Carlos Drummond de Andrade converteu-se em coisa, coisamente. Virou boneco, marionete, pano de prato, manta. O rosto já é uma efígie, um selo. A etiqueta diz cem anos de nascimento, marcando definitivamente 31 de outubro de 1902 no calendário e Itabira (MG) como retrato na parede. Sua figura inofensiva e discreta, característica de um tio bondoso, circula em produtos homenageando seu aniversário. Percebe-se o rosto curvilíneo, imitando o lado côncavo de uma guitarra. A gravata, o terno preto e a camisa branca repassam a imagem higiênica e comportada de um funcionário público. Suas palavras tomaram a forma de profecia: “Por me ostentar assim, tão orgulhoso/ de não ser eu, mas artigo industrial,/ Peço que meu nome retifiquem./ Já não me convém o título de homem./ Meu nome novo é coisa”. Ele tornou-se uma relíquia, largamente citada e distanciada de si própria.
Nenhum poeta brasileiro provocou a mesma comoção unânime, a ponto de se transformar em “objeto pulsante”. A editora Record está publicado um por um de seus livros, começando com o emblemático e inaugural Alguma poesia (1930), um dos casos raros de estréia que se fez clássica. Da pedra que havia no meio do caminho às estradas pedregosas de Minas, o legado lírico foi palmilhado pelos principais críticos, o equivalente a uma parada obrigatória para entender o eterno deslugar da língua portuguesa. Mesmo depois de um século, em que tudo parece já ter sido discutido, apontado e analisado, surge um volume vermelho, caprichado, da editora Cosac e Naify, com ilustrações de Paulo Pasta, que reconstitui a “história por dentro” da poesia drummondiana. Coração Partido, de Davi Arrigucci Jr., é uma derradeira provocação, capaz de traçar um mapeamento estilístico do autor, atingindo sua real fisionomia e a conceituação do ser poético.
Professor aposentado da USP, Arrigucci Jr. dá a impressão de ter guardado suas melhores forças ao desafio. Antes, dedicou estudos sobre Julio Cortázar, em O escorpião encalacrado (1972), Manuel Bandeira, no livro Humildade, paixão e morte (1990), e Murilo Mendes em capítulo de O cacto e as ruínas (1997). Os trabalhos anteriores serviram de gestação para definir o lirismo de drama e pensamento do escritor mineiro. Partindo do Poema de sete faces (1930) até Mineração de outro (1962), Arrigucci Jr. demonstra a unidade da obra, contrapondo-se à versão até então dominante de distintas e inconciliáveis fases do poeta. O humor modernista do início estaria ligado à poesia do conhecimento dos anos 40, a partir do chiste, da negação, da intimidade com os conflitos da época e de uma severa autocrítica. Examina como o Drummond moldou organicamente suas vivências e fundou suas experiências reflexivas, unificando em versos o mundo múltiplo e caótico. O ensaísta desfaz impressões canônicas ao destacar sua falta de naturalidade, diferenciando-o da espontaneidade de Bandeira. Dividido em quatro capítulos, Coração partido acompanha ainda a teia de problemas, o amor em crise empreendido por Drummond, que nunca se contenta com a sabedoria da velhice ou se esfria na amizade, sempre obcecado em descobrir o que pensa o outro na relação amorosa. Uma outra novidade apresentada pelo texto é o jeito especial que Drummond tratou e reconduziu a herança dos românticos, não se restringindo a “uma exaltação egotista do poder de si mesmo”, mas de uma despossessão, um “sentimento do não-poder do Eu”, articulado pela ironia.
Em entrevista ao Rascunho, Davi Arrigucci Jr. esclarece e discute os pontos dominantes de seu ensaio.
• Coração Partido torna-se um marco na análise de Drummond ao apontar uma unidade em sua poesia, desafiando a crítica dominante, que costuma classificá-la em diferentes estilos e fases heterogêneas. Drummond do primeiro período, do Poema de sete faces (1930), continua sendo o mesmo de A lição de coisas (1962). De que modo o poeta desenvolve uma continuidade em momentos vistos até hoje como diversos? Ele potencializava a multiplicidade, mas nunca levava a cabo a divisão de heterônimos?
