A pena e o giz

Entre o ensino e a literatura, Domício Proença Filho consolida sua obra unindo duas paixões da infância
Domício Proença Filho, autor de “Muitas línguas, uma língua”
01/08/2018

Domício Proença Filho era ainda adolescente quando ganhou seu primeiro aluno de português e latim. A história de dar aula começou quando um colega recém-chegado à escola precisou de um apoio didático. O pai do menino recorreu a Domício, que aceitou de pronto o desafio de ensinar. Com o bom desempenho do pupilo, o mais novo professor do internato preencheu todos os seus horários da noite com tutorias particulares e decidiu que queria ser professor para o resto da vida.

O apreço pela literatura dava um tom mais específico a este sonho — apontado para as palavras. A partir do primeiro contato com poemas de Olavo Bilac que precisavam ser decorados e declamados no curso primário, o carioca se embrenhou estante adentro e nunca mais parou de ler. “Escrever deve ter sido uma consequência natural desses nutrientes do meu imaginário e do prazer. Até porque os primeiros poemas, confessionais, é claro, começaram a brotar na adolescência”, lembra.

De página em página, Domício traçou uma densa trajetória acadêmica e literária. Aos 82 anos, tem dezenas de obras publicadas (de cunho literário, didático e de pesquisa) e é membro da Academia Brasileira de Letras, tendo sido o segundo presidente negro da instituição — o primeiro foi Machado de Assis. Além disso, é livre-docente em literatura brasileira, professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante da Academia Brasileira de Filologia.

Entre bibliotecas e salas de aulas, Domício produz, além de poesia e ficção, trabalhos que debatem o ensino e a compreensão do texto, a exemplo de Leitura do texto, leitura do mundo, e elaborados trabalhos de pesquisa como Muitas línguas, uma língua, que conta, em mais de 600 páginas, a história do português brasileiro.

Em entrevista ao Rascunho, Domício partilha suas visões sobre o ensino de literatura e língua portuguesa e a nova literatura nacional. O autor de Dionísio esfacelado, obra poética que resgata aspectos da cultura quilombola, e Capitu — Memórias póstumas, que conta Dom Casmurro sob a ótica da esposa de Bentinho, também comenta acerca do apelo identitário que impera nas publicações recentes tanto no que tange às produções literárias quanto no que se refere à crítica.

• Você se realiza mais como escritor ou professor?
Nas duas atividades. O professor ocupou mais espaço, até a aposentadoria como titular da UFF, depois de 38 anos ininterruptos de magistério. Sobretudo porque me dividi entre língua portuguesa, literatura brasileira, teoria literária e, durante aproximadamente 12 anos, língua e literatura espanhola e hispano-americana. Houve tempo em que dava 12 horas por dia de aula, em cursos de nível médio e superior. Paralelamente, nas horas de lazer, escrevia poemas. Levei 10 anos com um livro até decidir publicar. O crítico, por dever de ofício, do texto alheio sempre foi extremamente exigente com seu próprio texto. E como comecei com livros didáticos de alguma presença, sempre que procurava um editor para a poesia, este recebia bem: o texto é ótimo, mas será que você não tem um livrinho didático para me oferecer? As narrativas curtas e o romance vieram aos poucos. Mas confesso que me divido bem em termos de realização.

• Em Muitas línguas, uma língua, você apresenta a transformação do português brasileiro desde a chegada do colonizador europeu e mostra o caráter social e elástico da língua. Que mudanças significativas acontecem hoje no idioma?
A língua acompanha a dinâmica do processo cultural em que se insere. Assim situada, vive em contínua mudança. Como somos contemporâneos das alterações que ocorrem no idioma na atualidade, fica difícil identificá-las. Exigem o rigor da pesquisa, para serem devidamente configuradas. Sobretudo num universo linguístico multifacetado como o que caracteriza o uso do idioma que falamos. Evidenciam-se, entretanto, alguns aspectos, notadamente relacionados com os meios de comunicação de massa e as novas tecnologias da informação e da comunicação, em destaque, a internet e as mensagens via veiculadores eletrônicos, com textos curtíssimos, como os tuítes, rapidez nos enunciados, redução na representação gráfica dos vocábulos e muitos outros.

