Tolstói disse que para ser universal é preciso cantar a própria aldeia. O poeta Manoel de Barros considera que ser universal é uma evolução. Mas este bardo periférico de miudezas épicas, com seus 90 anos, completados em dezembro, vai muito além, consegue ser mais “ex-cêntrico”, pois canta um fragmento mínimo da aldeia — o próprio quintal. E, para um poeta que foi militante da Juventude Comunista, isso é revolução.
A revolução lúdica de Manoel de Barros é feita com cisco, borra, lata e sol, sapo, formiga, lagartixa e passarinho. Vale dizer: com palavras, pois são elas o brinquedo de armar do vate mato-grossense. Mas cuidado: “Hoje amarrei no rosto das palavras minha máscara”, adverte-nos em Poemas rupestres, porque toda essa lírica de calças curtas, pés no chão e penacho de estrelas oculta uma atiradeira no bolso de trás da gramática, para “jogar pedra no bom senso”. Alguma coisa zen, contudo, permanece na poesia pantaneira de Manoel de Barros. “Daqui vem que os poetas podem compreender/ o mundo sem conceitos” (Ensaios fotográficos). Essa duplicidade corresponde a algo como um paradoxo budista em que os meios justificam os fins. Conta-se de um mestre zen que, antes de aceitar um aspirante, na soleira do templo, para testá-lo, esbofeteava-lhe a face. Caso o candidato reagisse com ira, era recusado. “Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,/ um sábio ou um poeta” (Ensaios fotográficos). É preciso dar a outra face, às vezes, para acolher as muitas bofetadas semânticas do poeta. Tapas no “homem de lata”, sopapos no erudito pernóstico, bofetes na mediocridade.
Como a vida, nesse aspecto, é igualmente pródiga, Manoel de Barros, coerente com sua “prática do limo” (Gramática expositiva), reage aos pescoções que, por sua vez, recebe da crítica, resignadamente: “Repetir é minha tortura”, confessa. Quando meu amigo Fábio Schatzmann me abriu o caminho para a lírica do poeta mato-grossense, com uma mão-cheia de livros, o eterno retorno dessa obra pantaneira se tornou evidente. Fatos são fatos e contra eles não há argumentos. Mas ao cabo, citando o Eclesiastes, “nada há de novo debaixo do sol”. Tudo se repete, as marés, os dias, as estações, os anos, os sentimentos, as esperanças e as palavras. Há uma teoria de que o próprio universo de repete em big bangs. O poeta, afinal, está certo, somos apenas poeira de estrelas. Entretanto, apesar de tudo, nada é igual, apenas semelhante. Basta pestanejar, e o mundo mudou. Assim é a galáxia de Manoel de Barros, espiralada, igualmente desigual. Como diz em Tratado geral das grandezas do ínfimo: “Poeta/ é uma pessoa/ que reverdece nele mesmo”. Nesta entrevista, Manoel de Barros responde sintética, mas essencialmente a perguntas enviadas por e-mail.
• Aos 90 anos, o senhor continua, como no poema Enunciado, gozando suas “horas a brincar com palavras”? Existe projeto de um novo livro?
Já disse muitas vezes que pratico todos os dias a Língua de brincar. Repito ainda que a palavra só me seduz quando chega ao grau de brinquedo.
• Geográfica e poeticamente falando, Manoel de Barros é um poeta de periferia ou tal coisa não existe na medida em que o centro está onde estamos?
Ser de periferia traz a idéia de que faço uma poesia de recanto. Considero que ser universal é uma evolução, mas ser de periferia é uma revolução. Acho que faço a poesia do meu quintal.
• Alguns de seus poemas colocam ordem no insignificante, nomeando os sintomas da “disfunção lírica” e relacionando “privilégios de ser pedra”. Em Tributo a J.G. Rosa existe uma ordem, digamos, silogística. Pode-se dizer que há um sistema nessa poesia rupestre e instintiva?
Não há sistema nem lógica. O que faço com alguma jubilação é jogar pedra no bom senso.
• Versos do poema O cisco dizem: “Para compor um tratado de passarinhos/ É preciso por primeiro que haja um rio com árvores/ e palmeiras nas margens”. A consoante “p”, de passarinho, voeja por toda a extensão dos versos. Qual importância tem o rigor formal em seu trabalho?
O rigor formal tem para a poesia mais importância do que as idéias. Poesia é armação de palavras com um canto dentro.
• Alguns metapoemas, em Ensaios fotográficos, sugerem esse caminho, como em O roceiro: “Retiro de novo as pragas: objetos de aves, adjetivos … E deixo o texto a germinar sobre o branco do papel”.
Existe uma bênção da inocência nas palavras.
• Em Arranjos para assovio há um verso: “Ninguém é pai de um poema sem morrer”. Em Ensaios fotográficos há versos como “falar a partir de ninguém” e “compreender o mundo sem conceitos”. Em Tratado geral das grandezas do ínfimo, no poema Ascensão, refere-se ao “feto do verbo” e nos Poemas rupestres “as coisas todas inominadas”. Existe algo de zen nesse fazer poético: “Sou beato de águas/ de pedras/ e de aves”?
É isso mesmo. E tem mais uma coisa: o cisco tem para mim uma importância de catedral!
• Gaston Bachelar, em A poética do espaço, escreve que “tomar uma lupa é prestar atenção” e pergunta “prestar atenção não será possuir uma lupa?”. Os poemas de Manoel de Barros são uma lupa para as grandezas das insignificâncias. É assim?
Eu não uso lupa. As coisas miúdas que aparecem para mim enormes são visões. Porque eu não tenho o ver, eu tenho visões. As visões vêm sempre acompanhadas de loucuras, fantasias, bobagens profundas ou coisinhas de nada e vãs. Ponere res ante óculos.
• Alguns críticos falam em “barrismo” e dizem que o senhor se autoplagia, que usa as mesmas estruturas (despalavra, desorgulhoso, etc.), as mesmas categorias morfológicas (“eu me eremito”, letral, etc.), os mesmos temas (lata, passarinho, visgo, formiga). O que o senhor pensa disso?
Repetir é minha tortura. Mas como posso não repetir as palavras se elas estão pregadas na minha existência?
• O senhor trocou o comunismo internacional pela comunhão pantaneira. O que Manoel de Barras pensa hoje sobre a política?
Já fui comunista depois virei poeta. Meu comunismo era um sonho de fazer o mundo melhor. Agora eu tenho um novo sonho: é o sonho de inserir no meio das palavras certa harmonia que aprendi por ouvir o gorjeio dos pássaros.
• Em Sabiá com trevas, de Arranjos para assobio, livro de 1980, há um poema no qual o sujeito lírico parece responder a uma entrevista. Passou-se um quarto de século, por isso, vou aqui parafrasear algumas daquelas questões, desta vez, para o senhor responder em prosa.
— Difícil de entender [parte de] sua poesia, o senhor concorda?
Concordo que seja difícil entender a minha poesia porque ela é feita de imagens. O leitor terá que botar a imagem concretizada no olho.
— E sobre a palavra?
A palavra é matéria que eu uso para armar o verso.
– Alguns dados biográficos?
Nasci na beira do rio Cuiabá em 1916. Não sei morrer.
– E como é que o senhor escreve?
Escrevo a lápis. Hoje sou marginal porque não sei mexer com computador.