A viagem épica de Neide Archanjo

Entrevista com Neide Archanjo
Neide Archanjo: “Poeta é um caçador de momentos”
01/10/2001

Os poemas de As Marinhas (Íbis Libris Editores, 208 págs.), de Neide Archanjo, estão entre os melhores já escritor até hoje em língua portuguesa. Há neles esse tom épico da poesia necessária. Há neles, também, a lição poética da palavra. É comovente ouvir essa poeta dizer que “A poesia dorme nos pomares de água/à espera de instrumentos/navios plumas cavalos/perdida entre sentimentos azuis/e coisas amarelas”. Não são apenas versos de uma mulher poeta que conhece seu ofício e nele permanece ao longo dos anos, sempre a colher os frutos de sua terra, os sonhos de seu oceano, suas descobertas nunca vistas, sua caravela branca abrindo as águas de seu universo.

Este livro vai além, porque implica na palavra poética que dignifica a poesia. Este é um livro que deverá ficar sempre nos lugares especiais, onde vivem os poemas definitivos, desses que iluminam a poesia e a poesia agradece. A poesia sempre haverá de agradecer tão expressiva palavra dessa navegadora do tempo, das partidas, de todas as chegadas em terras distantes que passam a nos pertencer reminescentes de nosso passado de além mar, onde repousa o sonho e a possibilidade de ainda sonhar. E descobrir.

Não há outra linguagem para explicar estes poemas de Neide Archanjo, uma mulher poeta do Brasil que tem uma bagagem literária das mais expressivas. Neide pertence à Geração 60 de poetas de São Paulo, com uma trajetória de muitas lutas em favor da poesia e da palavra poética. As Marinhas pode ser considerado um marco não apenas na obra de Neide Archanjo, mas na própria produção da Geração 60, por seu significado e por sua elaboração.

A maioria dos poemas foi escrita no início dos anos 80, em Portugal, onde Neide Archanjo morou quase um ano, na qualidade de poeta-residente e bolsista da Fundação Gulbenkian. Foi apresentada e recomendada por Carlos Drummond de Andrade e pelo embaixador de Lisboa, na época, Dário de Castro Alves. A primeira edição desta narrativa é de 1984, da editora Salamandra, do Rio de Janeiro. Esta nova edição não sofreu qualquer alteração.

O crítico Wilson Martins classifica como “admiráveis” os poemas de As Marinhas. Ele diz: “São uma meditação sobre o destino, o da autora enquanto pessoa e enquanto brasileira, o da pátria enquanto mito emocional e realidade histórica; e é também uma meditação sobre a poesia enquanto forma de ser, enquanto veículo de expressão para o que por outros meios não poderia ser expresso. A autora domina o instrumento em todas as suas virtualidades técnicas e dá a cada ‘quadro’ a tonalidade própria, a estrutura versificatória que exige. As harmônicas que lhe são próprias”.

Não é à toa que Wilson Martins escreveu: “Podemos identificar em Neide Archanjo, sem hesitação, uma das grandes vozes poéticas do nosso tempo”.

Tem mais que razão esse mestre da crítica literária e especialmente da poesia deste país. Bastam os poemas de As Marinhas para comprovar essa palavra poética acima das futricas reinantes neste imenso vale de lágrimas em que se transformou a poesia brasileira invertida em seus valores pela chamada mídia cultural inconseqüente. Poetas como Neide têm mesmo que se manter distantes desse caos absoluto. Porque quem escreve um livro assim — e os que vieram depois — tem por direito um lugar especial. E ela tem. Por sua conquista.

