A tentativa da eternidade

Entrevista com Antonio Fernando Borges
Antonio Fernando Borges: Pena que as pessoas hoje em dia prefiram sonhar em ser “modernas”, e não mais eternas…
01/03/2006

Antonio Fernando Borges é um leitor voraz e apaixonado. A entrega prazerosa à leitura foi moldando o escritor que em seus três livros (Que fim levou Brodie?, Braz, Quincas & Cia. e Memorial de Buenos Aires) deixa pegadas, pistas de quais mestres — além de Machado de Assis e Jorge Luis Borges, é claro — habitam espaço privilegiado em sua biblioteca. Nesta entrevista, o autor, nascido no Rio de Janeiro em 1954, fala sobre sua obra, influências, projetos e, principalmente, da importância e do amor pela literatura.

• Como surgiu e por que a obsessão por Jorge Luis Borges e Machado de Assis?
Certamente, não se trata de nenhuma obsessão, no sentido que o dicionário atribui à palavra, de “motivação irresistível para realizar um ato irracional” ou “compulsão”. Borges e Machado representam, para mim, um modo de expressar minha paixão pela leitura, na medida em que os dois pertenciam à categoria dos grandes leitores. Antes de me arriscar a ser escritor, fui um leitor assíduo e voraz — e, quando fui me lançar à aventura da escrita, vi que estava impregnado de leituras, com alguns “cacoetes de estilo” de Machado e Borges. Nenhuma surpresa: são autores de obras marcantes, que ninguém consegue ler impunemente. Meu desafio então já não era o medo da folha (ou tela) em branco, mas a responsabilidade perante essa tradição: afinal, escrever o quê, num mundo já abarrotado de ótimos livros? Foi assim nos primeiros projetos, abandonados incompletos ou para sempre inéditos. Foi assim, sucessivamente, com Que fim levou Brodie? (1996), Braz, Quincas & Cia. (2002) e agora este Memorial de Buenos Aires. Dialogar com Machado e Borges — em vez de imitá-los, conscientemente ou não — foi a forma que encontrei de pagar o tributo devido, virar a página e abrir meus próprios caminhos — que é o que já estou começando a fazer, em meus novos projetos…

• Com tantas referências a Borges e Machado, o senhor não teme tornar-se um escritor para escritores? E, se todo livro é uma carta remetida a um amigo determinado, como dizia Stevenson, a quem o senhor envia a sua obra: quem é o seu leitor ideal?
Claro que já pensei nisso: reconheço que, com meu naipe de assuntos e meu punhado de metáforas, fica difícil arrebanhar multidões. Não que escrever para que outros escritores leiam seja um problema em si — mas acredito que é possível falar para um número maior de pessoas interessadas em boa literatura (que é, no fundo, minha ambição). Há maneiras de se atingir isso. Infelizmente, não sei se ainda haverá tantas pessoas interessadas… Naturalmente, todo escritor aspira a um leitor ideal — e acaba tendo que se virar com um punhado de esforçados leitores concretos. No meu caso, já que estamos mesmo falando de ideal, deixe-me arriscar: escrevo para aqueles espíritos interessados em fazer da leitura de romances um exercício prazeroso de conhecimento e reflexão sobre o mundo — ou seja, dispostos a se lambuzar nessa mistura de sabor e saber, que constitui a base da literatura. Este seria meu incerto “leitor ideal” — mas haverá disso no mundo? Mas é bom ressaltar: não tenho rigorosamente nada contra um escritor vender muito. Uma vez um rapaz da Record (que publicou meu livro de estréia “a sério”) disse — com intenção de elogios — que eu naturalmente não gostaria de vender tanto quanto o Paulo Coelho. Eu o corrigi, dizendo que, de fato, não gostaria de escrever como ele (um escritor banal), mas nada tinha contra vender como ele.

• Gabriel García Márquez diz que o escritor precisa “hipnotizar o leitor”. Qual é a melhor maneira para seguir este conselho?
Não acredito que existam receitas para tal processo de sedução — e a própria literatura dá largas provas disso, com a grande quantidade de livros tão diversos entre si, mas igualmente irresistíveis ao leitor. Dostoiévski e Ítalo Calvino, Nabokov e Thomas Mann, só para dar alguns exemplos. Em alguns casos (como o do próprio García Márquez), o processo parece um pouco mais explícito, e o espetáculo do hipnotismo ocupa o centro da cena. Mas, de uma forma geral, seduzir e hipnotizar são aspectos inerentes (quer dizer, “obrigatórios”) é da própria natureza da arte literária.

