A paciente construção do edifício

Após 15 anos sem publicar romance, o baiano Antônio Torres volta com "Querida cidade", uma história sobre busca e autoconhecimento nascida de um sonho
Antônio Torres, autor de “Trilogia Brasil” (Foto: Guilherme Goncalves)
01/12/2021

Livros de longa gestação não são raros na literatura. James Joyce levou quase uma década para finalizar Ulysses. Paulo Leminski foi visto durante anos carregando pra cima e pra baixo os manuscritos do que viria a ser seu romance experimental Catatau. O baiano Antônio Torres empreendeu jornada parecida com Querida cidade, lançado após 15 anos de espera e que chega agora aos leitores pela Record.

O livro, diz o escritor, nasceu de um sonho, assim como anos antes havia lhe ocorrido a história de Um táxi para Viena d’Áustria, romance publicado em 1991. “Eu acordava no último andar do edifício mais alto de uma cidade encoberta pelas águas”, explica Torres sobre o sonho que o levou ao Querida cidade. “Foi, portanto, essa imagem — a do reflexo de um homem no espelho das águas, muito bem captada pelo autor da capa do livro, Leonardo Iaccarino — o ponto de partida do romance.”

Com 12 romances, Torres enfatiza que no processo de escrita, deixou se “levar pelas águas do tempo numa boia que eu chamaria de a dialética do discurso ficcional: palavra puxando palavra, história trazendo histórias”.

É uma explicação bastante crível para o livro, cuja linguagem traz a nítida impressão de ter sido burilada com exaustão. O início mais enigmático, com passagem poéticas, pode assustar o leitor menos afeito a experimentos literários. Mas aos poucos o autor une narrativa e linguagem numa coisa só.

Trata-se da história de um personagem e uma cidade sem nomes. Vindo do interior, ele tenta superar obstáculos do cotidiano — a sobrevivência na cidade grande, a formação precária, etc. — e fantasmas que pairam em sua alma. O romance é todo construído assim, em uma espécie de embate entre a vida que levamos no dia a dia e a vida interna, da qual ninguém mais tem acesso, a não ser quem a vive.

“A longa e paciente construção da narrativa dessa Querida cidade deveu-se exatamente ao fato de o seu autor não ter na cabeça a mínima ideia de como iria desenvolvê-la”, explica Torres, que é imortal da Academia Brasileira de Letras. “Foi como construir um edifício sem um projeto arquitetônico, mas que, tijolo a tijolo, acabou por ficar de pé.”

Nascido em Sátiro Dias, na Bahia, Torres rodou o mundo por conta dos livros que escreveu. Na década de 1960 viveu três anos em Portugal e visitou universidades na Europa e nos Estados Unidos. Após décadas no Rio de Janeiro, se autoexilou em Itaipava, região serrana fluminense. Sobre esse percurso literário, que em 2022 completa 50 anos, Torres conversou com o Rascunho.

Seu último romance havia sido Pelo fundo da agulha, de 2006. Por que esse “silêncio” tão grande?
Porque o processo de escrita de Querida cidade me pediu tempo. Frase a frase, parágrafo a parágrafo, página a página me vinham aos ouvidos a tradução que Augusto de Campos fez de um minipoema de Boris Pasternak, O dom da poesia, ao qual eu tanto recorri nas oficinas literárias que conduzi em tantos lugares. Então fui sendo levado por isto: “Deixa a palavra escorregar,/ Como um jardim, o âmbar e a cidra,/ Magnânimo e distraído,/ Devagar, devagar, devagar”. No princípio, a lentidão com que o texto ia saindo me angustiava. Até me perguntar se essa vagareza não acabaria por ser benéfica para o cômpito geral do romance. Agora, cabe à querida leitora e ao caro leitor dizer se tal graça foi alcançada. Ou não.

