As narrativas de Domenico Starnone parecem organizadas por uma simetria tão precisa quanto paranoica: é na própria forma de domesticar a desordem que a confusão transborda. Em seu mais recente romance, Segredos, o leitor se depara com três narradores, como em Laços, uma provocação irônica sobre a alteridade e a desconcertante variedade de interpretações que um mesmo fato pode comportar.
O cerne da narrativa é um pacto traçado entre o protagonista, Pietro, e Teresa, sua ex-aluna e ex-namorada, quando os dois se relacionavam: cada um contaria o pior de si para o outro. Depois que se separam, o pacto volta como uma danação para Pietro. Toda vez que algo de bom lhe acontece, ele projeta um reaparecimento de Teresa para revelar o que ele teria de mais podre. Na paranoia do protagonista, a revelação teria efeitos devastadores na vida que começa a construir depois do rompimento com Teresa.
Na entrevista concedida ao Rascunho, Starnone apresenta um laboratório da criação de seus protagonistas — um pouco canalhas e excessivamente vaidosos, mas também portadores de certo encanto —, e destaca sua predileção pelo desenvolvimento narrativo do que chama de “pequeno sucesso”, isto é, uma discreta legitimação profissional que convida à crença de ser dotado de excepcionalidade. No fundo, então, o que estaria em questão é a aspiração por ser admirado e visto como único.
Na tentativa de repetir o mesmo ato que gerou a legitimação, os protagonistas de Starnone se omitem de suas respectivas casas, o que abre margem para a gestação de rancores e sentimentos ambivalentes por parte dos filhos e das companheiras. O ambiente doméstico como lugar que também guarda mesquinharias não tem como ser representado como porto seguro: as narrativas do autor provocam ao expor uma concepção de seio familiar que não está resguardada do que o mundo de fora tem de hostil. Não há fuga bem-sucedida de nossos antepassados, muito menos de nós mesmos. Diante dos labirintos inescapáveis, o autor italiano lança luz sobre os tortuosos becos sem saídas que formam uma pessoa.
• Segredos se inicia com uma definição de amor que nada tem de idílica. Amor profundo e devastador é incompatível com matrimônio? Como você vê o amor?
O amor é a irrupção do imprevisto. Ele aparece quando menos esperamos e desordena todo o nosso universo, antes sob controle, como uma estrela desconhecida. Embora se diga há séculos que o fundamento do amor é a visão, na verdade ele nos captura por aquilo que nunca conseguimos realmente ver de uma pessoa. Daí a obsessão pela exploração do outro, de seu corpo, de cada gesto, da sua esfera mais íntima, de sua interioridade inacessível. Mas é uma exploração frustrante que no casamento, por resignação e cansaço, se reduz a um melancólico, e às vezes afetuoso, “te conheço como a palma da minha mão”.
• Em Segredos, o protagonista parece encontrar um gozo insatisfatório na constatação de que é uma pessoa condenável, que coexiste com o prazer de ver suas palavras serem bem recebidas por uma plateia. Como a escrita pode unir as tão distintas partes que formam uma pessoa?
Temos uma vida interior que é um campo de batalha. Sustentar, ao mesmo tempo, desejos divergentes, inclinações caprichosas, sonhos irrealizáveis, urgências de elogios exige esforço. Somos como um leque de linhas de tendências, frequentemente inconciliáveis, e nunca sabemos com certeza se a coerência que damos a nós mesmos — o “eu sou assim” — não vai se dissolver subitamente, nos lançando à desordem. A literatura — desde sempre, hoje mais do que nunca — tem o dever de investigar nossas ficções e nos manter alertas. Como? Para começar, elaborando formas em que categorias simplistas não funcionam mais, como os bons e os ruins, os simpáticos e os antipáticos, os românticos e os cínicos, e por aí vai.
“Escrever é um contínuo colocar-se à prova, embocando em estradas sempre mais árduas.”
• Laços e Segredos têm três narradores, três perspectivas e o leitor encontra um estranho divertimento ao constatar que a percepção de um mesmo fato é radicalmente diferente para os envolvidos. Como a literatura pode explorar a alteridade?
Escolho sempre, de propósito, a narração na primeira pessoa. Também tecnicamente, a narrativa do eu é sempre uma investigação sobre a nossa turbulenta clausura existencial e sobre as interrogações que derivam dela. Como realmente somos? Bons, maus, corajosos, vis, fiéis, infiéis, inteligentes, estúpidos? Sou a peça de qual quebra-cabeça? Amo, sou amado de volta, ajo em prol do melhor, sofro, provoco sofrimento? E, posto esse frágil eu, o outro como é? Melhor que eu? Pior que eu? Os neurônios-espelho não nos ajudam muito. Todo realismo não pode senão narrar os desvios e as inclinações do eu que se choca em outros eus. Tenho pouquíssima confiança na autenticidade da terceira pessoa. É sempre e somente um eu que pode fazer do outro um você, um ele, um ela, ou cultivar um nós.