• Além das referências a Borges e Machado, outros autores visitam a sua trilogia, como Coleridge, Shakespeare, Kafka, Heráclito, Bioy Casares… Quais escritores ocupam lugar de destaque em sua biblioteca afetiva? E como se construiu o escritor Antonio Fernando Borges?
Como eu tinha sugerido na primeira resposta, lá em cima, Borges e Machado constituem a ponta de um iceberg de referências literárias bem “sortidas” que incluem tanto Cervantes e Shakespeare quanto os contemporâneos J.M. Coetzee e V.S. Naipaul e Osman Lins, por exemplo — e os já citados Calvino, Nabokov, Dostoiévski, Thomas Mann… A lista, realmente, é grande. Como “escritores que falam sobre outros escritores”, Borges e Machado entram aqui como uma espécie de abre-alas. O escritor Antonio Fernando nasceu (e continua se nutrindo) dessas leituras. Adoro — literalmente — o convívio com os livros: freqüentar livrarias, poder passar horas lendo ou simplesmente folheando livros. É um verdadeiro fetiche. Talvez por isso tenha me identificando tanto com Borges e Machado — que foram, acima de tudo, dois grandes leitores: seus livros são feitos mais de livros do que de qualquer outra coisa. Ler é, rigorosamente, a coisa que me proporciona o maior prazer na vida. Na lista de preferências, a leitura vem em primeiro lugar. Mas é claro que um escritor também é fruto de dores e amores, dos saltos no escuro e dos tropeços dessa trajetória que em nada lembra a curva graciosa de uma flecha… Tudo isso somado, poderia também dizer simplesmente que me dedico a escrever e, sobretudo, a ler por uma razão idiossincrática e, de certa forma, egoísta: porque me dá um enorme prazer. E, nesse sentido, isso é mais decisivo para mim do que qualquer função ou missão social que o escritor possa ter em relação ao mundo e aos nossos contemporâneos.

• Por que a passagem do tempo e o sonho ocupam um espaço tão importante em sua obra, com inúmeras referências?
O caráter inexorável do Tempo, o fato de que há uma realidade objetiva e que independe de nossas ações e, sobretudo, o delírio que acomete todo homem que procura fugir desses dados imediatos — estes são, sem dúvida, temas recorrentes em meus três primeiros livros, a que dei o nome informal de Trilogia dos Bruxos. E o sonho opera como um contraponto a essa realidade irrevogável — além de constituir também um excelente recurso literário, que ajuda a render boas páginas. Certamente, essas “preferências” estão enraizadas em minhas angústias e preocupações metafísicas particulares — mas também está diretamente ligada à minha proposta de atingir o cerne da grande literatura e desvendar seu mistério. E, não tenham dúvida, o tempo e o sonho fazem parte desse mistério.

• Na abertura do conto A hora furtada (de Que fim levou Brodie?), lê-se: “Talvez homem algum jamais consiga ser eterno. Mas aqueles que gostam de semear fantasias podem ao menos tentar passar adiante esta história”. A eternidade é a ambição da literatura?
A eternidade é o horizonte impossível do homem — e, por extensão, da literatura. Em nossas limitações espaciais e temporais, podemos apenas (e no máximo) flertar com categorias como eternidade e infinito. São idéias sedutoras e — obviamente — inatingíveis para a nossa condição. Mas tudo isso constitui, sem dúvida, um paradigma riquíssimo para a literatura. Por isso vivenciamos esse encantamento nos textos de um Sófocles, Homero, Shakespeare e tantos outros: naturalmente não chegarão a ser eternos, mas sobreviveram — e muito — à finitude humana de seus autores. Pena que as pessoas hoje em dia prefiram sonhar em ser “modernas”, e não mais eternas…

