A poesia e seus pontos de fuga

A lucidez crítica de Maria Esther sobressai-se entre os poetas brasileiros
Maria Esther: “Na mesma proporção em que me interesso pelos formalismos, também me deixo fascinar pelo trágico, pelo insólito, pelo estranho”
01/04/2003

A poeta Maria Esther Maciel (Patos de Minas, 1963) encontra-se entre as mais refinadas vozes críticas de sua geração. Não bastasse o valioso currículo acadêmico — doutora em Literatura Comparada, tem criado núcleos de estudos e dirigido revistas na Universidade Federal de Minas Gerais, onde leciona desde 1990 —, é uma aguda ensaísta, como bem mostra o livro As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (1995). Quando nos preparávamos para esta entrevista, ao me falar de seu trabalho atual, encantou-me a paixão com que se refere a ele: “Estou traduzindo textos literários e ensaísticos de Greenaway, que deverão ser reunidos em uma edição bilíngüe a ser publicada no Brasil. Organizei também um livro de ensaios sobre ele. Preparo ainda uma edição ampliada do livro de poemas Triz. E pretendo me dedicar mais intensamente, a partir de agora, à escrita ficcional e à experimentação de modalidades textuais híbridas (ensaio ficcional, narrativa poética e ensaística, poemas narrativos).” Maria Esther tem mesmo essa volúpia da escrita, vive intensamente essa mais realidade que a poesia lhe doa. O trabalho que vem realizando sobre Peter Greenaway, por exemplo, é de grande importância não somente pelo que nos traz de vertentes ainda não de todo assimiladas do trabalho do cineasta inglês, mas sobretudo pelo que lhe permite o diálogo com outras nuances da criação, a exemplo das relações que traça entre cinema e literatura, valendo-se da obra de autores como Georges Perec, Milorard Pavitch, Arthur Bispo do Rosário, Jorge Luis Borges, Italo Calvino, dentre outros — reflexões que permitiram a escritura de um volume de ensaios cuja edição será ainda este ano. Na poesia, é bastante lúcida ao afirmar que a diversidade brasileira é “mais esparsa que localizável em grupos específicos”, além do que sua poética — em grande parte ainda inédita — confirma que não se inscreve em uma corrente que tem praticado o que ela acertadamente chama de “assepsia da imaginação”. Mas vamos à entrevista, na qual tudo isto está colocado de maneira muito mais intensa e adequada.

• Ao escrever sobre tua poesia, Alécio Cunha observou a presença de uma subjetividade que ressalta justamente por não a encontrar mais na tradição poética brasileira. Tal subjetividade se dá em franco diálogo com um destacado sentido de entrega: o eu entregando-se ao outro, essa viagem que mencionas: “viajo ao longe/ do que sou, além/ do meu espanto”. Como chegas ao poema? Com quantas vozes dialogas até que o poema se mostre?
A subjetividade assumida através de um “eu” explícito no poema é, sem dúvida, uma das marcas de minha poesia. No entanto, esse exercício da primeira pessoa não está a serviço da confissão ou de um pacto com a autobiografia. É, antes, uma subjetividade povoada de vários “eus”: os que me constituem, os que imagino e os que forjo a partir da relação com o outro, os outros. Eu diria que, talvez pela força dos influxos que sempre tive da poesia de Fernando Pessoa, venho buscando para minha escrita poética uma espécie de subjetividade oblíqua, muitas vezes contraditória, que se define menos pelas figurações de um “eu” centrado e bastante em si mesmo, do que pelas suas próprias linhas de fuga, polifonias, contrapontos, orquestrações e ritmos. Acredito no “eu” como uma produtividade infinita, uma força criadora de sensações, pensamentos, sentimentos, que são, poderiam ser, nunca foram ou serão meus. Dessa constelação não excluo, é claro, o eu lúcido, o eu que pensa sobre si mesmo e sobre os próprios mecanismos de construção poética. Só que a lucidez que ele traz está sempre assaltada pela presença — ora desejada, ora intrusa — desses outros eus (óbvios e/ou absurdos) que povoam minha