Assessora da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do Ministério da Cultura, e membro do Conselho Editorial da revista Poesia Sempre, Neide Archanjo é advogada e psicóloga. Nasceu em São Paulo e hoje está radicada na cidade do Rio de Janeiro. Seu primeiro livro Ofícios da Memória foi publicado em 1964. Desde então, criou e participou de movimentos como Poesia na Praça, varais de poesia, espetáculos em teatro, cafés, faculdades, bibliotecas, festivais nacionais e internacionais de poesia e arte. Criou e implantou a Oficina Literária da Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo. Seus poemas figuram em antologias publicadas no Brasil e em vários países. É autora, entre outros, de Quixote Tango e Foxtrote (1975), Escavações (1980), Tudo é sempre agora (1994), Pequeno Oratório para um Anjo (1997) e Epifanias (1999), livros que revelam não apenas uma a vocação poética, mas e especialmente, um trabalho árduo que nunca fez concessão às facilidades quase sempre reinantes num país de muitos poetas e pouca poesia. Felizmente ainda existem poetas como Neide Archanjo. Poetas que produzem poemas com palavras e que se recusam a extinguir a emoção do poema. A par disso, é preciso destacar a elaboração do poema a que ela dedica zelo especial.

Ao abrir esta nova edição de As Marinhas, Neide Archanjo faz um convite aos leitores — “aqueles de olhos de jade — para serem os mareantes desta viagem, destino, creio, de todos nós”. Será uma viagem épica pela poesia. Num dos poemas ela diz: “Do outro lado do mar/afastado de mim/há um continente/a resgatar/Por isso penso viagens/consulto cartas/que são precisas/ e de marear/Por isso ando/assim pela metade/entre o mar e o cais”. Essa poesia é feita também de coisas mágicas, dessas que estão além do olhar, mas dentro do que se pode sentir na pele. Na alma.

• O que representa As Marinhas em sua obra?
Esse livro representa a realização de um projeto poético que durante cinco anos ocupou todo meu tempo disponível, quer em sua elaboração, nas pesquisas históricas, geográficas, líricas e semânticas, bem como no ato de escrever propriamente dito. Foi um desafio, porque se trata de um poema épico, sujeito a regras, mas ao mesmo tempo inovador, porque propõe uma abordagem também psicológica e social, tendo o mar como tema e a humanidade como sujeito eterno desse tema.

• Como foi a elaboração do livro?
Desafiando o editor Pedro Paulo Sena Madureira, que achava o projeto por demais ambicioso, iniciei o poema pelos cantos: Preamar, Litorais e Linha de Flutuação que representavam o consciente, a terra firme, as praias e os embarques e, acompanhando um pequeno “mapa de intenções e roteiro”, elaborado por José Luiz Archanjo, meu irmão, parti para a navegação de mar aberto nos cantos: Oceânico, Cais da Agonia, País de Circe, Ilhas Idílicas e Mar aberto. Claro que durante o trabalho vivências, perdas, amores, viagens, alucinações, solidões e medos perpassaram o texto e à poeta. Mas fôlego, disciplina e confiança nunca me faltaram. Vale ressaltar que o canto Oceânico, dedicado aos portugueses e suas conquistas marítimas, foi escrito em Portugal, onde na qualidade de poeta-residente, morei durante um ano como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

• Você fez alterações nessa nova edição?
A primeira edição de As Marinhas é de 1984. Há muito esgotada, ela vinha sendo objeto de estudos e manifestações de interesse de leitores brasileiros e portugueses. Alguns só puderam lê-la, mediante xerocópias. O desejo de uma segunda edição esteve sempre presente. Com o advento do novo milênio e a celebração dos 500 anos da descoberta do Brasil, a idéia de uma reedição se renovou, já que esse poema narrativo tem como paradigma e espelho a Odisséia, de Homero e a história das conquistas marítimas lusitanas. O texto da primeira edição não sofreu qualquer mudança. O material acrescentado procurou enriquecê-lo, com a fortuna crítica, os depoimentos e as fotos dos lançamentos na época. Conseguiu-se o patrocínio e a Ibis Libris Editores do Rio de Janeiro, da poeta Thereza Christina Rocque da Motta, concebeu e realizou livro com empenho e galhardia.

