Antonio Fernando De Franceschi é um poeta de poucos poemas. “Venho publicando pouco porque tenho escrito menos poesia. Mas garanto que não é nada do gênero ‘o silêncio de Rossini’”, diz ele. A verdade é que poesia como a dele faz falta neste imenso deserto em que se transformou a poesia brasileira feita atualmente quase só de nomes que não resistem a qualquer crítica honesta. Poetas assim não podem ficar como que à parte. Seus livros de poesia são: Tarde revelada (1985), Caminho das águas (1987), Sal (1989), Fractais (1990), A olho nu (1993) e Cinco formas clássicas (2002). De Franceschi acredita na existência da Geração 60 de poetas de São Paulo. Acredita nessa Geração com G maiúsculo. De Franceschi afirma que essa Geração soube ocupar seu espaço na poesia brasileira. Tal Geração — sempre com G maiúsculo — conforme observa, teve o papel histórico de contrapor-se aos movimentos formalistas que a antecederam — Concretismo em São Paulo; Neo-Concretismo no Rio de Janeiro — quando essas correntes reivindicavam a hegemonia da expressão poética no Brasil: “…a nossa foi uma Geração não-corporativista num país tão povoado por ‘ismos’, cartórios e paróquias”. É um equívoco pensar-se que Antonio Fernando De Franceschi olha a Geração 60 de poetas de São Paulo com alguma desconfiança. Ele explica por que se coloca praticamente sempre à margem (se é que cabe tal imagem): “Sou uma pessoa reclusa, adepta do perfil baixo e da mínima circulação social”. Para De Franceschi, poesia é sobretudo trabalho: “Mas isso não quer dizer que não haja espaço para a inspiração, apesar desta palavra infeliz ser imprópria se entendida como antônimo de trabalho”. Queixa-se: “O homem contemporâneo perdeu o contato com o divino, saiu a trabalho, ocupadíssimo, e não tem como voltar para casa”. De Franceschi observa que desde as Gerações de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto, a poesia brasileira não mais produziu nenhum grande nome canônico. A exceção é Ferreira Gullar. “Alguns poetas contemporâneos parecem maduros e podem estar a caminho do Panteão, mas ainda depende do tempo, de um certo distanciamento para que se possa avaliá-los melhor em perspectiva histórica”. Diretor-superintendente do Instituto Moreira Salles, afirma que esse cargo lhe tem sido fundamental. Um desafio diário que, no final — como diz — resulta em “grande gratificação intelectual”. Voltando ao início: pena que publique tão pouco. Mas, no fundo, deve ter suas razões. Está muito difícil participar desse palco de equívocos em que se transformou a Poesia deste país, repleta de invenções que representam uma afronta à própria Poesia, que merecia sorte melhor. Nascido na cidade de Pirassununga, interior de São Paulo, em 27 de novembro de 1942, Antonio Fernando De Franceschi é um poeta na acepção mais correta da palavra. Certamente por isso mesmo prefira isolar-se, se é que cabe aqui essa expressão.
• A Geração 60 de poetas de São Paulo existe?
Sua pergunta me faz recordar uma frase lapidar de Gertudre Stein. Instada a opinar sobre Scott Fitizgerald, disparou: foi “o primeiro da última geração”. Lapidar porque certeira: ninguém duvida que Fitzgerald, 22 anos mais moço que Stein, foi o escritor que melhor encarnou literariamente o clima existencial dos anos 1920 (“the jazz age”). Entre frenético e desesperado, breve suspiro de alívio pelo fim da primeira grande guerra mundial, aquele clima duraria pouco. No início dos anos 1930, os germes dos totalitarismos europeus já deixavam entrever o terror maior que seria o próximo conflito mundial. De permeio entre esses marcos históricos, era fácil reconhecer como pertencendo a uma mesma Geração os artistas que viveram e produziram naqueles anos. Sim, Geração com G maiúsculo, no sentido que se empresta ao termo para caracterizar certa identidade quanto à partilha de um quadro de referência comum ou mesmo quanto ao modo de experimentar a relação entre arte e vida. Não obstante essa clareza, aquela Geração foi muito mais marcada pelo zeitgeist que pela cronologia de seus membros. Importa muito saber como o espírito do tempo infundiu forma própria à experiência existencial e criativa daqueles anos. Pouco importa a idade dos que o partilharam, sequer a geografia que os colocou juntos ou os separou. Talvez por isso se possa dizer que, como criadores, Gertrude Stein e Scott Fitztgerald pertenceram à mesma Geração, apesar de suas diferentes dicções, idades e tudo mais que os distinguiam. No prefácio que você e Carlos Felipe Moisés escreveram para a Antologia Poética da Geração 60 (Nankin Editorial, São Paulo, 2000), em cuja compilação figuram poemas de 30 poetas selecionados a partir de edições originais de 132 livros, ficou muito clara a preocupação de ambos em relativizar o uso que fizeram da palavra geração, chamando a atenção do leitor para a heterogeneidade dos autores sob diversos pontos de vista, como a dispersão etária, diversidade de estilos e tendências, insubordinação a paideumas ou cânones normativos, apresentando-os, enfim, como “uma geração não-corporativista”. Concordo com vocês e acrescento que, pelo menos quanto a vários poetas cujas órbitas gravitaram mais perto do núcleo histórico do grupo, existe sim, a meu ver, a Geração 60 de poetas de São Paulo, com G maiúsculo. O que não quer dizer que o uso da maiúscula tenha, necessariamente, qualquer conotação de mérito literário.
• Que lugar tem na poesia brasileira a produção poética da Geração 60 de São Paulo?
Alguns aspectos distintivos emprestam singularidade a essa Geração. Ao largo da questão qualitativa, sempre problemática quando se trata de um sujeito que é plural, pode-se dizer que ela soube ocupar seu espaço. Um espaço, de certo modo, correlato ao ocupado por São Paulo, a partir da década de 60, no âmbito nacional. A cidade se beneficiara grandemente do programa desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek (1956–1961), que transferiu a capital federal do Rio para Brasília e estimulou um forte adensamento do perfil industrial paulistano. Com isso, a área se expandiu, incorporando ao tecido urbano toda a orla dos municípios vizinhos, a começar pela região do ABC, transformando-a num centro dinâmico cuja presença não mais deixaria de predominar no país. Seu novo status metropolitano tornou a voz de São Paulo cada vez mais audível: tudo o que acontecia aqui importava para o país e o que importava país afora acabava vindo para cá. Apesar de incipiente, a Geração 60 era uma dessas vozes, como relembra Cláudio Willer no posfácio da referida antologia. Outro papel histórico da Geração foi contrapor-se aos movimentos formalistas que a antecederam — Concretismo, em São Paulo; Neo-Concretismo, no Rio de Janeiro — quando tais correntes reivindicavam a hegemonia da expressão poética no Brasil, mediante a habilidade, que jamais lhes poderá ser negada, de terem sabido conquistar espaço na imprensa brasileira e junto a públicos seletos no exterior.
E, ainda, o mais importante: por ter revelado alguns nomes de grande competência poética, que com o passar do tempo, lentamente, começam a ser reconhecidos após um longo e injusto esquecimento. Para não dizerem que não dou exemplos, citarei três poetas mortos: Celso Luiz Paulini, (1929-1992); Orides Fontela, (1940–1998) e Hilda Hilst, (1930–2004), esta última não integrante da Antologia, diacrônica em relação ao grupo tanto quanto o era o primeiro, mas como ele, completamente aderida ao espírito da Geração. Há vários vivos com qualidade para ser citados, porém esses podem falar por si. Por último menciono, para endossar, o mérito percebido por você e pelo Carlos Felipe Moisés: a nossa foi uma Geração não corporativista num país tão povoado por “ismos”, cartórios e paróquias.
• Deixe-me dizer-lhe algo que não comentei com você. Naquela antologia de poesia brasileira contemporânea que eu organizei e que foi publicada em Portugal pela Editora Alma Azul, de Coimbra, a editora manifestou-se especialmente em relação a dois poetas: você e Bruno Tolentino. Tanto que, algum tempo depois, a mesma editora, aproveitando o material da antologia, publicou outro livro, 9 poetas brasileiros, entre os quais está você. Eu lhe pergunto: autor de poemas de tanta qualidade, como é e por que você está tanto tempo sem publicar poesia?
Venho publicando pouco porque tenho escrito menos poesia. Mas lhe garanto que não é nada do gênero “o silêncio de Rossini”, assim chamado o suposto hiato criativo ocorrido na carreira do compositor italiano, logo após a estréia de sua tão esperada ópera Guilherme Tell, em 1829. Na verdade, o que aconteceu com Rossini foi o oposto disso, já que os anos ditos silenciosos constituíram período pontuado por momentos fecundos na vida do compositor, que continuou trabalhando em segredo até retornar, com a mesma assiduidade, às suas composições. É verdade que canalizei muito da minha energia para trabalhos textuais relacionados com as atividades culturais do Instituto Moreira Salles. Mas venho publicando diversos inéditos em antologias e, em 2002, foi lançada a plaquete Cinco formas clássicas, reunindo gravuras do artista plástico Sergio Fingermann e poemas meus. Foi uma parceria muito estimulante, que tenho vontade de repetir, apesar do escasso número de exemplares que se costuma imprimir dessas edições tipo livro de arte.
No momento, estou trabalhando num conjunto de poemas para um livro que talvez publique no próximo ano, enfeixando um conjunto de suítes — sim, pense na forma musical — que venho escrevendo há algum tempo.
• Sempre me pareceu que você olha os poetas da Geração 60 de São Paulo com alguma desconfiança. É assim mesmo ou estou errado em minha avaliação?
Desculpe-me, mas acho que você está completamente equivocado em sua avaliação. Concordaria se dissesse que sou uma pessoa reclusa, adepta do perfil baixo e da mínima circulação social. Ou seja, um bicho-do-mato, como minha avó dizia. Dentro do grupo de poetas de nossa geração há para mim, como para você e para todos nós, certamente, aqueles que foram mais próximos e cujo convívio longo e continuado marcaram nossas vidas. A meu ver, essa não é uma questão individual e sim sociológica, característica das relações interpessoais, sobretudo numa cidade como São Paulo, onde os mecanismos de desagregação e afastamento atuam de forma redobrada. Nesse ambiente, resistem mais as amizades cimentadas por afinidade, empatia e afeto. Tive o privilégio de ter relações desse tipo com alguns companheiros e lamento que esse círculo não tenha sido maior. De qualquer modo, penso que você concordará que entre ter amigos diletos e olhar os demais companheiros de geração e ofício com desconfiança vai uma diferença abissal, não é mesmo?
• Faço a você a pergunta que fiz ao Cláudio Willer aqui no Rascunho, entendida por ele como uma provocação. Você, o Roberto Piva, o Willer e o Rodrigo de Haro formam um pequeno grupo dentro da Geração 60 dos poetas de São Paulo, mantendo certa distância dos outros. É mais ou menos como se os “outros” não existissem. É assim mesmo?
Permita-me divergir de você, uma vez mais, já que esta pergunta é uma continuação da anterior. Assim, me parece que ela já foi respondida.
• Faço a você uma pergunta que se tornou quase ridícula em qualquer entrevista com poeta, mas que, quase sempre, a resposta revela a própria produção poética de um autor: afinal, poesia é inspiração ou trabalho?
É, sobretudo, trabalho, a meu ver. Mas isso não quer dizer que não haja espaço para a inspiração, apesar desta palavra infeliz ser imprópria se entendida como antônimo de trabalho. Só para citar um exemplo, pense no Fernando Pessoa escrevendo um livro inteiro, da capo, em pé diante de uma cômoda, deixando as folhas de papel caírem no chão, uma após outra, a cada poema revelado. O que lhe teria propiciado essa revelação? O trabalho? Ou uma outra sintonia que nada têm a ver com o suor e as lágrimas implícitos na acepção cristã da palavra latina que deu origem a trabalho em português?
Os gregos antigos falavam na loucura poética, surto que submetia o paciente a um transe que nem sempre tinha happy end. Mas se trata de uma experiência tão recuada que não vale a pena desarquivá-la. O homem contemporâneo perdeu o contato com o divino, saiu a trabalho, ocupadíssimo, e não sabe como voltar para casa. Os nômades não tinham esse problema, mas já não há nômades. Nem xamãs, nem os grandes iluminados. Fazer poesia hoje requer trabalho, muito trabalho. Quase mais nada além de trabalho. Ainda assim, mesmo nesses tempos árduos, sempre haverá bons poetas.
• O que é ser superintendente do Instituto Moreira Salles?
Tem sido uma experiência fundamental para mim. Desde a fundação do IMS, em 1990, pelo embaixador Walther Moreira Salles, venho me dedicando com empenho ao mandato que ele me confiou para ajudá-lo a construir uma instituição diferenciada, dotada de capacidade própria para conceber e desenvolver a variada programação com que anima seus centros culturais e galerias de arte. Como você sabe, os eixos principais da atuação do Instituto são a fotografia, o cinema, a literatura, as artes plásticas e a música popular brasileira de raiz. Esse foco multidisciplinar exige muita agilidade e esforço dos executivos do IMS e, especialmente, de quem tem o encargo de coordenar a equipe. Além de coordenar e planejar, gosto também de pôr a mão na massa, escrever textos, curar exposições, pesquisar, editar, e mesmo de enfrentar as incessantes leituras obrigatórias. Tudo isso transforma o dia-a-dia no Instituto um desafio permanente, muitas vezes exaustivo, mas que proporciona — e isto é o lado melhor — uma grande gratificação intelectual.
• O Instituto Moreira Salles assina uma das principais publicações culturais do Brasil, os Cadernos de Literatura Brasileira. O IMS patrocinou a antologia da Geração 60 de poetas de São Paulo organizada por mim e pelo Carlos Felipe Moisés. Fora isso, também prestou merecida homenagem ao poeta Roberto Piva, reeditando seu livro Paranóia, editado pela primeira vez pelo Massao Ohno, em 1963. Há ainda outras obras que seguem a mesma linha. O IMS continuará desenvolvendo esse trabalho?
Nossa intenção é continuar atentos a nomes da literatura brasileira que, por diversos motivos, não mereceram do público e da crítica uma recepção adequada no momento em que apareceram. Com isso, não quero dizer que estejamos empenhados no resgate sistemático de autores de qualidade cujo reconhecimento ficou aquém do que nos parece merecido. Seria um trabalho de Sísifo, fora de qualquer escala praticável por uma instituição como o IMS, voltada a outros objetivos culturais além da literatura. O que temos procurado é mobilizar nosso foco para alguns desses esquecimentos ou desatenções, quando a oportunidade de fazê-lo se cruza com nossa pauta de trabalho. Fizemos isso nos casos que você mencionou e, também, ao dedicar o 2º e o 8º números dos Cadernos de Literatura Brasileira a Raduan Nassar e Hilda Hilst, respectivamente, dois grandes escritores que ainda não haviam sido percebidos, a nosso ver, em toda a sua grandeza, até o momento em que os publicamos.
• O que você acha da poesia brasileira contemporânea?
Voltando ao tema das gerações, é interessante notar que desde as Gerações de Drummond e de João Cabral, e com exceção de Ferreira Gullar, a poesia brasileira não mais produziu nenhum grande nome canônico. Alguns poetas contemporâneos parecem maduros e podem estar a caminho do Panteão, mas ainda dependem do tempo, de um certo distanciamento para que se possa avaliá-los melhor em perspectiva histórica. Estou falando do plano individual. Quanto a tendências ou movimentos, vimos nos últimos anos o refluxo da ortodoxia formalista, encarnada, sobretudo, no Concretismo e sua prole rumorosa. Pelo lado contrário, vem ganhando força uma corrente de extrações e tendências variadas que se unem, aparentemente, num único ponto: a busca de uma expressão livre, sem fórmulas ou programas. Corrente que parece avançar como o famoso anjo de Paul Klee, com os olhos voltados para traz, à procura de uma referência recuada, talvez em direção a gerações passadas, quando a experimentação era, pelo menos, libertária e gozosa.
Em suma, o que se vê na curva da tendência contemporânea dominante poderia ser descrito como uma espécie de revisão dos formalismos à luz das dicções que os precederam, embora estas, também, venham sendo retomadas, criteriosamente, com um filtro de crítica. Como se vê, não se trata de revisionismo e sim de mais um esforço para ampliar o campo de possibilidades da nova poesia brasileira. Na prática, o resultado predominante tem sido o poema de hausto breve, despojado, que procura o tom menor, o coloquial, e foge da ênfase tanto quanto do texto longo. O risco — de resto, inevitável, toda vez que um processo se estabiliza — é que esta opção formal se torne norma ou língua franca. Neste caso, a salvação virá sempre pelo efeito transgressivo da boa poesia, que impede a acomodação e desafia o enrijecimento de qualquer processo. Por último: na minha avaliação, há vários bons poetas novos e outros não tão novos na poesia brasileira contemporânea. É fundamental conhecê-los e prestigiá-los. Estimulo o leitor à leitura daqueles cuja obra parece madura e ter corpo suficiente para constelá-los como estrelas fixas acima das luzes passageiras no céu noturno.