• Parece possível traçar algumas semelhanças temáticas entre seus três últimos romances: encadeamento narrativo entre lembranças, reflexões existenciais e eventos prosaicos são alguns deles. Você diria que há um assunto principal que move sua escrita?
Sim. A angústia por estarmos inevitavelmente presos dentro de nossas cabeças, com nossas recordações, nossas fantasias, nossos pensamentos. E, consequentemente, a necessidade-temor de erguer pontes que nos conectem às cabeças dos outros.
• Seus romances têm constituições simétricas na enunciação, mas no enunciado se ocupam das confusões dos personagens. Como é a coexistência entre a ordem e a desordem na escrita?
Sim, você diz geometria e é verdade, mas é uma geometria de fachada. Traço com cuidado um perímetro, sugiro um itinerário. Mas faço isso para que o leitor veja bem as rachaduras ao virar as páginas. Nada escapa à ordem da forma, muito menos a representação da desordem.
• Na sua escrita, assuntos densos são entoados por certa ironia, o que desperta um riso nervoso no leitor. Como uma dose de humor pode ser recurso para falar de coisas desconfortáveis e dolorosas?
Em geral, atribuo ao eu que narra uma tonalidade irônica e amigável. Mas logo essa tonalidade começa a estridular por causa da substância do que é narrado. O estridor cresce e, todavia, o personagem continua com aquele tom. O objetivo é obter um “eu” que, embora esteja contando péssimas coisas sobre si, parece não perceber inteiramente a gravidade delas. Aliás, quando está prestes a arrematar, se interrompe, por oportunismo ou por assombro. Nas últimas três histórias que escrevi, como o relato, bem ou mal, é concluído, é necessário olhá-lo de outro ângulo, como os filhos em Laços, o Apêndice em Assombrações e Emma e Teresa em Segredos.
• Para os protagonistas de Laços, Assombrações e Segredos, parece haver um certo descompasso entre o ambiente doméstico e o mundo de fora. Como você avalia a tensão entre esses dois mundos, em especial neste momento em que vivemos?
Nunca percebi o espaço doméstico como uma fortaleza contra as insídias do mundo. Pertenço a uma geração que viveu os limites da crise da família e experimentou soluções alternativas. Inutilmente. Embora enfraquecida, a família resistiu a ponto de — contra todas as evidências — persistir a ideia de que o núcleo familiar é o campo do amor, da fidelidade, da solidariedade, uma articulada gama de valores diferentes da violência do mundo. Infelizmente, a família coincide com o mundo. Nos meus livros, a instituição familiar é um caldo turvo feito de bons e maus sentimentos. Pais, mães, filhos e avós vivem em meio a conflitos, confusões de amor e ódio, mentiras, exatamente como acontece na vida pública, na escola, no trabalho, na política. Mas, quando o mundo se mostra particularmente insidioso, os laços parentais se fortalecem. O marido adúltero tenta reparar o mal que fez e recebe um falso perdão; a mulher desleal e mentirosa se dedica resignada à casa, o filho pródigo volta em busca de conforto e dinheiro. Em suma, a família resiste, mas apenas porque dentro de casa a miséria material e espiritual do mundo parece um pouco mais suportável.
“As redes sociais são o lugar onde o exército dos excepcionais manifesta maciçamente o próprio descontentamento.”
• Outro tema reincidente são as marcas deixadas pelos pais nos filhos. Quais são os legados inescapáveis deixados pelo lugar de origem?
Não há nada em nós que não nos reconduza às nossas origens: a cadência da língua que falamos, um modo de gesticular, a preferência por certos cenários em detrimento de outros, até mesmo o senso de humor. Nossa individualidade, qualquer que ela seja, é um precipitado. Somos o ponto momentâneo de chegada de uma longa e articulada cadeia preliminar, que nos constitui por mais que a neguemos, por mais que nos rebelemos. A nossa história pessoal, no fim das contas, é a história de como usamos nosso patrimônio genético e histórico-ambiental, escolhendo potenciar isso, silenciar aquilo.
• Até que ponto os pais são responsáveis pelos filhos?
Não colocaria limites. A responsabilidade por dar a vida não teria como não ser absoluta. Não poderia ser diferente, já que arremessamos nossas crias — frágeis, mortais e, portanto, destinadas à morte — em um mundo injusto e violento. Sim, os pais são responsáveis até o fim, por tudo. Não existe um grito mais dilacerante que o de Cristo quando diz: “Pai, por que me abandonaste?”.
• A aspiração pela grandeza é uma forma de não se ver como medíocre e impotente?