A unidade a que me refiro é uma unidade de estilo, tomo a palavra no sentido forte (existe isto?), embora não apareça nunca no meu texto. É o que dá a coerência profunda do poeta e sua fisionomia particular, pois implica a reflexão como um procedimento fundamental na procura mesma da poesia. Isso vira um problema, pois se trata de um lirismo impuro e conflituoso, armado de contradições, feito de drama e pensamento. A unidade estilística não elimina fases, não pretende ser a verdade cabal sobre Drummond nem dizer que há mais verdade na unidade do todo que nas etapas do percurso — sua obra é vasta e variada —, mas para reconhecer qualquer fase adequadamente é preciso levar em conta esse modo de ser peculiar do poeta, que não tinha sido, a meu ver, devidamente ressaltado, analisado e compreendido, o que muda muito a compreensão do todo e das partes. Tentei caracterizar um paradoxo central, recorrente em toda a obra: o poeta necessita do pensamento para chegar à poesia, mas, ao mesmo tempo, o pensamento é um entrave para isso. Esta contradição, decisiva para sua concepção do ato poético, está também na raiz da ironia drummondiana, filiando-se a um sentimento de não-poder do Eu; ela revela como Drummond, trabalhando contra a falta de naturalidade, fez da dificuldade arte. A poesia é aqui sempre o resultado de um esforço, de uma luta, por vezes vã, com as palavras; em suma, é produto de um trabalho. Essa procura constante, que tantas vezes se defronta com os obstáculos do caminho, é ela própria uma demonstração da unidade profunda.
• Seu processo interpretativo tem a peculiaridade de atingir a macroestrutura pelo mínimo. Assim como em O cacto e as ruínas, estudo de Murilo Mendes e Bandeira, o senhor escolhe o viés estilístico e analisa sempre o escritor mediante a investigação exaustiva de poemas selecionados, exaurindo todas as possibilidades e tendências que eles podem oferecer e “refazendo a história por dentro”. Realiza o equivalente a uma crítica microscópica, descobrir o DNA e as características do escritor por um simples fio de cabelo (poema)? A sociedade estaria internalizada na poesia de Drummond?
No desenvolvimento da análise e da interpretação, o essencial é sempre o movimento que vai do todo às partes e destas, de novo, ao todo: incorporei este círculo da minha formação filológica; é a única garantia que temos para não nos perdermos ao percorrer o caminho do poeta, ao tentar refazer sua história por dentro. Ao buscar compreender um poema, estamos sempre às voltas com o grande e o pequeno e com suas mútuas relações. Bandeira dizia que a poesia é feita de “pequeninos nadas”, e de fato assim é. A passagem da visão microscópica para a totalidade dá a dimensão do esforço crítico, com suas exigências de uma arte de mediações que seja ao mesmo tempo fina, inclusiva e coerente. O mundo está, de algum modo, entranhado no poema drummondiano sob a forma de um sentimento refletido; a forma poética é uma cristalização desse sentimento, ou, para dizer em termos drummondianos, o sentimento lavrado em palavras.
• Quais foram os principais obstáculos enfrentadas no percurso crítico?
Os obstáculos que crítico de Drummond enfrenta são análogos ao caminho de obstáculos do poeta; se este caminho é aporético, essa questão se coloca também para a interpretação. O ensaio, que depende até certo ponto de um movimento mimético com relação a seu objeto, recoloca para si mesmo o problema, como está na análise do poema Mineração do outro, voltado para os limites do conhecimento do outro na relação amorosa, mas também prolongável na relação do intérprete com o texto. A consciência crítica adequada é aqui reconhecimento dos limites da crítica. A grande lição drummondiana é procurar soluções no próprio modo de ser da poesia: o enigma em que desemboca o texto (no do poema mencionado, a salamandra) é um modo de recolocar uma pergunta e não de acatar uma resposta. Depois de ter compreendido tudo, resta ainda muito a compreender.
• O senhor esclarece a cicatriz do conflito na obra de Drummond, a impureza de seu lirismo. Como Carlos Drummond de Andrade se diferencia dos românticos e expressa a modernidade a partir da mescla de drama e pensamento?