voz. Concordo com Alécio Cunha quanto à elipse (ou eclipse?) do eu na poesia brasileira contemporânea, em especial naquela de feição mais construtivista, que parece ser a que ainda predomina em nosso cenário poético. Realmente são muitos os poetas que, ainda sob os imperativos da razão crítica moderna, insistem no exercício de uma impessoalidade asséptica, completamente decantada do vivido ou, como diria E.M. Cioran, quase incompatível com o ato da respiração. O que, a meu ver, já não faz muito mais sentido hoje. Foi uma prática que teve seu momento de esplendor na modernidade, dos românticos alemães a Valéry e João Cabral, foi levada às últimas conseqüências no Brasil pela poesia concreta e acabou por se exaurir pela força de sua própria exacerbação. O próprio Cabral reviu essa prática em um de seus últimos livros, Agrestes, ao se valer de um “eu” explícito para dizer: “Sempre evitei falar de mim,/ falar-me. Quis falar das coisas./ Mas na seleção dessas coisas/ não haverá um falar de mim?// Não haverá nesse pudor/ de falar-me uma confissão,/ uma indireta confissão,/ pelo avesso, e sempre impudor?” Creio que o momento presente não comporta mais oposições excludentes. O pathos lírico — seja como porta-voz ou disfarce da intimidade — pode perfeitamente conviver com a razão crítica, sem se furtar também ao diálogo com várias outras formas de subjetividade. É o que procuro exercitar em minha poesia. E sei que outros poetas contemporâneos também têm buscado isso.

• Como bem propões logo no poema de abertura de Triz (1998) — “escrever […] o rio/ da palavra margem” —, conteúdo e continente não te interessam em separado, o que acaba por estabelecer certa contradição entre o que escreves e o meio em que habitas, aqui salientando tuas referências estéticas, que pendem para uma exacerbação formalista, seja na poética do Concretismo ou na crítica acadêmica de um João Alexandre Barbosa. Se é bem verdade que tua poesia acaba por vencer a contradição, como convives com ela?
Acho importante esclarecer que minhas referências teóricas e poéticas não se circunscrevem ao cânone formalista, embora eu tenha, em momentos específicos de minha trajetória, me entusiasmado bastante com essa linhagem. Não nego meu fascínio pelas construções do pensamento, pelos jogos matemáticos, pela geometria das formas, pela experimentação. Entretanto, o que mais me interessa realmente é identificar nesse exercício do rigor os pontos em que o delírio ou a vertigem emerge, conduzindo a lucidez da construção aos seus próprios avessos. Ou sondar as possibilidades de conjunção entre lucidez e liberdade da imaginação. Daí que minhas verdadeiras referências sejam escritores e/ou pensadores que conseguem praticar habilmente esse jogo paradoxal, como Pessoa, Baudelaire, Kierkegaard, Paz, Borges, Clarice Lispector, Augusto dos Anjos, Murilo Mendes, Cioran, o último Barthes e Maurice Blanchot, dentre outros. Digo que, na mesma proporção em que me interesso pelos formalismos, também me deixo fascinar pelo trágico, pelo insólito, pelo estranho. Para mim seria muito difícil (para não dizer impossível) adotar aquilo que Valéry elogiou em Leonardo da Vinci: “um abismo o faria pensar em uma ponte”. Além disso — e o que vou dizer pode soar anacrônico — acredito que cabe também (ou sobretudo) ao poeta buscar na poesia aquilo que Artaud chamou de “núcleo irrequieto” que as formas não tocam, através do qual se pode captar a vibração, o vivo das coisas. Reconheço que às vezes me desvio mais para desses lados, como no período em que me dediquei ao estudo dos poetas-críticos modernos. Um lado que acabou ficando mais conhecido por causa de livros e textos que publiquei sobre o tema. Mas mesmo aí não deixei de privilegiar os pontos de tensão que constituem o pensamento desses poetas. Creio que meus escritos sobre Octavio Paz, Cabral, Haroldo de Campos, Mallarmé, os românticos alemães, Laís Corrêa de Araújo vão nessa direção. Um outro lado a que me