“O crítico é um leitor de olhar armado, atento à mudança dos rumos da cultura.”

• E qual a influência deste panorama na literatura produzida no Brasil nas últimas décadas?
A literatura é uma arte que tem a língua como suporte, mas envolve características bem mais amplas e complexas. A linguagem literária, por exemplo, é eminentemente conotativa. No texto de literatura configura-se, entre outros aspectos, não uma verdade de correspondência, mas uma verdade de coerência. Possivelmente as mudanças no uso do idioma levem a alguma influência nos textos contemporâneos e se verifiquem alguns reflexos na chamada infopoesia, no exercício da micronarrativa. Mais uma vez, entretanto, só a leitura crítica de um número estatisticamente representativo de obras do nosso tempo poderá autorizar conclusões fundamentadas sobre essa influência. Como não considero significativo o número de obras brasileiras contemporâneas que foram objeto de minha leitura até o momento, prefiro não arriscar juízos impressionistas, a partir de uma ou outra experiência isolada.

• Em Leitura do texto, leitura do mundo, você fala da língua como prática social. Esse tipo de abordagem tem sido cada vez mais comum nas salas de aula, não é?
É verdade. Entendo, como escrevi no livro, que viver é compartilhar discursos. A língua que falamos é o nosso principal meio de comunicação. É a forma de linguagem em que melhor se concretiza a interlocução e esta se concretiza no âmbito do convívio com o outro, com o qual convivemos no mundo. É a linguagem de uma comunidade. Possibilita a representação do pensamento e da ação de cada um e dos outros, serve para comunicar ideias, pensamentos, sentires, intenções de diversas naturezas e, desse modo, estabelecer relações interpessoais. Esse entendimento vem ganhando presença na escola, não apenas como uma tendência do nosso tempo, a tal ponto que integra recomendação dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

• Embora a ideia de que a linguagem deva ser entendida para além de um conjunto de normas, ainda há professores e instituições que insistem na cartilha da gramática normativa para ensinar português, sem apostar em uma reflexão crítica. Como se saber gramática fosse saber a língua. Quando você acha que isso vai acabar de vez?
Essa é uma questão que envolve, há algum tempo, a querela entre gramáticos e linguistas. O problema é a resistência à reflexão crítica. Numa perspectiva linguística, coexistem, no universo multifacetado da comunidade brasileira, normas de três naturezas: a norma de congruência, pautada no que é “apropriado” ou “inapropriado”; a norma de correção, apoiada na gramática normativa, tradicionalmente associada ao registro formal; a norma de adequação, relacionada com o que pode ir além do que já se encontra criado na língua. Entendo que são princípios que não se contrapõem, antes se complementam. O usuário do idioma é, obviamente, livre para falar como quiser ou como puder. Para certas circunstâncias do convívio social, entretanto, a sociedade brasileira exigiu e segue exigindo a adoção do citado registro formal. Sobretudo na língua escrita. Essa situação decorre da relação histórica estabelecida entre os estamentos sociais. Não dominá-lo implica, frequentemente, certo preço social. O novo e relevante é a diminuição da presença da perspectiva preconceituosa, coercitiva e estigmatizante. O que se revela ultrapassado por ineficaz é o centramento na gramática descritiva e a superposição às demais da norma de correção. O importante é adequar a fala à situação de fala. Os Parâmetros Nacionais Curriculares, salvo mudança em contrário, são, a propósito, esclarecedores. O tempo, senhor da razão, situa-se como o definidor do necessário entendimento entre linguistas e gramáticos.