Trata-se de uma antiga cegueira em relação a si mesmo. Hoje, no entanto, é extraordinariamente difusa graças à escolarização e à espetacularização das nossas existências. Em Assombrações e em outros textos, recorro a um oximoro para falar sobre o assunto: “excepcionalidade de massa”. Qualquer um de nós se sente fundamentalmente único, e tudo bem. Os problemas começam quando, graças a um pequeno talento, aquela unicidade nos induz a crer que temos dotes excepcionais. Um pouco em cada um dos meus livros, tentei contar a dolorosa oscilação entre a ansiedade por grandeza e a suspeita de ser minúsculo, confuso entre mil outros com a mesma ansiedade. Frequentemente é a falta de sucesso que nos exaspera. Mas narrativamente me interesso sobretudo pelo pequeno sucesso, aquele que acende esperanças e cobre mal a mediocridade; é o que acontece, por exemplo, com o avô de Assombrações e Pietro, em Segredos. Hoje, as redes sociais são o lugar onde o exército dos excepcionais manifesta maciçamente o próprio descontentamento.
• Você parece se ocupar dos inocentes e compreensíveis enganos que amparam a existência. Qual o valor da vaidade?
A vaidade não é um valor. Pode ser, no máximo, um sinal de sofrimento, como todas as formas de autoengano.
• A angustiada busca por consenso de seus protagonistas é uma questão que atravessa também a sua vida de escritor?
Não é uma pergunta que deveria ser feita a mim, mas sim a quem me conhece. Eu posso lhe dizer apenas que escrever é um contínuo colocar-se à prova, embocando em estradas sempre mais árduas, ao meu ver. É muito bom se o consenso chega, mas é preciso evitar que ele nos bloqueie. São tristes os malabaristas que repetem ao infinito o mesmo pequeno truque pelo qual foram uma vez aplaudidos.
“A literatura tem o dever de investigar nossas ficções e nos manter alertas.”
• No Brasil, há uma eterna discussão sobre os baixíssimos índices de leitura. Como é o panorama na Itália? A literatura contemporânea italiana ressoa de maneira consistente na sociedade?
Na Itália também se lê pouco, sobretudo se pensarmos quanta confiança depositamos na escolarização de massa que sucedeu a Segunda Guerra Mundial. O nexo escolarização-leitura não funcionou. As estatísticas dizem que não só os estudantes, mas também os professores, e os formados em geral, não leem ou leem pouco. A instrução, mesmo a médio/alta, não necessariamente leva aos livros. A leitura exige tempo livre e, sobretudo, um elevado grau de colaboração da parte de quem lê. Com a sua imaginação e a sua inteligência, o leitor deve transformar o fio da escrita em coisas, pessoas, raciocínios e devaneios. O cinema e a televisão, com o fluxo hipnótico de imagens e vozes, exigem menos empenho. Em certo sentido, ler é cansativo.
• O que a literatura italiana tem produzido de mais significativo atualmente?
Temos uma boa pesquisa filosófica, temos poesias consistentes, temos uma narrativa muito variada e com um crescente protagonismo feminino. Em suma, me parece um período próspero. Por isso evito citar nomes, seriam muitos.
• Aos 77 anos, que balanço você faz da sua geração? De que maneira ela contribuiu para um mundo um pouco mais habitável?
É doloroso admitir, mas não, não conseguimos tornar o mundo mais habitável. Nós tentamos, isso sim. No entanto, as desigualdades cresceram, as comodidades excessivas de uma diminuta minoria são cada vez mais um insulto ao senso de justiça, as condições do planeta pioraram. Claro, não poucas coisas relevantes se verificaram na segunda metade do século 20, seja no plano político, seja no técnico-científico. Claro, vigiamos mais ativamente os poderes e seus abusos. Mas os últimos 20 anos foram demasiado alarmantes. A globalização faz vazar água por todos os lados. Os nacionalismos levantaram a cabeça com a extrema direita. A migração em massa motivada pelas guerras, pela miséria, pelas mudanças climáticas assusta, e a tendência dos fortes mostrarem os músculos aos mais fracos é cada vez mais frequente. Não sabemos quais resultados culturais e políticos virão das tecnologias que tornaram o mundo minúsculo e nossos corpos e nossas mentes cada vez mais rastreáveis. Deixamos, em suma, um mundo no fio da navalha, ameaçado por correntes e vórtices muito violentos.
• Vivemos um momento dos mais difíceis da nossa história atual com a pandemia da covid-19. O que mais o assusta no mundo de hoje?
A estupidez. E a ferocidade. O poder continua nas mãos de imbecis particularmente ferozes, que desprezam nosso único bem: a capacidade de ver além de nossos próprios umbigos e tomar providências.
• Que conselho você daria a um jovem leitor?
Ler não tanto livros que o aquietem, mas livros que o agitem, irritem e incitem a olhar para si mesmo e ao redor com olhos diferentes.
*Colaborou Rogério Pereira