• O que é mais importante: a estrutura do poema ou a mensagem da poesia?
Diria que as duas coisas interagem. Um bom poema é o resultado de uma boa interação da estrutura e da mensagem. De nada vale uma estrutura perfeita a sustentar palavras ocas, mensagens vãs. E vice-versa. Sem um obstinato rigore, nenhuma poesia resiste ao tempo. É preciso bater na forja da língua, até que a palavra alcance seu fulgor, sua epifania.

• A poesia é necessária?
Claro que sim. Quem senão ela resgata os materiais inconscientes, a história, a trajetória do ser humano em todas as eras? Que seria da Itália sem Dante, da Inglaterra sem Shakespeare, da Alemanha sem Göethe, de Portugal sem Camões, de nós sem Jorge de Lima, Drummond, Cabral? Ela é testemunho de um povo, de uma raça.

• O que é ser poeta mulher no Brasil?
Há um pequeno número de mulheres poetas no Brasil, porque sempre existiu maior visibilidade para o trabalho intelectual e artístico masculino, pela própria condição da mulher no passado. Grandes poetas mulheres na antiguidade foram exceções absolutas. E isso também ocorreu na literatura brasileira, caso de Cecília Meireles. A situação começou a ser revertida a partir da década de 60 e da revolução feminista. Hoje já se pode falar na presença indiscriminada de mulheres fazendo boa poesia no Brasil.

• Existe poesia masculina e poesia feminina?
Não gosto de falar em “olhar feminino”. O que existe é olhar do ser humano. É evidente que cada pessoa — homem ou mulher — vê as coisas de maneira desigual. As diferenças psicológicas e sociais existem, mas tanto homens como mulheres, têm em si os dois princípios, o ying e o yang, provando que não existe um feminino exclusivo e nem um masculino exclusivo.

• O que faz um poeta escrever um poema?
Escrevemos para sermos amados. Isso é básico. Depois vem a necessidade de expressão, a vontade de registrar o seu tempo: fatos, ocorrências, vivências, amores, segredos. Muito depois, aparece o compromisso de devolver a palavra ao sítio inicial, sacral, então há que resgatá-la do desgaste cotidiano, recriá-la e colocá-la em movimento para que ela reencontre seu brilho, sua música. Borges dizia que houve um tempo em que os poetas traziam dentro de si todas as histórias do mundo e do homem. Aquele tempo de Homero e de Virgílio. Concordo. Cabe tudo na Ilíada e na Odisséia.

• Você acredita em inspiração?
Eu não seria tão radical quanto João Cabral, ao ponto de dizer que desprezo a inspiração. Sou de outra família poética, mais espiritual. A minha inspiração sempre foi a palavra, sempre vivi cercada de livros. No meu caso, a inspiração representa 10% da minha poesia. Prefiro falar em epifanias. Poeta é um caçador e momentos. Ele os capta os guarda na memória. Na hora de escrever, ele vai recuperar a memória, relembrar o momento — é isso que eu chamo de inspiração. É todo um processo. Se não houver uma epifania, um insight, prefiro não fazer o poema.

• Quem é Neide Archanjo?
Sou alguém que ama plantas, pessoas, animais e para quem tudo na natureza causa uma profunda comoção. Sobretudo, a trajetória humana através dos séculos. Tenho três gatas: Chloé, Yasmin e Beja que são poesia pura. Faço longas caminhadas ginástica e adoro viajar. Procuro estar atenta ao mundo o meu redor: cinema, teatro, etc. É óbvio que leio muito, da Bíblia ao Harry Potter. Tenho três cidades no meu coração, fora São Paulo, onde nasci: Rio de Janeiro, onde vivo, Salvador que visito para reencontrar raízes de meu pai e Paris que ça va sans dire! Como perdi toda a família — ah! As perdas! — dependo do amor e da delicadeza de alguns seres que me cercam. Eles nunca têm me faltado. Com Deus mantenho, desde sempre, uma relação de completude, porque desejo permanecer fiel ao projeto que, acredito, Ele tem para mim. Sou uma mulher de fé e procuro praticar o que prego e acredito.

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho