A prosa e suas ausências

Aline Bei desnuda com delicadeza e profundos silêncios sua trajetória de sucesso como ficcionista
Aline Bei, autora de “Uma delicada coleção de ausências”. Foto: Isadora Arruda
01/08/2025

Aline Bei é um dos nomes de maior destaque do cenário literário brasileiro dos últimos anos. Autora dos romances O peso do pássaro morto e Pequena coreografia do adeus, sua escrita é permeada por nuances estilísticas que dão às suas histórias beleza performática e uma voz particularíssima, diferente de qualquer outra.

Natural de São Paulo e formada em Letras (PUC-SP) e Artes Cênicas (Célia Helena Centro de Artes e Educação), recentemente, lançou Uma delicada coleção de ausências. Na obra, quatro personagens femininas, nomeadas como Filipa, Margarida, Laura e Glória, ganham holofote ao expor suas dores, angústias, memórias e vazios que se misturam através de seus laços sanguíneos e acabam por se tornar densas cicatrizes em um amálgama temporal cujos fios narrativos se interligam ao presente e ao passado de cada uma. Tal romance se configura ao lado de suas produções anteriores como uma espécie de Trilogia involuntária.

Nesta entrevista via e-mail, a autora revela os bastidores de sua composição, a influência do teatro, os livros de formação. E fez questão de pedir que o registro original de sua escrita fosse mantido na íntegra.*

*O Rascunho manteve parte da formatação original, enviada por e-mail pela autora, sempre respeitando o nosso projeto gráfico/editorial.

• A subjetividade feminina é um dos temas centrais de seus três livros de ficção, que se debruçam sobre experiências particulares atravessadas tanto na infância quanto na vida adulta de suas personagens. Como foi entender que a sua literatura se atrela a questões muito idiossincráticas do universo feminino? Como escritora, é o feminino que te interessa?
tem sido a partir do feminino. não como um fim em si mesmo, nunca para esgotá-lo, mas o feminino como origem das histórias que posso contar. Escrevo com o corpo, sou canal e abertura para outros corpos inventados, e o que tento agarrar, às vezes com mãos de Escultora, é a cena. quero o quadro em movimento, quero a imagem, quero o lugar onde tudo tem sentido e sombra, símbolo e tempo, peso e convocação.

• Você cataloga os seus três romances como uma espécie de Trilogia involuntária. Creio que tal nomenclatura surge em decorrência do diálogo que é tecido em cada um deles. Há quem diga que um escritor está sempre escrevendo a mesma coisa, no sentido de que cada ficcionista carrega dentro de si a sua grande obsessão. É por aí? Como você analisa o seu percurso de escritora?
Trilogia Involuntária é o nome que me veio à boca. involuntária é uma palavra bastante reveladora do meu processo, pois ilumina a minha fragilidade diante do material que deseja ser escrito. sou conduzida por algo que curva meu texto em direção a certos caminhos que para mim também são misteriosos. escrevo com o desconhecido de mim, e essa força não tem vínculo com nenhum planejamento, apenas com a percepção de que a minha folha respira na nuca das palavras.

• Como o seu processo criativo se dá? O que costuma acontecer para que uma determinada história, cena ou personagem te contaminem a ponto de querer que tal ideia seja levada para o papel?
cada livro que escrevo esquece um adereço no palco. eu, que costumo ficar sentada no Teatro já vazio, de repente percebo aquela coisa esquecida em cena — o que é? me levanto da poltrona, que volta rapidamente ao seu estado de envelope, e chego mais perto do objeto, ainda sem compreendê-lo. levo para casa, deixo que cresça. aos poucos, anoto umas coisinhas sobre ele, e caso o adereço se revele um símbolo, tento escutá-lo com ouvidos míticos. ao acaso, encontro uma música, às vezes um filme ou um livro, que tem parentesco com tal objeto. Avanço, crio uma espécie de reservatório de referências, que mais tarde posso chamar de A Pesquisa do Livro, principalmente nas entrevistas futuras. nesse período, os cadernos, os papéis soltos e as anotações no espelho com batom são fundamentais. quando dou por mim, se passaram anos. mas não me assusto. não, não me assusto. vou para o computador apenas quando não aguento mais. então torno o texto uma entidade virtual. escrevo a primeira versão, a segunda, a terceira. mostro para as minhas editoras. conversamos longamente em mesas de cafés. reescrevo, apago, insisto. em algum ponto, o livro me escapa. se emancipa, Oh!, se torna público.

Uma delicada coleção de ausências apresenta quatro gerações de personagens femininas que se encontram e, a partir desse movimento, questões experienciadas elas são jogadas à tona em um amálgama existencialista de tessitura familiar. Como foi chegar a essas personagens e por que falar sobre elas?
elas que chegaram até mim. Juntas,
Margarida, Laura, Filipa, Glória.
foram me cercando, cheiro de tangerina na gaveta de uma criança que morreu.
(a) como não falar sobre isso?
(b) há escapatória?
(c) é um labirinto.

• Existe algo seu em suas personagens ou tudo é pura ficção?
ficcção.
(ontem mesmo, li no livro Escrever é humano, do Sérgio Rodrigues: “o escritor de imaginação se revela mais do que o de autoficção ou memórias — justamente porque, ao dirigir seu olhar para longe da própria vida, em direção ao mundo, tem menos necessidade de mentir sobre si”.)

• Do Peso do pássaro morto a Uma delicada coleção de ausências, temos quase uma década de carreira literária de muito êxito de crítica e do público-leitor. De que forma você enxerga sua progressão mercadológica enquanto escritora? Acredita que o Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 e o movimento Leia Mulheres te ajudaram nesse sentido?
de dentro, não foi abrupto, tampouco estrondoso, nunca é. cada gesto me levou ao outro, silenciosamente, e às vezes há essas grandes paisagens que você mencionou. It’ s a long way. A long, a long, a long, a lo-long, a lo-long movida pelo desejo
de escrever:
aos clubes de leitura, o meu abraço.
aos prêmios, o verde
de Lygia Fagundes Telles.

• Embora apresentem certa delicadeza na forma, seus textos não sublimam a brutalidade do mundo com eufemismos. Pelo contrário, apresentam descrições realistas e, por vezes, perturbadoras de temas bastante sensíveis. Essa dor e desamparo que carregam as suas personagens vêm de onde?
dos meus olhos, eles eram enormes quando eu era criança. dizem que os olhos nascem adiantados, surgem na cara do tamanho que terão quando o rosto for adulto.
para tentar fugir
dos meus olhos, fui uma criança que dormiu. em vão. continuei vendo através dos sonhos, e agora que os olhos estão mais calmos, o que faço com tudo o que vi?

• Quando você surgiu em 2017 na cena literária brasileira, muita gente estranhou a sua maneira diferente de narrar, adotando a versificação no lugar da prosa, o que me fez lembrar em alguma medida o Autobiografia do vermelho, de Anne Carson. Há alguma influência ou no seu caso surge como uma genuína experimentação de linguagem?
o Oulipo, aquele grupo de escritores e matemáticos, tem um termo de que gosto muito, “plagiadores por antecipação”. eles dizem que estamos sempre plagiando, mesmo quando ainda não sabemos disso. se continuarmos lendo com afinco, encontraremos o que pensamos ter criado na literatura de alguém que veio antes de nós.
conheci a Autobiografia do vermelho em 2022.
isso me salva de sua influência? ainda bem que não.
de toda forma, nunca considerei verso o que faço. eu quebro frases, torcendo para que as quinas estejam pontiagudas. quando trabalho com parágrafos, como fiz na Delicada, eles são arenosos. parecem presos numa ampulheta.

Aline Bei. Foto: Isadora Arruda

• Como se sente por fazer parte desse seleto grupo de escritoras brasileiras que cada vez mais vem ganhando notoriedade na literatura brasileira contemporânea? Como você enxerga o interesse do público pelas autoras?
me sinto jogando as chaves no rio, abrindo portas e janelas. quebrando as paredes do seleto grupo
para que todas estejam, para que seja nosso.

• Quando você se reconhece como uma artista da palavra, como alguém que necessita, de fato, da escrita para comunicar algo para outras pessoas?
me reconheci logo no primeiro texto, no ano em que o Teatro se foi. ou eu pensei que ele tinha ido, mas o que é nosso não se move, não vai a lugar nenhum. escrevo, portanto, num estranho equilíbrio: com o Teatro na sombra, a infância no corpo e a escrita no sol.

• Quais seriam os seus livros de formação?
Cartas a um jovem poeta, de Rilke. A hora da estrela, de Clarice Lispector. A flor e a náusea, de Drummond. Os poemas de Manoel de Barros na lousa do Joca, na PUC. Irmãos Campos. Eles eram muitos cavalos [de Luiz Ruffato]. Memórias sentimentais de João Miramar [de Oswald de Andrade].

• Em tempos de inteligência artificial, o que você pensa com relação ao ofício da escrita e a desonestidade intelectual da parte de quem faz o uso de tal tecnologia para se promover como autor? Tivemos um prêmio literário cancelado recentemente por constatarem o uso indevido em alguns originais.
Recomendo a leitura do livro do Sérgio Rodrigues, Escrever é humano. e o ensaio da Marília Garcia, Pensar com as mãos.

• Por que a literatura?
porque ela encontrou meus olhos num momento em que eu era puro dente.

Uma delicada coleção de ausências
Aline Bei
Companhia das Letras
284 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Escobar (Moinhos) e Sobre o silêncio das horas (7Letras).

Rascunho