode mensurar o impacto de toda esta produção?
Há uma máxima que diz que da quantidade se extrai a qualidade. Não sei se ela é válida neste caso. Tenho medo de que a quantidade e a “pressa” acabem por soterrar alguns talentos. Quando a coisa vem em forma de avalanche, fica difícil estabelecer critérios de comparação. Por outro lado, há que se respeitar a igualdade estabelecida pela internet. Se por um lado o “excesso” pode dificultar os critérios de avaliação, a atual elitização da literatura pode impedir que esse talento se manifeste. Mas acho que ainda é muito cedo para ter uma opinião definitiva.

• Quais outras manifestações culturais — cinema, artes plásticas, teatro, etc. — têm relevância na sua formação como escritor? De que maneira a sua leitura dialoga com elas?
Quando criança sonhei ser pintor. Comecei desenhando os super-heróis dos gibis e parei logo que percebi não ser aquela a minha praia. Hoje, essa experiência me ajuda esboçar um personagem quando não encontro correspondente na vida real. Mas acho que o cinema tem muito a ver com minha pequena produção literária.

• Como é o seu dia-a-dia de trabalho na ficção? De que maneira nascem seus livros, seus contos? Há um método definido de produção?
Sou sobretudo um observador. Gosto de andar a pé ou nos coletivos. Se presencio uma situação que me intriga e me leva a refletir, eu a anoto. Às vezes esse fato me inquieta e acaba virando um texto que nunca sei onde vai dar. Quase sempre resulta num conto que eu arquivo e vou mexendo sempre que tenho tempo e vontade. Resumindo, não tenho nenhum método definido.

• Como é a sua rotina de leitura? De que maneira elege os livros a serem lidos? Quais autores lhe são imprescindíveis e nunca lhe abandonam?
Leio sempre que posso, em qualquer lugar, desde que haja condição para me abstrair daquilo que está à minha volta. Quanto aos autores, posso citar alguns nomes representativos de uma lista grande: Machado, Rosa, Graciliano, Raduan, Aníbal Machado, Cyro dos Anjos, Camus, Mann, Onetti, Juan Rulfo, etc.

LEIA RESENHA DE AS VOZES DO SÓTÃO.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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