• No meio acadêmico, vemos um aumento cada vez maior do interesse por obras literárias com apelo identitário, no intuito de resgatar vozes periféricas, com a de mulheres, negros, e LGBTs. Como isso tem transformado o nosso cânone e o direcionamento do mercado editorial?
A presença de obras literárias dessa natureza vincula-se a uma circunstância emergente há algum tempo, no Brasil e no exterior: a assunção de movimentos de afirmação de identidade cultural desses segmentos da sociedade unidos por determinados traços singularizadores, sejam de caráter físico, social ou cultural. Sem prejuízo de seu pertencimento à sociedade que integram, no nosso caso, a brasileira. Inscreve-se na dinâmica do processo cultural em que se insere. E em alguns casos, as vozes que se dizem perdem contornos de periferia diante dos contingentes populacionais que representam. O cânon abre-se, por sua própria natureza, às manifestações do novo, para além dos que imaginam delimitá-lo. O mercado editorial, por razões óbvias, permanece atento ao potencial econômico da produção das obras significativas e pronto a abrigá-las.

“A democratização da literatura envolve outros espaços, entre eles o da educação e do cultivo do hábito da leitura.”

• Como estas transformações têm sido recebidas e discutidas pela Academia Brasileira de Letras?
A ABL é uma instituição que associa tradição e modernidade. Casa da memória, abre-se ao novo. Mesmo porque abriga entre seus integrantes escritores contemporâneos em plena atividade, representativos das mais variadas tendências.

• É possível dizer que, nesse sentido, estamos superando a crítica literária altamente formalista e elitizada? Caminhamos para uma maior democratização da literatura?
A crítica literária necessariamente se insere na dinâmica do processo cultural. Fundada na interpretação, pauta-se por distintos enfoques. Segundo entendo, permitida a assunção do contraditório, há muito deixou de limitar-se a dimensões formalistas e elitizadas. Basta a ênfase nas relações entre literatura e história, a relação com a sociologia, e, em especial, a perspectiva cultural na leitura dos textos. Afinal, o fenômeno literário se realiza na relação autor, texto, leitor. O crítico é um leitor de olhar armado, atento à mudança dos rumos da cultura. A democratização da literatura envolve outros espaços, entre eles o da educação e do cultivo do hábito da leitura.

• Dionísio esfacelado faz um bonito resgate da cultura quilombola, evocando símbolos tão esquecidos ou desconhecidos da nossa história que demandaram uma espécie de glossário ao fim da obra. De que maneira essa nova literatura, mais engajada e preocupada com questões identitárias, tem ajudado a reescrever a memória do povo brasileiro?
Em primeiro lugar, obrigado pelo afago ao ego do autor. Obras dessa natureza são hoje, felizmente, significativamente numerosas na literatura brasileira. Contribuem, de fato, para a reescrita da memória do nosso povo. Cumprem uma das funções tradicionalmente inerentes à arte literária: restaurar emocional e criticamente o passado. Insere-se entre as produções literárias que evidenciam a representatividade histórica e social dos citados segmentos emergentes na sociedade brasileira, no caso, a presença e a participação do negro na formação do Brasil, importante para a afirmação da identidade cultural da etnia.

• Em Capitu — Memórias póstumas, com a visão da mais famosa personagem de Machado de Assis, você compõe uma narrativa em primeira pessoa de uma mulher difamada na voz de um homem do século 19. Voltando a uma das mais controversas polêmicas da literatura nacional: até que ponto o olhar de Bentinho sobre a esposa nos fala sobre misoginia (termo muito debatido mais de um século depois do lançamento do livro)?
Mais do que misógino, pode-se depreender do texto narrativo que uma das características do Dr. Bento Santiago é uma neurose doentia, próxima da esquizofrenia. Na verdade, mais do que isso, trata-se de uma figura enigmática como Capitu, ainda que em menor escala. O que me parece mais relevante é o alto índice de universalidade e de ambiguidade do romance, aberto a uma pluralidade de leituras, a tal ponto que permanece marcado de atualidade. É bastante lembrar os múltiplos temas que evidencia, entre eles, para citar alguns, o adultério, o ciúme, a fratura do resgate, a ditadura da aparência.

 

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Muitas línguas, uma língua
Domício Proença Filho
José Olympio
672 págs.

 

Leitura do texto, leitura do mundo
Domício Proença Filho
Rocco
272 págs.
Dionísio esfacelado
Domício Proença Filho
Autêntica
192 págs.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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