• O quanto desses 15 anos foi dedicado ao Querida cidade?
Algo em torno de 12 anos. Mais precisamente, de 29 de agosto de 2009 ao final de fevereiro deste 2021, o mês em que fiz os polimentos linha a linha em vários capítulos, me lembrando do tempo em que minha mãe ficava horas e horas a passar um pente fino nos cabelos das minhas irmãs, para tirar-lhes as lêndeas. E nisso acabei ficando com vontade de passar o resto da vida a pentear essa Querida cidade para deixá-la irretocável, linda de morrer (risos).

O livro mais recente retoma alguns elementos presentes em sua obra, como a questão do êxodo (autoexílio) e uma certa dicotomia entre o ambiente rural e urbano. De alguma maneira, Querida cidade faz uma síntese de seu trabalho literário, após décadas escrevendo?
Não tive essa intenção. Mas é aquela história: o autor propõe, e o teclado dispõe. Querida cidade é o segundo dos meus romances escrito a partir de um sonho. (O outro foi Um táxi para Viena d’Áustria, de 1991). No primeiro, sonhei que matava um amigo com dois tiros num apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro, jogava a arma na lixeira, descia correndo pelas escadas do edifício número 3 da Rua Visconde de Pirajá, e entrava num táxi para fugir da polícia. Na realidade, acabei indo parar no divã de uma psicanalista, quatro vezes por semana, durante quatro anos, querendo entender que violência era aquela que carregava dentro de mim. No segundo, eu acordava no último andar do edifício mais alto de uma cidade encoberta pelas águas. Foi, portanto, essa imagem — a do reflexo de um homem no espelho das águas, muito bem captada pelo autor da capa do livro, Leonardo Iaccarino — o ponto de partida de um romance, no qual me deixei levar pelas águas do tempo numa boia que eu chamaria de a dialética do discurso ficcional: palavra puxando palavra, história trazendo histórias. Nisso, claro, acabei por revisitar cenários de outros dos meus romances, vistos agora como um feixe de imagens batidas pelo sol, pela chuva, pelo tempo. Mas é aquela (outra) história: quando um autor tenta explicar o seu livro, corre o risco de limitá-lo.

O livro inicia de uma maneira bastante enigmática, com uma linguagem às vezes cifrada que lembra as narrativas elípticas do irlandês Samuel Beckett, com as informações sobre os personagens sendo soltas de forma gradual. Como pensou a narrativa do livro?
A longa e paciente construção da narrativa dessa Querida cidade deveu-se exatamente ao fato de o seu autor não ter na cabeça a mínima ideia de como iria desenvolvê-la. O que aconteceu foi um caso que confirma o dito de que o caminho se faz ao andar (copyright para o poeta espanhol Antonio Machado). Foi como construir um edifício sem um projeto arquitetônico, mas que, tijolo a tijolo, acabou por ficar de pé.

E por que optar por personagens e lugares sem nome?
Porque na mente do protagonista da história, se tudo à sua volta virou água, os nomes já não importavam.

Ainda que o livro proponha esse jogo narrativo de luz e sombra para o leitor, você não abandona o enredo, e após o primeiro terço do livro, a narrativa fisga o leitor com subtramas que começam a aparecer, histórias correlatas. A literatura, no final das contas, ainda é contar uma boa história?
Agora você me leva de volta ao ano de 1995, quando o professor Giovanni Ricciardi, da Universidade de Nápoles, me convidou para uma série de atividades na Itália, por causa do lançamento da tradução de Essa terra (Questa terra), para a qual ele havia escrito um posfácio. A programação para Roma incluía uma palestra na La Sapienza, onde um aluno me perguntou como eu via o futuro do romance. Respondi-lhe que talvez o que esse velho mundo estivesse precisando era de uma boa e velha história bem contada. Ao final, o meu anfitrião naquela universidade, o professor Ettore Finazzi-Agro, me convidou para o almoço, durante o qual me surpreendeu com uma quase conferência sobre aquele meu improviso, dando-lhe uma importância que o colocava bem acima de uma frase de efeito. Na volta, eu viria a retomar um romance que empacara no quarto capítulo (O cachorro e o lobo). Bastou escrever isso: “Num tempo em que este mundo velho era povoado por contadores de histórias, um galo cantando fora de hora já era o começo de um romance — de amor”. E aí a história andou. Conto-lhe isso para concordar com a sua pergunta, mas deixando a questão em aberto. Afinal, o que enriquece a literatura é o estilo de cada autor/a.

O seu livro de 1976, Essa terra, é marco na sua carreira e apontado como um dos grandes romances brasileiros da segunda metade do século 20. Como é, para o autor e sua carreira, ter um livro de grande sucesso, com seguidas edições e traduzido em muitas línguas? Um sucesso pode “pressionar” o autor e representar um fardo para o futuro? Como você lidou com isso?
Os livros que publiquei depois do Essa terra até que aguentaram firmes o peso desse fardo que você aponta. O romance que o seguiu, por exemplo (Carta ao Bispo, de 1999) foi muito bem recebido pela crítica, como o meu baú de recortes comprova. Uma delas, publicada no Jornal do Brasil, tinha esse título: “Sucessão e superação”, o que, no contexto do seu questionamento, fica claro o que se quis dizer com isso. Permita-me lembrar os desempenhos, até agora, de outros dos meus títulos: Meninos, eu conto (15 edições), Meu querido canibal (13 edições), Um táxi para Viena d’Áustria (9 edições), O cachorro e o lobo (6 edições), O nobre sequestrador (5 edições), Pelo fundo da agulha (4 edições). O resto o tempo dirá. Ou não.

Você sempre fez questão de citar a influência do jazz como determinante na sua escrita. A música ainda rege sua literatura?
Parodiando um gigante do jazz chamado Miles Davis, diria que literatura é música que se pode ler e música é literatura que se pode ouvir.

Seu primeiro livro, Um cão uivando pra lua (1972), foi recebido com muito entusiasmo, e você saudado como a nova revelação da literatura brasileira. Aí, logo em seguida, vem seu livro mais festejado, Essa terra. Isso foi determinante para sua carreira?
O determinante para mim foi haver estreado com um romance que causou impacto tanto na crítica quando no público, já lá se vai quase meio século. Todo o espaço que eu viria a ter iria se dever a Um cão uivando para a lua, que logo na primeira resenha foi chamado de “a feliz estreia” (Aguinaldo Silva, no jornal Opinião — São Paulo, 18 de novembro de 1972). No embalo, publiquei Os homens dos pés redondos (1973), que não deixou a peteca cair. Passos adiante, chegou o Essa terra mandando cessar tudo que a (minha) antiga musa cantava. E cá estou, chegando ao 12º romance. Pas mal, como se diria em baianês.

O livro mais vendido de ficção brasileira dos últimos anos é Torto arado, do seu conterrâneo baiano Itamar Vieira Junior. Para você, qual seria a força motriz da literatura e autores da Bahia? Se é que acredita em algo que diferencie os autores que surgiram lá…
Que bom que você abriu aqui uma janela para uma espiada no que é que a Bahia tem de novo nas letras. Ponto para o sucesso de Itamar Vieira Junior, salve ele! Sim, faz-se por lá, hoje, uma literatura bem diversificada, que passeia, com muita desenvoltura, do litoral aos fundões do sertão, da Chapada Diamantina ao Recôncavo. Outro dia li um poema de uma autora chamada Hitxá Pataxó (pseudônimo: Adriana Pesca), de Santa Cruz de Cabrália, no extremo sul do Estado, que começa assim: “De quantos Brasis a história é feita? De quantas histórias é feito o Brasil?”. Não são poucos os autores baianos que estão contribuindo com suas respostas a essas perguntas.

Sua geração é composta por autores que marcaram de forma positiva seus nomes na literatura brasileira. Apesar da inevitável diferença entre eles, como definiria esse grupo de autores surgidos nos anos 1970?
Faço minha as palavras do mestre Antonio Candido, que os definiu como “donos de um realismo feroz”. Mapeio alguns nomes, ao correr das teclas: Moacyr Scliar, em Porto Alegre, Domingos Pellegrini, em Londrina, João Antônio, Ignácio de Loyola Brandão, Moacir Amâncio em São Paulo, Nélida Piñon, Ana Maria Machado, Sérgio Sant’Anna no Rio de Janeiro, Ivan Ângelo, Luiz Vilela, Roberto Drummond, Wander Piroli em Minas Gerais, João Ubaldo Ribeiro, Ruy Espinheira Filho, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho na Bahia, Miguel Jorge em Goiás, e daí até Márcio Souza, em Manaus, com muitos etc., etc. pelo caminho.

Hoje, após 12 romances e 18 livros, consegue perceber com clareza quais autores foram mais determinantes em sua escrita?
São muitos os santos da minha cabeceira: os nossos Machado de Assis, Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa, Clarice Lispector; os russos Dostoiévski e Maiakovski; os portugueses Eça de Queirós e José Cardoso Pires; os franceses Charles Baudelaire e Boris Vian, o de A espuma dos dias; nuestros hermanos Juan Rulfo, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges; o irlandês James Joyce; os norte-americanos Scott Fitzgerald e Carson McCullers. Agora, padroeiro mesmo é um tal de William Faulkner. Mas esclareço que leio os clássicos para me embasar e os contemporâneos para me reciclar.

E ainda num exercício de autoanálise, quem são os escritores que não aparecem de forma clara em sua escrita, mas foram determinantes em sua carreira?
Um poeta chamado Eurico Alves Boaventura, baiano de Feira de Santana, que foi Juiz de Direito na cidade de Alagoinhas, onde vivi a minha adolescência. Foi nos saraus que ele fazia em sua casa, que fiquei conhecendo não só a sua poesia, mas também a de Manuel Bandeira, Jorge de Lima — com os quais se correspondia —, Drummond, enfim, todos os modernistas, entre eles um da própria Bahia, Godofredo Filho. Largos passos adiante tive a sorte de conhecer em Lisboa o poeta Alexandre O’Neill, que, a bem dizer, foi o meu tutor literário nos três anos em que morei em Portugal, de 1965 a 1968. Também foram determinantes para a minha formação as duas redações de jornais que me serviram de treino para chegar à literatura. A do Jornal da Bahia, e a da Última Hora, de São Paulo. Na primeira, convivi com o ficcionista Ariovaldo Matos e os poetas João Carlos Teixeira Gomes e Jeovah de Carvalho; na segunda, com este que se tornou um amigo da vida inteira, Ignácio de Loyola Brandão, assim como o cronista Antonio Contente, ainda na ativa, num grande jornal de Campinas, sem esquecer o crítico de música daquele vibrante jornal, Franco Paulino. Some-se a tudo isso o pique criativo das agências de publicidade pelas quais passei, em São Paulo, Lisboa, Porto e Rio de Janeiro. Essas experiências me deram régua e compasso (aqui, o copyright vai para Gilberto Gil).

Você é membro da Academia Brasileira de Letras. Nos próximos meses, a instituição deve receber uma nova leva de membros — Fernanda Montenegro e Gilberto Gil acabam de ser eleitos. Ao mesmo tempo, a ABL tem sido cobrada por mais diversidade. Como vê essas mudanças?
Sou totalmente a favor dessas mudanças.

Como gostaria de ser lembrado na história de nossa literatura?
Essa pergunta pede uma música: Quando eu me chamar saudade, do carioca Nelson Cavaquinho. “Me dê as flores em vida” — diz um dos seus versos. Muito obrigado, Rascunho, por nunca ter me negado flores, desde o seu número zero, em 2000, eu me recordo.

Querida cidade
Antônio Torres
Record
430 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

Rascunho