Creio que uma das novidades do ensaio é chamar a atenção para o diálogo de Drummond com a tradição romântica, a que ele se opõe, mas de uma forma reveladora. A reflexão é uma modalidade de pensamento característica dos românticos: o Eu que pensa sobre o próprio Eu; essa fantasia do Eu sobre o Eu que lembra o sonho é muito também drummondiana como pode perceber qualquer de seus leitores. No caso, o vínculo não é apenas decisivo para se compreender o fundamento desse lirismo reflexivo, do movimento do desejo e da falta que ama, o sentimento de não-poder do Eu, mas também para se compreender um traço marcante e decisivo do poeta que é a sua capacidade de articulação sintática: o modo como é capaz de conectar sempre, de dar forma unitária no verso à multiplicidade do mundo. O mundo de Drummond certamente já não é o dos românticos, mas o mundo dos tempos modernos, que irrompe depois da Primeira Grande Guerra. Mundo múltiplo, heterogêneo e caótico que atinge a sensibilidade do poeta no Poema de sete faces. A força do poema está na articulação sintática das múltiplas faces, dos desejos desencontrados, unidos pela coerência do sentimento refletido.
• A timidez do escritor colaborou ao seu humor poético que é um misto de “confissão e agressão”? É exatamente esse humor agressivo, qualificado como chiste, o elo e a chave de leitura para o escritor articular contradições, resultando num sentimento reflexivo e reposição de valia?
Também o sentido do humor se esclarece quando pensado no quadro da tradição romântica do chiste. Ele se presta à articulação fulgurante das contradições, à junção das divergências como elemento da sintaxe poética. Ao mesmo tempo, ele canaliza os impulsos de confissão e agressão, sempre enrustidos nas dobras da reflexão lírica. Por essa via, é possível reconsiderar o poema-piada modernista no exato viés drummondiano, pois se entende o seu fundo reflexivo casado à graça ferina e seu poder de iluminação. Por ele se percebe, por fim, a linha de continuidade entre os poemas humorísticos mais ligados ao modernismo inicial e o denso lirismo meditativo posterior, assim como a agudeza da forma expressiva que ganhou o desajeitamento, para além dos meros traços psicológicos da timidez, a que por vezes se tenta reduzir a explicação do senso de humor drummondiano.
• Como o senhor diz, o que chama atenção no adensamento poético de Drummond é a paródia de três modalidade de poesia: a cômico-satírica, a elegíaca e a idílica. Diferentemente da tradição metafísica, ele não quer o perdão ou se confessar. A resistência ao deslumbramento confessional vem de uma autocrítica impiedosa?
Falo em paródia e três modalidades de poesia somente a propósito do Poema de sete faces, não como forma geral de adensamento do lirismo, mas creio que você observa muito bem como a autocrítica impiedosa é um dos fundamentos dos acertos de Drummond, que pode ter eventualmente dado ouvidos à crítica, mas tinha como fiel da balança sua autocrítica. Ela é uma extensão de sua capacidade reflexiva, do modo como ele reflete sobre os próprios sentimentos, procurando exprimi-los com precisão severa. Provavelmente nisso está uma das principais lições do grande poeta aos poetas jovens.
• O poeta mineiro expressou seu desajeitamento social e afetivo retorcendo a sintaxe? Um anjo torto é aquele que voa rastejando?
Não creio que as coisas sejam exatamente assim: eu retorcido e, por tabela, sintaxe retorcida. Não me refiro nunca a qualquer retorcimento sintático. Utilizei o termo sintaxe com extensão maior que o da gramática tradicional para fazê-lo corresponder ao conceito de articulação, que me parece decisivo para compreender a poesia moderna e, em especial, neste caso, a poesia de Drummond. A articulação da multiciplicidade na unidade é uma questão fundamental para o poeta desde o início de sua carreira e corresponde, creio, a uma necessidade de expressão por sua vez articulada com a experiência histórica do mundo moderno em que lhe tocou viver. O problema é assim muito mais complexo e tem a ver com o mal-estar, a rebeldia e o senso da negação a que se afez seu instrumento de expressão desde o primeiro instante de seu itinerário.
• Drummond reúne o coloquial e o solene. Ao contrário de João Cabral, não eleva à língua falada a uma alta dicção metafórica, mas rebaixa o poético em momentos estratégicos a uma fluência real. A tática de guerra drummondiana é inserir o baixo no alto como elemento surpresa, somente para agravar a violência expressiva?
Também aqui me parece que a mescla de estilos a que você se refere é mais complexa do que parece e não se deixa resumir assim tão prontamente. É preciso examinar cada caso particular, como quase sempre, em poesia. Não há, no meu modo de ver, nenhuma fórmula explicativa do uso drummondiano da linguagem. A necessidade de exteriorizar um sentimento do mundo, com toda sua complexidade, numa forma de linguagem é certamente uma questão central para o poeta e ele é grande poeta porque o conseguiu tantas vezes de modo tão extraordinário, sem fazer concessão a qualquer fórmula intencional ou meio retórico com vistas a um determinado fim. Creio que a relação entre a expressão e a matéria é orgânica, daí que seja percebida como necessária, como a sedimentação concreta na linguagem de uma experiência do mundo. Daí também a força de sua verdade humana.
• Partindo da concepção de Antonio Candido, o senhor aprofunda a tese de que Drummond é antinatural, um construtor verbal, imerso em permanente “luta com as palavras”, bem distinta da espontaneidade e soltura de Manuel Bandeira. A confusão de leitura entre os dois poetas prevaleceu tanto tempo em função de crítica modernista de Mário de Andrade? Esse engano — reduzir os dois a um mesmo comportamento literário — chegou a acarretar efeitos colaterais na produção de seus sucessores na poesia brasileira contemporânea?
Há muitos anos venho trabalhando com a questão da naturalidade em Manuel Bandeira. Meu livro sobre o poeta é, de certo ângulo, uma tentativa de compreender a dialética entre o simples e o complexo em sua poesia. Assim, as diferenças entre Bandeira e Drummond sempre me chamaram a atenção e foram de fato importantes para a formulação do xis do problema drummondiano, tal como eu o entendo. Antonio Candido observou de passagem, a meu ver com exatidão, como a força da poesia de Drummond vem um pouco da sua falta de naturalidade; creio que tem toda razão, mas minha leitura da questão vai numa direção diferente da dele (em alguns pontos, é oposta à dele, como na consideração do Eu e de sua relação com o mundo nos poemas iniciais), pois destaco o que me parece decisivo nisto que é a mediação do pensamento no lirismo drummondiano, ou seja, o movimento da reflexão. A essa raiz romântica se prende, a meu ver o sentimento de não-poder do Eu drummondiano, a falta de jeito que é mais vasta do que isso, pois é a falta infinda que não se preenche nunca e de que a vastidão é um símbolo. Creio que sua pergunta tende a confundir ainda a posição de Mário de Andrade quanto aos dois grandes poetas, que ele soube distinguir muito bem desde o começo — é o que está dito num dos mais notáveis ensaios sobre a poesia brasileira, que é A poesia em 1930 — e creio que não entendi, por isso, exatamente o que você insinua a seguir sobre os “efeitos colaterais” de Bandeira e Drummond nos seus sucessores. O que sei é que Mário, pelo que afirma em carta, não parecia reconhecer em Drummond nenhuma falta de naturalidade, pelo contrário. Mas isto já é outra história.
• O poeta não pretendia transformar a realidade, mas converter a realidade em consciência?
Não creio que Carlos Drummond de Andrade tenha pensado em transformar a realidade com seus versos; é demais para quem tem tanto senso crítico. Limitou-se a exprimir o sentimento que guardou dela: Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo. Por outro lado, é bastante claro o reconhecimento do poder do fazer poético, ainda que trabalho mínimo e degradado, mas capaz de gerar o novo e a seu modo, fazer história. É o que está muito presente numa consciência armada por severo senso de negatividade e inadequação do mundo como é a de Drummond. Em todo caso, a expressão “converter a realidade em consciência” é um modo de formular um movimento característico da imaginação na poética de Wallace Stevens a que me refiro, ao comparar sua posição diante da tradição romântica com a de Drummond.
• Desde sua estréia em Alguma poesia, o escritor revela um cansaço, uma velhice prematura, uma errância. A desilusão inicial permanece por toda sua obra?
Creio que de novo aqui a pergunta me sugere alguma confusão e uma redução do que é o sentimento refletido que exprime o poeta em seus versos. Não se trata de “desilusão”, mas de um verdadeiro pensamento poético sobre nossa condição, o que não se deixa reduzir aos conceitos abstratos de uma filosofia existencial, mas é um sentimento refletido do mundo articulado em palavras, em imagens, em poemas. Desilusão exprime mal a atitude e a complexidade do que se trata desde a abertura da obra até seu final. Infelizmente, já eu mesmo me sinto agora um tanto cansado para tratar de uma suposta “senilità” drummondiana. Vamos parar por aqui. Espero poder escrever outros ensaios sobre poetas contemporâneos brasileiros, depois de terminar um livro sobre ficção e experiência histórica que venho escrevendo há tempos: sobre Guimarães Rosa, Borges e John Ford. Preciso guardar forças para o futuro.