direcionei antes dessa fase “lúcida” foi o dos poetas malditos, tendo escrito um longo estudo sobre a morte na poesia de Augusto dos Anjos. Hoje, mais do que nunca, estou investindo na pesquisa teórica e criativa sobre formas de se extrair o rigor do delírio e o delírio do rigor. Daí eu estar me dedicando ultimamente a Borges, Greenaway e Bispo do Rosário, figuras que, por vias distintas, levam às últimas conseqüências esse jogo. Já no campo específico da criação poética, essa minha opção pela lógica do paradoxo (uma opção bem interna, eu diria que quase que involuntária) é bem visível, não só em termos temáticos como estruturais. E se faz ver ainda na forma como lido com a questão da subjetividade. Como você observou muito bem, não desvinculo forma e conteúdo, dizer e dito, rio e margem, olho e imagem. E isso não é algo que busquei voluntariamente, mas nasceu comigo, com minha poesia, ainda quando eu era uma jovenzinha de treze anos e me pus a imitar Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Altino Caixeta de Castro, poetas que foram medulares para minha descoberta da poesia. Confesso que, por mais que eu tenha tentado, nunca consegui escrever um poema concreto. Talvez por isso eu admire quem saiba fazê-lo com destreza e criatividade. Por outro lado, já tentei escrever poemas longos, atravessados de fluxos e cadeias de imagens. Tampouco fui bem sucedida. E isso talvez explique também meu espanto/encanto diante dos poemas de um Herberto Helder, um Jorge de Lima, um Floriano Martins. Meu espaço poético — estou bem certa disso — é o das tensões, do equilíbrio instável. E pretendo expandir isso para outros campos, através, por exemplo, da hibridização das formas. Valer-me de formas à margem do verso e da estrofe, como a lista, o catálogo, o roteiro cinematográfico, os verbetes de enciclopédia, a narrativa, etc. para escrever poemas é um desafio criativo que estou me dando agora. Sem, para isso, me furtar aos abismos, aos infernos ou à alegria.

• Há uma passagem do Llyfr Coch Hergest, livro essencial da tradição celta, onde se diz que o poeta é enriquecido por três coisas: “os mitos, a faculdade poética, uma provisão de poesia antiga”. Olhando a poesia brasileira que nos é contemporânea, por vezes tenho a impressão de que esses três aspectos desapareceram por completo do universo de interesses de nossos poetas.
Não sei se está muito claro para mim o que vêm a ser precisamente essas três coisas. Estaria essa “poesia antiga” relacionada com o que Octavio Paz chama de poesia em “estado de pureza selvagem”? Ou o antigo aí estaria circunscrito a uma tradição específica? Seria a “faculdade poética” o que Ungaretti, ao tratar da “indefinível aspiração”, chama de “dom”? Ou a palavra teria aqui o sentido de “habilidade” adquirida? Talvez fosse necessário conhecer o livro celta a que você se refere para tentar elaborar uma resposta mais pertinente. De qualquer maneira, as referências aos mitos e à poesia antiga me fazem pensar na idéia de ancestralidade, que remonta às civilizações primitivas. Aquela tradição que colocava a poesia numa esfera ritualística, em um círculo mágico ou sagrado, que o tempo da razão desconhece e não reconhece. Sabemos que muitos poetas, de todas as épocas, tentaram reconstituir poeticamente essa origem impossível que, por ser mítica, é feita do que, não existindo, nos criou — para evocar aqui a mensagem de Pessoa. Alguns, com a ilusão do recomeço. Outros, com a consciência de que o perdido (se é que o que se perdeu já tenha sido possuído alguma vez) só pode ser reinventado pelo trabalho da imaginação, da memória e da releitura criativa da tradição. Assim, se os mitos e a poesia antiga enriquecem o poeta — e não tenho dúvidas quanto a isso — é a relação de cada um com esse legado que vai enriquecer (ou não) a poesia que ele faz. Para mim, os poetas que mais aproveitaram esse legado foram os que seguiram essa segunda via, conjugando o mítico, o analógico, o sagrado com os referenciais que constituem o imaginário e o pensamento do nosso presente. Referenciais estes que, por mais prosaicos, banais, desauratizados, artificiais, não deixam também de enriquecer um poeta. Concordo com você quanto ao desinteresse de grande parte dos poetas brasileiros contemporâneos pelo mítico e pelo antigo, embora isso não possa ser dito de forma generalizada, considerando a grande diversidade poética (mais esparsa que localizável em grupos específicos) do país hoje. Certamente há quem, nos subterrâneos, nas dobras, nas frestas, do cenário poético legitimado, esteja se abrindo a experiências de outra ordem que não a da assepsia da imaginação. No que tange à “faculdade poética”, prefiro compreendê-la como um amálgama entre o “dom” e a “habilidade adquirida”. Tal faculdade é o que leva o poeta ao estado de perplexidade necessário para que a poesia aconteça. Borges já disse, em uma conferência, que a história de um poeta é também a de suas perplexidades. E perplexidade, aqui, tomada nos seus vários sentidos: enredamento de certezas, espanto, assombro, maravilhamento. Creio que é porque nunca consegue resolver o enigma de todos os começos, porque se assombra diante do milagre da palavra, porque se espanta com o acaso ou com o insólito que desorganiza a obviedade do mundo, por saber que todas as verdades são incertas e que a vida não basta, que o poeta escreve e não cessa de escrever. Esse “dom/habilidade” de estar perplexo não é algo que o poeta possa levar voluntariamente para o horizonte de seus interesses. Ou se tem ou não se tem essa faculdade. E quem a tem é porque é verdadeiramente um poeta e sabe que dela não pode prescindir no ato da criação.

• Tua percepção a respeito do assunto foi perfeita. Eu buscava uma livre associação de idéias e reagiste bem, o que reflete uma percepção bastante afiada. Claro que traço um perfil em linhas gerais da poesia brasileira que se mostra, aquela amparada pela maquinaria editorial, jornalística e de circulação em âmbito acadêmico. Eu me referi a universo de interesses de nossos poetas por uma razão simples: um alheamento claro em relação aos aspectos aludidos. Mas concordo contigo, algo lhes escapa, possivelmente a falta de dom. Contudo, indago se essa ausência não é, de certa forma, dissolvida por um preconceito em relação ao tema. Penso no que a argentina Olga Orozco situa como “emoção exaltada da liberdade”, em contrapartida a um pânico diante da perspectiva de perder o controle da emoção. Diante disto, o talento natural não seria levado a calar-se?
Bem, como eu disse na resposta anterior, prefiro tomar o talento natural aliado a uma habilidade adquirida/cultivada através da prática da escrita, das leituras, do aprimoramento do ofício. O “dom” por si só não faz um poeta. Assim como apenas o domínio técnico da linguagem também não garante um belo poema. Sem dúvida, há vertentes da poesia contemporânea que, ainda sob o influxo do racionalismo moderno, colocam a poética acima da poesia, numa obsessiva prática da metalinguagem, aliada a uma explícita aversão à intuição e ao improviso. O que pode levar, certamente, a uma desvitalização do próprio fazer poético. Cabe ao poeta, mesmo na exigência do rigor, também saber errar, abandonar-se à magia do desvio. “Voar para fora da asa”, como diria Manoel de Barros. Ou permitir-se “o encontro inesperado do diverso”, como propôs a portuguesa Maria Gabriela Llansol. O erro, nesse caso, entendido tanto como falha, desacerto, lapso, quanto como a condição do que não pode permanecer em pontos fixos, do que se espalha em várias direções. Por outro lado, a defesa incondicional da “emoção exaltada da liberdade” pode levar ao extremo oposto da primeira diretiva e servir de álibi para uma permissividade fácil no que tange ao manejo dos recursos que a linguagem poética oferece. O que não é o caso, obviamente, de “la hechicera” Olga Orozco, que sabia amalgamar, como poucos, o ímpeto arrasador com a destreza verbal.

• Em uma mesa-redonda com Octavio Paz, que se deu no auditório do jornal O Estado de S. Paulo em 1985, o poeta mexicano observa a inexistência de trânsito entre barroco e surrealismo no México, comenta a falta de percepção de Breton em relação ao barroco e encerra dizendo que não vê “uma relação clara entre barroco e surrealismo”. Estas são as palavras finais do evento, não havendo contestação pelo simples fato de que os componentes da mesa claramente não estavam interessados em discutir a respeito do surrealismo. Contudo, a despeito da inadvertência de Breton, o surrealismo se aclimatou na América Latina em grande parte graças a um convívio com o barroco. De outra maneira não poderíamos discutir a poesia de Emilio Adolfo Westphalen, Enrique Molina, Ludwig Zeller, Vicente Gerbasi, Lorenzo García Vega e tantos outros, em momento algum deixando de incluir o próprio Paz. A que atribuis esse interesse de estabelecer uma não-relação entre barroco e surrealismo?
Creio que a relação entre barroco e surrealismo na América Latina ainda está para ser avaliada com cuidado. Talvez não haja mesmo, como apontou Paz, uma relação clara, explícita, entre essas duas poéticas, mas sim um enlace que, longe de poder ser explicado pelos princípios da periodização literária, se dá a ver por vias mais subterrâneas, porque feito de similitudes dispersas e afinidades em dissonância. Barroco e surrealismo são duas diferentes atitudes diante do mundo — uma traçada pelo embate do sujeito com seus próprios conflitos e tormentos; outra marcada pelo exercício da liberdade em todos os planos da experiência humana — mas que se aproximam pela desmesura dos sentidos, pela ênfase na imaginação como força criadora de realidades fictícias. Já no âmbito propriamente estético, mesmo que sejam duas concepções distintas do fazer poético — uma pautada na prática do artifício, na geometria das formas, nos jogos de engano; outra norteada pelos princípios da descompressão formal e pela espontaneidade de um dizer sem regras — barroco e surrealismo se encontram através da ênfase dada à imagem e à profusão de metáforas, dos efeitos de estranhamento e do gosto pelo maravilhoso e pelo mítico. Até mesmo a dimensão onírica pode ser tomada como um ponto de contato, se pensarmos em um poema como Primero sueño, de Sor Juana Inês de la Cruz, por exemplo, no qual a poeta sonha com o vôo vertiginoso da alma pelos espaços interestelares, em busca do conhecimento universal. Só que o onírico, nesse caso, é um recurso que, ao invés de funcionar como elemento estruturador de uma sintaxe, como acontece na poética surrealista, tem uma função predominantemente alegórica. O que os poetas hispano-americanos a que você se refere fizeram (alguns deles ainda não conheço) foi captar/explorar criativamente esses e outros traços dispersos de similitude entre barroco e surrealismo, explicitando por vias poéticas a relação entre as duas correntes e fazendo-as convergir tanto no espaço textual quanto no próprio cenário poético contemporâneo. No que se refere a Paz, pode-se dizer que ele realiza a convergência no plano da escritura — vide o poema Blanco —, mas curiosamente se furta a adotá-la no âmbito da crítica. No seu monumental livro sobre Sor Juana Inês de la Cruz, por exemplo, não há alusões a um possível entrecruzamento entre a poética de Sor Juana e alguns procedimentos da poesia surrealista (entrecruzamento este já observado por Alfonso Reyes). E se Breton — uma das referências mais recorrentes para as reflexões de Paz sobre a modernidade — entra no livro é apenas para justificar a questão da “metáfora descendente” no poema Primero sueño. No Brasil, o não reconhecimento dessa convergência barroco/surrealismo pode ser justificado, sim, pelo pouco interesse dispensado pela maioria dos poetas e críticos brasileiros ao surrealismo, que continua sendo — como você muito bem já observou — uma espécie de não-capítulo da nossa historiografia literária. Percebe-se uma clara resistência à poesia surrealista no Brasil. Talvez porque muitos ainda tendam a limitá-la à prática da escrita automática — vista como um mero dispositivo de facilidades e concessões — e não a reconhecem como uma visão de mundo, pautada em formas alternativas de sensibilidade e no exercício poético da liberdade e da imaginação. Entretanto, quem levantou a questão sobre possíveis relações entre o barroco e o surrealismo na América Latina para Octavio Paz durante a tal mesa-redonda foi um poeta brasileiro, Décio Pignatari. Aliás, foi a única pergunta que ele fez a Paz naquela noite. Ele fala, inclusive, de uma “vinculação, não apenas estética e cultural, mas ideológica” entre o barroco e o surrealismo, o que não deixa de ser bastante instigante. Pena que a discussão não tenha seguido adiante.

• Decerto que Pignatari já havia observado em Paz a mesma ausência que destacas na abordagem de similitudes entre Barroco e Surrealismo, não esquecendo aqui de considerar sua mudança de postura em relação ao Surrealismo a partir de um dado momento. Em artigo publicado na revista USP, número 36 (1998), Pignatari volta a tocar no assunto, cometendo dois deslizes: exemplifica apenas com prosadores o diálogo da literatura hispano-americana com o Surrealismo e afirma que “a fragilidade pensamental de André Breton e sua pobre consciência ou inconsciência de linguagem transformaram a chamada escrita automática no ponto central e nevrálgico do surrealismo”. Tenho insistido que a grande poesia hispano-americana é justamente a que soube lidar com essas similitudes aqui apontadas. Recordo que Breton já afirmava, em 1935, que o automatismo jamais constituiu um fim em si, alertando para a má-fé de quem recorra ao mesmo para minimizar a importância do Surrealismo. Me parece que o Brasil vive um duplo infortúnio: os negócios entre as coroas espanhola e portuguesa nos privaram de uma relação mais intensa com o Barroco; os negócios de um racionalismo frustrado infiltraram em nossa alma um medo pânico da perda de consciência, o que nos impede a busca de mais consciência. A “contribuição milionária de todos os erros”, defendida por Oswald de Andrade, converteu-se em tola retórica. De que maneira vês reagir a tradição lírica brasileira em face desse histórico escolar?
Ainda não conheço o texto de Décio Pignatari, o que me desautoriza a fazer comentários sobre ele. De qualquer forma, percebe-se realmente uma tendência geral de se reduzir o surrealismo à prática da escrita automática. Prática aliás que, da maneira como foi concebida, não deixa de ser de uma extrema exigência, por demandar um desprendimento quase impossível do sujeito em relação aos apelos do mundo exterior, aos imperativos da vida utilitária. Esse seu caráter de quase impossibilidade confere-lhe, inclusive, um fascínio especial. É certo que o automatismo teve um peso considerável nas primeiras definições que Breton fez do surrealismo. Mas o que se depreende do conjunto de princípios que norteou o movimento é algo muito mais amplo e complexo. Isso, porque o Surrealismo, longe de ter sido meramente uma estética, foi também uma atitude vital dos poetas e artistas frente à sociedade e aos dogmas da civilização ocidental. Como bem o definiu Buñuel, o seu objetivo principal não era criar uma nova escola literária, artística ou filosófica, mas fazer “explodir a sociedade, mudar a vida”. O surrealismo possibilitou o surgimento de um “modo” alternativo de sentir, de pensar, de olhar, de viver, pautado sobretudo no poder da imaginação. Um modo que ainda perdura, com grande vitalidade, em alguns contextos poéticos do presente, como o da América Hispânica e o de Portugal. Mas que no Brasil, como eu já disse, se faz ver por vias mais subterrâneas. Agora, não concordo com idéia de que o Brasil seja infortunado pelo fato de sua poesia ter passado por uma história diferente. De fato existe um medo pânico, entre alguns poetas, da perda de consciência. Mas a consciência não impediu que poetas como Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, João Cabral, Murilo Mendes, Manoel de Barros, Hilda Hilst — só para mencionar alguns dos mais conhecidos — exercitassem com vigor os poderes da imaginação.

• Recordo aqui uma voz que me é bastante lúcida, a de Milan Kundera, ao referir-se à “feliz imprevisibilidade que é a fonte da poesia”, e o faço movido por um cenário bastante previsível que encontramos hoje nas relações entre arte e poder, arte e mídia, arte e mercado. O próprio Kundera já havia atentado para uma perspectiva de mudança social que não fosse além de uma tática de permanência da imutabilidade. Em que nos convertemos os intelectuais deste nosso tempo?
À citação de Milan Kundera eu contraporia uma outra do poeta português António Ramos Rosa, que diz: “escrever é manter vivo o frescor da surpresa”. Não creio que a previsibilidade ou a imprevisibilidade das coisas defina a poesia ou se torne fonte para esta. O maior desafio para um poeta é exatamente extrair o frescor das coisas previsíveis. De fato — e o que vou falar pode soar um déjà vu — vivemos em um mundo de clichês, no qual perdemos aos poucos a capacidade, como diria Italo Calvino, de pôr em foco visões de olhos fechados, de sentir e pensar com a imaginação. A vida passou a ser medida por meio da lógica do consumo, dos pregões das bolsas de valores, das balanças e dietas, das fórmulas de auto-ajuda, do aqui agora edulcorado das propagandas de televisão. Buscar nesse cenário uma fonte de poesia é a difícil tarefa dos poetas de nosso tempo. Há os que sucumbem à lógica imperante em busca de um reconhecimento a todo custo e os que desistem de tudo por achar que o mundo não os merece; mas há felizmente os que atuam nas frestas e nas dobras desse processo, insistindo em manter vivo no mundo — por meio da poesia — o fulgor do imprevisível. Para estes, é necessário ter inegavelmente uma provisão de utopia, uma utopia possível para este tempo sem futuro: aquela que se configura menos como projeto do que como desejo. No que se refere especificamente aos intelectuais, concordo com Octavio Paz, quando este diz da necessidade de se reabilitar o espírito crítico em nosso tempo. Sem crítica não há mobilidade do pensamento. E não se confunda crítica com a desqualificação sumária do outro, com a intolerância. O exercício crítico requer também a responsabilidade ética de entender a lógica do outro, para então colocá-la em crise, evidenciar suas contradições e fragilidades. Algo que precisa ser mais exercitado por nós, intelectuais do presente.

• Há um artigo do Diogo Mainardi (Veja, 05/02/2003) em que observa a ausência de interesse dos escritores brasileiros pela realidade, na verdade uma inescrupulosa relação com a mesma. Denota falta de princípio, claro. O exercício da alteridade que mencionas raramente tem sido praticado entre nós. A idéia de reabilitar o espírito crítico em nosso tempo defendida por Paz deveria começar por ele mesmo, como exercício de autocrítica, mas se pensamos em nosso país, por onde começaríamos?
Acho que começaríamos por lamentar que uma das maiores revistas de nosso país se preste a promover um franco-atirador como esse que, no artigo a que você se refere, simplesmente desqualifica, “detona” a relação de Drummond com a realidade política internacional, pelo fato de, no índice onomástico do livro que traz sua correspondência com Mário de Andrade, não constarem os nomes de Hitler, Stalin e Mao Tse Tung. Uma coisa é não gostar de um poeta e questionar sua canonização; outra é difamar sua conduta ética, com base em argumentos falaciosos e irresponsáveis como os que nos são apresentados no tal artigo (que só fui ler porque você citou na pergunta). Quem conhece a biografia de Drummond e leu livros como A rosa do povo e Sentimento de mundo sabe muito bem do que estou falando. Nem é preciso gostar da poesia que ele fez. Definitivamente, não é essa espécie de exercício crítico dogmático, pautado no que chamei de “desqualificação sumária” do outro, que defendo quando falo de reabilitação do espírito crítico em nosso tempo. Mesmo que eu não concorde com a postura política assumida pelo último Octavio Paz, nunca deixei de admirar sua lucidez crítica (e autocrítica) enquanto poeta e intelectual preocupado com questões de toda ordem, seja estética, seja cultural e até mesmo política (penso aqui num livro como Posdata e em alguns ensaios, ainda bastante atuais, que escreveu sobre a política externa dos EUA). Além de demonstrar um grande domínio sobre as matérias de que se ocupou, Paz não se absteve de reavaliar as próprias idéias, reescrever e corrigir seus textos, revisar sua própria história. À parte os equívocos ou acertos que possa ter cometido em sua trajetória intelectual, não dá para negar que ele tenha nos deixado o exemplo muito vivo de um crítico não-ensimesmado, aberto ao diálogo e consistente em suas argumentações.

• Em teu livro Triz (1998), há um capítulo que me chama a atenção, “Ponto de fuga”, por certa ruptura ali empregada em relação ao que se convencionou chamar de poema visual. O poema traz em si uma dor, uma relação visceral com a morte do pai, ou seja, relaciona-se com o mundo, mesmo recorrendo a um tratamento de linguagem cuja tônica tem sido o alheamento ou prática inconseqüente de jogos semânticos. Como se dá teu diálogo com poetas de tua geração? Trocam cartas, se falam por telefone, pela internet? Discutem poemas entre si?
Logo após a morte de meu pai, eu quis fazer-lhe uma homenagem. Mas uma homenagem que, sem prescindir do pathos, pudesse se furtar ao sentimentalismo, ao puro exercício das lágrimas. Naquele momento não havia fingimento possível para a dor que eu sentia. Cabia-me, então, desviá-la de sua obviedade, de seus excessos. A idéia de me valer dos eletrocardiogramas surgiu quase por acaso. Quando os encontrei em meio aos guardados recentes de meu pai, percebi que naquelas tiras de papel havia uma escrita, um ritmo. Em cada linha, um verso. Aí resolvi explorar as possibilidades dessa linguagem do coração, conjugando-a com as minhas próprias palavras e com a imagem figurativa (biológica) do órgão, acompanhada de sua taxonomia. Eu queria exaurir o signo coração, em suas várias figurações e transfigurações. Dessa forma surgiu toda aquela parte visual do livro, em que enlaço o experimentalismo à experiência, os jogos semânticos à expressão do visceral. Mais uma evidência de meu apreço pelo paradoxo, pelo “encontro inesperado do diverso”. Dentre os poetas de minha geração, creio que Fabrício Marques, Reynaldo Damazio e Alécio Cunha foram os que mais perceberam e respeitaram isso em minha poesia. Talvez pelo fato de também transitarem nessas zonas de interseção, de fronteiras. São poetas independentes, abertos aos vários campos expressivos. Embora eu tenha muitos amigos poetas e conviva com vários no meu espaço profissional, curiosamente não cultivo muito o hábito de discutir meus poemas com eles, de trocar cartas e e-mails específicos sobre poesia. Isso se dá apenas de forma esparsa e circunstancial. Ainda assim, eu poderia citar alguns interlocutores um pouco mais assíduos. Além dos três poetas a que me referi acima, eu mencionaria um colega, Luís Alberto Brandão Santos, que considero um dos escritores mais criativos de minha geração. Chegamos a criar, no ano passado, o TransVerso, um fórum de criação e estudos poéticos dentro da UFMG, com o propósito de abrir, na aridez do universo acadêmico, um espaço alternativo de invenção. Luís tem uma grande ousadia intelectual e isso me estimula a trabalhar com ele em novos projetos. Tenho mantido também um diálogo interessante com o mato-grossense (radicado em Florianópolis) Sérgio Medeiros, poeta nonsense, híbrido, que está sempre buscando formas diferentes para sua poesia. Mantenho ainda uma saudável cumplicidade com a poeta cubana Carlota Caulfield, descendente de irlandeses e que vive na California. Eu a conheci em Londres, em 1999, e desde então temos estado em contato. Ela é uma poeta exuberante, intensa, inventiva, com um domínio impressionante da linguagem. Tenho muitíssimo o que aprender com ela. Sinto que ela me “desintoxica” dessa exigência de lucidez que às vezes me atormenta…

• Ao final de uma carta destinada ao mexicano Xavier Villaurrutia, o peruano César Moro, lamentando argumentos que buscam justificar “a prodigiosa bestialização da vida humana”, conclui: “esse mundo não é o nosso”. Independentemente do lugar-comum que faz de todo poeta um pária em qualquer sociedade, eu te pergunto: este mundo é o teu?
Sim, apesar da “prodigiosa bestialização” e de toda a barbárie que o define. É a este mundo que estou ligada pela força de gravidade do corpo e é dele que extraio a matéria-prima para a minha poesia. Por maior que seja minha discordância com seus imperativos ou meu encanto pelos mundos impossíveis.

Floriano Martins
Rascunho