• No conto Vrog, Sptiz, Sphinx (também de Que fim levou Brodie?), lê-se que “a realidade é apenas mais uma imperfeita convenção literária…”. Já no conto que dá nome ao livro, o narrador diz: “Difícil acreditar que alguém tivesse se incomodado com um punhado de contos extravagantes, escritos por um desconhecido que não se submete aos caprichos da vocação nacional para o realismo”. Em Braz, Quincas & Cia.: “Procurei fazer frente aos caprichos da vocação nacional para o naturalismo”. O senhor despreza o realismo e o naturalismo na literatura? Qual a sua opinião sobre a obra da nova geração de escritores brasileiros, como Paulo Lins, Ferrez, entre tantos outros?
O realismo certamente já rendeu grandes obras na mão de grandes mestres — mais uma vez, Dostoiévski, assim como Balzac (desigual) e Proust (quase sempre ótimo). O principal problema do realismo (e de seu irmão mais radical, o naturalismo) é que se trata de convenções literárias que não ousam dizer seu nome e costumam se transfigurar num punhado inibido de truques. A literatura é um monumento feito com palavras e idéias e — como tal — não pode se confundir com a realidade. Mas o cânone realista facilita e até promove essa confusão. Quanto à produção da nova geração de autores brasileiros, lamento a tendência panfletária generalizada — que salta aos olhos a uma simples folheada desses livros e é explicitada nas reportagens e entrevistas. Certamente, é impossível acompanhar tudo isso mais de perto: afinal, assim como o velho Drummond (e sem querer parecer esnobe), também estou atrasadíssimo na leitura dos clássicos.

• A literatura é uma fuga ou uma saída para “os males concretos”?
Tanto para quem escreve quanto para quem lê, acredito que a literatura constitui um caminho de transcendência e superação para a fragilidade da condição humana — esse punhado sortido de “males concretos”. Não é à toa que, desde pelo menos a Idade Média, a literatura vem sendo considerada uma das formas superiores de existência, ao lado da religião e da filosofia. Como a palavra fuga tem sempre uma incômoda conotação negativa (na medida em que é associada a covardia e omissão), opto por concordar que ela seja uma saída. Mesmo que não seja pela “porta da frente”.

• O narrador de Braz, Quincas & Cia. diz que “a pressa é, sem dúvida, uma das formas da desilusão”. Desde 1996, o senhor lançou “apenas” três livros. A pressa, que tanto assola alguns autores, parece não seduzi-lo. Como se compõe o seu projeto literário?
Escrevo devagar, reescrevo muito, jogo fora, volto à estaca zero — fiel ao meu “projeto literário” de me empenhar em dar uma contribuição efetiva à literatura, por mais que isso possa parecer presunçoso. Por isso pareço escrever tão pouco: no esforço de escrever bem, não posso ter pressa, porque não sei quando as peças do quebra-cabeça vão se encaixar e me fazer dizer: “Pronto! É isso!” É disso que se compõe meu projeto literário: de conseguir dominar esse “truque” de criar um romance à altura dos tantos que eu já li. (Sou um tanto anacrônico, admito…) Por conta disso, não cheguei a estabelecer um método ou rotina literária. Toda rotina é, por definição, muito chata. Veja como o Dicionário Houaiss a define: “repetição monótona das mesmas coisas”. Em geral, posso dizer que só começo a colocar no papel (e é, literalmente, por onde eu começo: o computador vem depois), “no limite” — quando sinto que não posso mais adiar: e então começa a batalha, que eu nunca sei quanto tempo vai durar.

• Num mundo tomado pela rapidez da internet e pelo crescente desinteresse pela leitura, quais seriam os desafios da literatura e dos escritores? O narrador de Braz, Quincas & Cia. também não vê um futuro muito animador para o livro: “Digamos: alguém que, daqui a uns cem anos, descubra este livro entre os escombros de algum alfarrabista falido, em desesperada liquidação. A essa altura, os livros talvez já tenham se tornado objetos pouco lícitos, quase clandestinos, e o hábito de se dedicar a eles corresponda ao que hoje chamamos de vício condenável ou crime”. O futuro do livro é assim tão trágico?
Exageros literários à parte (afinal, é o narrador, não o autor, quem afirma essas coisas), acredito que o futuro do livro não esteja ameaçado como objeto, quer dizer, como produto e mercadoria, mas como projeto de leitura. Se o capitalismo sobreviver à escalada do terrorismo e da barbárie atual, acho que o livro como negócio terá vida longa: afinal, trata-se de um formato aprovado e assimilado — uma tecnologia milenar sofisticadíssima que nenhuma internet vai conseguir desbancar. A questão é: qual será o conteúdo desses novos livros? Quantas pessoas continuarão interessadas em conhecer, ampliar e legar à próxima geração o legado cultural e espiritual que tem constituído o melhor da aventura humana, nos últimos três mil anos? Sem querer parecer apocalíptico, acho que garantir a sobrevivência de nossa civilização (hoje atacada por todos os lados) é a verdadeira tragédia contemporânea.

• O senhor concorda com a idéia de Santo Agostinho (apresentada em Braz, Quincas & Cia.) de que a leitura é a interrupção temporária e corajosa de toda a ligação com o mundo?
Concordo plenamente — e a considero cada vez mais corajosa: num mundo mais e mais dominado por valores e solicitações coletivistas, ler (sobretudo bons livros, é claro) vai se tornando uma espécie de retiro espiritual, do qual se pode voltar mais fortalecido para enfrentar — que jeito? — a fúria do mundo.

• No dia 6 de fevereiro do diário de Memorial de Buenos Aires, o narrador diz que “afinal, foi recolhido e solitário que Machado ergueu esse monumento suntuoso ao Verbo que é sua obra — e hoje, diante dela, muita gente se curva. Eu mesmo já me curvei, e ainda me curvaria, tantas vezes”. De que maneira a leitura da obra de Machado de Assis ajuda ou atrapalha os que se aventuram pela criação literária?
Uma obra como a de Machado de Assis deixa marcas profundas em quem a lê com “olhos de ver” — ou seja, disposto a mergulhar em seu mistério e em sua grandeza. Escrever o quê, depois disso? Eis o grande desafio para todo aspirante a escritor, ou pelo menos para os realmente dispostos a produzir boa literatura, e não simplesmente a publicar e reivindicar seu quinhão de celebridade. E o pior é que, realmente, não me parece haver outra saída: evitar a leitura de Machado pode ser ainda pior, pois o aprendiz irá se privar de uma experiência única e enriquecedora, correndo o risco de se tornar um escritor menor, por não ter conseguido vislumbrar a grandeza. (Desculpem-me se pareço um pouco fora de moda, mas ainda acredito, com as melhores intenções, na pureza e na sinceridade das vocações literárias.)

• Em artigo publicado recentemente na revista Entre Livros, o senhor critica o excesso de teorias políticas “sempre dispostas a negar voz, direitos e sobretudo liberdade ao indivíduo”, que contribuiriam para o “aumento do autoritarismo e da barbárie”. De que maneira este excesso de política também estaria afetando a literatura, principalmente com o fortalecimento de uma ficção panfletária em busca do politicamente correto?
A politização generalizada da vida constitui a grande ameaça atual, não apenas para a literatura, mas para a própria idéia de civilização. Por conta disso, o precioso conjunto de valores morais e culturais que sempre sustentaram a civilização está sendo expulso de cena pelo que eu chamo naquele artigo de “o bárbaro espetáculo da disputa voraz por poderes e idéias — ou seja, um tempo de pobreza do espírito, em proporções até então inéditas”. A literatura até que resistiu por algum tempo, mas infelizmente anda entregando os pontos — e não é por acaso que estamos vivendo um dos momentos mais pobres da literatura brasileira. E, como acho que se trata de uma tendência generalizada para a mediocridade e a vulgarização (até funkeiros e rappers são hoje escritores), faço questão de não citar nomes, para não trazer a discussão para o nível rasteiro das querelas e gostos pessoais.

• É possível ensinar alguém a escrever, a dominar a arte da ficção, como se propõem as oficinas de criação espalhadas pelo país, entre as quais destacam-se as dos escritores Luiz Antonio de Assis Brasil e Raimundo Carrero?
Ensinar é uma tarefa das mais nobres — e eu mesmo já ministrei (e ainda ministro, atualmente) uma Oficina de Romance, na Estação das Letras no Rio de Janeiro e publiquei um pequeno livro sobre o assunto (o “quase-manual” Não perca a prosa, de 2003). Infelizmente, tudo isso tem limites. Sócrates já se perguntava, através dos Diálogos de Platão: afinal, a virtude pode ser ensinada? Quanto às virtudes em geral, francamente não sei a resposta — mas gosto das seguintes palavras do escritor americano John Gardner, que se destacou nos anos 1970 como professor de Técnica Literária: “Para atingir seu objetivo de se tornar um grande artista, o jovem escritor tem de desenvolver não um conjunto de normas estéticas, mas a mestria artística. Só não deve imaginar que possa dominá-la de uma só vez, pois isso implica muitas coisas. No entanto, se perseguir seu objetivo de maneira correta, poderá alcançá-la muito mais depressa do que se for, aleatoriamente, com muita sede ao pote”.

LEIA RESENHA DE MEMORIAL DE BUENOS AIRES

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho