C. Ronald tem o nome originado do poeta Ronald de Carvalho (poeta que seu pai admirava). O filho não, o filho prefere Eliot, Rilke, Rimbaud. C. Ronald é polêmico, irreverente e dono de uma poética digna dos grandes mestres da poesia. Arriscamos: C. Ronald figura entre os dez mais importantes poetas de língua portuguesa em atividade. Ao som da voz estonteante de Dylan Thomas, ele nos fala sobre sua poética, o que motiva sua produção e, naturalmente, de outros poetas. C. Ronald manteve, na década de 80, uma página de poesia no jornal O Estado de S. Paulo. Hoje, mora em Biguçu (SC) e dedica-se toda a vida a sua obra poética.
• Como você se sente sendo reconhecido pela crítica como “o poeta da profundidade, o poeta-filósofo, o poeta hermético” num país onde a educação é tetraplégica?
Todo mundo ou chama a minha poesia de metafísica, ou de hermética ou filosófica. Se chamar de metafísica eu aceito, pois um dos maiores poetas que o mundo teve, e que foi rotulado pelo T. S. Eliot como metafísico, foi o John Donne. Então eu aceito o metafísico. O hermético? O próprio T. S. Eliot nos dá uma lição, pois ele diz que a poesia vem e prescinde de explicação. Ela nasce. Agora se é difícil de o leitor entender ou fácil, isso aí não é um problema do poeta. O texto poético, uma vez criado, é doado ao leitor, vai depender dele, da sua inteligência, da sua abertura à linguagem e ao mundo poético. Já, por outro lado, eu fico extremamente indignado quando chamam minha poesia de filosófica. Poesia e filosofia são áreas muito distintas. Muito mesmo. Isso é fruto da ignorância (e ela predomina no nosso país). Só existe uma grande filosofia num país quando existe um grande poeta; veja a filosofia grega, a filosofia latina e a filosofia alemã. O poeta é o pai da filosofia, mas sua poesia não é filosofia. O poeta é fruto da intuição e a filosofia é racionalização. Claro que a intuição poética vai precisar de reparos, de aparar as arestas, de construir uma linguagem, o poeta vai tentar direcionar sua intuição, mas jamais trabalhar só com a razão, porque a poesia morre.
• E o trabalho apenas intuitivo não pode beirar a superficialidade, a ingenuidade?
A superficialidade na poesia brasileira vem desde Machado de Assis, pois ele fez poesia sem ser poeta. É um ótimo contista, novelista e romancista, embora seja pouco profundo. Não pode ser comparado com os ingleses; isso foi um endeusamento. Mas eu gosto muito dele, não pense o contrário. O importante no Brasil não foi a profundidade encontrada por um escritor. Sim a nacionalidade encontrada por um escritor que conseguiu aglutinar toda a miscigenação deste país. Este escritor foi o Euclides da Cunha de Os sertões. Euclides representa o ápice da inteligência brasileira. Na Academia Brasileira de Letras alguém disse que ele não tinha estilo porque usava vocabulário demais. Isso é bobagem. Bobagem. Ele foi um grande estilista. Sabia muito de estética e marcou a nacionalidade do homem chamando brasileiro.
• E a crítica e a poesia?
No Brasil a crítica é uma indigência. Tenho acompanhado o Wilson Martins. Li os críticos todos desde de José Veríssimo, Antonio Candido, todos. Só que nunca vi ninguém dizer a diferença da poesia brasileira e da poesia francesa, nunca souberam dizer isso, nem o Candido chegou a traçar esta diferença.
• Dois de seus livros marcam bem a ambivalência de um criador: Gemônias nos traz o universo do “eu”, a certeza da finitude, a impotência sobre o tempo. O livro Todos os atos, junto a estas questões, nos revela um comprometimento social, o “eu” coletivo surge com maior vigor. Fale sobre esses dois universos presentes nestas obras.
Eu nunca lembro dos meus poemas. Nunca releio um poema. Trabalho muito até ele estar pronto. Escrevo, reescrevo até pulsar aquilo que está realmente dentro de mim de uma forma plena. Então eu faço assim, eu escrevo e deixo guardado. Antes de publicar eu releio e refaço tudo (quando penso ser necessário, é claro). Depois nunca mais volto a ler o que escrevo. Quando surge uma crítica, aí eu releio para ver se há alguma coisa que o indivíduo diz que tenha fundamento. Uma vez o poema criado, eu o deixo órfão no mundo para ver se alguém adota. Um homem adotando um poema é uma coisa límpida, humana e perene. Há sim muito do eu, há sim um egocentrismo disfarçado. Porém eu gosto mesmo é do coletivo. Eu gostaria que o meu país fosse um país de homens inteligentes, de homens que levassem este país à idade madura. Mas o coletivo brasileiro hoje está insuportável, talvez por isso me recolha. Hoje, este coletivo que gosta de música sertaneja, que é guiado pela mídia, este coletivo me incomoda e não me interessa. Embora esteja sempre preocupado com os homens. Um paradoxo.
• Em Ânua percebe-se uma certa fixação por elementos que caracterizam fixidez: ossos, árvore, terra, espelho, estátua e janela são palavras que guiam o livro. Fale um pouco sobre este universo semântico.
O meu telurismo provém da minha maneira de enxergar e viver o mundo. Sou muito casa, muito família. Esta prisão fui eu quem escolheu. Estas minhas recorrências representam o que carrego comigo. Os ossos, por exemplo, são os mortos que carrego comigo. Todas estas palavras são metáforas cíclicas que se confrontam com a fixidez. E como o poeta não sabe quase nada de si mesmo, o mundo semântico dele pode ajudar a desvendar um pouco do que ele é ou pensa ser.
• Em Como pesa!, encontramos o seguinte verso: “a força do poeta está na surpresa”, o senhor lê algum poeta catarinense que lhe proporcione esta surpresa?
Nem o Cruz e Sousa. Aliás, o Cruz e Sousa é muito elogiado, mas eu não vejo nele toda esta grandeza. Reconheço que tem uma boa poesia, mas comparada a outros grandes, não me impressiona muito. Eu gostava muito do Luiz Delfino. Estou vendo surgir muitos poetas novos. Não tenho lido estes, mas de tudo que já li, pouca coisa me desperta surpresa e alegria. Sabe aquele momento em que você lê um poema e alcança uma outra dimensão, uma ida além do corriqueiro, algo profundo e humano? Isso tenho visto pouco em nosso Estado. Ah, tem um poema do Fábio Brüggemann que me causou espanto sim. E os últimos versos são “um homem sem a sua casa/ é o começo de um circo”. Este poema é belíssimo. Não vou elogiar ninguém. Tem poetas novos surgindo que me metem alguma inveja.
• Como o senhor, que tem um rigor no manejo com a palavra, avalia o movimento concretista e seus seguidores?
Os concretistas são uns idiotas. O único movimento que eu até hoje continuo apreciando é o Surrealismo, um movimento que deu origem aos maiores gênios da poesia, do cinema e da pintura. Paul Éluard, Tzara, Breton, Picasso, Dali, Buñuel, aqui no Brasil o Ismael Néry, os poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes, olha, são tantos que seria impossível nomeá-los. Impossível! O Surrealismo é uma das coisas mais lindas que já aconteceram nas artes.
• E o trabalho de tradução que eles desenvolvem?
Tenho a tradução do livro A mesa do Ponge. A mesa é um rascunho do Ponge. Dali ele iria construir uma obra maior. Pegaram este rascunho e dizem que o Ponge é concretista. Bobagem. Sem falar que eles costumam fazer prefácios que são maiores que o próprio livro. E colocam os ensaios deles num patamar mais elevado que o da obra. Isso é um absurdo. Metade do livro é só vaidade deles.
• Qual a importância das academias e agremiações literárias para um país?
Nenhuma. E agora nós estamos na época em que está surgindo Academia Desterrense, Academia Buguaçuense e por aí vai.
• Como o senhor avalia a leitura que Antonio Hohlfeldt faz de sua obra no livro A literatura catarinense em busca de identidade (a poesia)?
Ele escreveu um artigo muito bom. Eu até o coloquei na orelha de um dos meus livros. Só que depois ele modificou tudo por ingerência. Dizem que queriam que ele dissesse que outro escritor era o maior poeta de Santa Catarina, caso contrário não iriam publicar. Mandei uma carta para ele, uma carta malcriada, e depois disso ele nunca mais me escreveu. É importante dizer que eu nunca tive atrito com este escritor. Um dos poucos que eu nunca tive atrito. Com o Olsen Jr. também nunca tive nada de sério. Somos amigos.
• Se o senhor tivesse que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira de Rilke, o que diria a um principiante sobre poesia e arte poética?
Engraçada a pergunta, pois tive um jovem, que se pretendia poeta, que escrevia para mim. Escreveu mais de dois anos. Eu sempre o aconselhei a não ser poeta. E eu disse que o caminho dele era a filosofia e não a poesia. A racionalidade dele era maior que a intuição. Ele deixou de ser poeta. Para ser poeta é preciso nascer poeta. Não se constrói um poeta. Porém não basta nascer poeta. É necessário cultivar a poesia através da disciplina, e entendam que disciplina não significa racionalidade, mas dedicar-se integralmente à poesia. Diria para ler e ler a si próprio todos os dias.
• Você tem uma paideuma definida. Como você encara esta luta com a linguagem?
O poeta, quando começa, geralmente se caracteriza por uma ingenuidade. Faz versinhos para a namorada, para a mamãezinha no dia das mães. É esse sentimentalismo banal que muitos nunca perdem. De repente você começa a ver a língua como um objeto autônomo. Ela não nos pertence. Nós é que temos de fustigá-la, nós é que precisamos domar o dragão para podermos aprender a cuspir fogo. Cuspir um fogo diverso através de uma linguagem única, sua. Cada poema é uma centelha que nós, poetas, devemos cobrir com a linguagem, sempre dando roupagem nova, sempre dando brilho igualmente diverso a esse fogo.
• E como se deu sua iniciação literária?
Comecei a escrever poemas aos oito anos de idade. Meu pai tinha um amigo. O Sbissa. Ele era jornalista e publicava meus poeminhas. Hoje, quando olho aquilo, não acredito. Mas de certa forma isso me impulsionou. E eu fui indo. E chegou um momento em que eu queria parar. Mas eu não consigo parar. Já tentei. E quando eu me defrontei com Goethe, Hölderlin e Rilke, aí que eu piorei. Fiquei doente. A poesia passou a ser uma doença da qual eu já tentei me livrar muitas vezes. Não consigo. Escrevo todos os dias. E enquanto não fizer ao menos um poema que valha o meu pulsar, eu não saio daqui deste escritório.
• Quando você publicou o livro a Razão do nada disse ser o último livro, no entanto já está com mais duas obras prontas.
Eu sempre digo que é o último, mas eu não vivo se não escrever. Eu jamais seria feliz sem a escrita. É uma compulsão. Uma loucura. E em toda arte, eu acredito, há um híbrido de lucidez e loucura. Minha escritura é o que conduz minha existência. Muitos dizem que eu não me socializo, mas eu estou socializado com a minha poética. A poética é imprescindível. Agora os grupelhos são superficiais e passageiros.
• Em um de seus poemas do livro Dias da terra o senhor diz “grita com vigor, grita que a palavra aparece. Será/ perfeita depois da dor” Qual sua relação com o ato criativo? Há alguma “tortura” nele?
Eu vou para o poema com a maior humildade do mundo. Eu nunca estabeleço um propósito de ir para o grande poema, porque se isso acontece, a gente nunca chega. Eu acredito não ter chegado. Tenho um amigo que era um grande romancista e que se evaporou porque queria fazer uma catedral, queria fazer uma obra maior que a do Cervantes. E não é assim que se vai para uma obra de arte. É preciso abertura, colocar pedra por pedra. Claro que isso traz uma angústia. Todos os dias da terra constituem uma pedrada na caneta do poeta, e se ele não cria, morre. Eu sempre pensei em diminuir as minhas fraquezas e me tornar cada dia um pouco mais forte. Foi a única coisa que me levou a chegar aos 68 anos de idade com a poesia na lâmina e na folha.
• Como o senhor encara estas palavras do Vilson Nascimento “C. Ronald é um dos melhores e mais lúcidos dos poetas do mundo”?
Penso que ele tem toda a razão. Mas os maiores poetas brasileiros mesmo são o Jorge de Lima e o Murilo Mendes.
• O Grupo Litoral, do qual você fez parte, nasceu como uma oposição ao Grupo Sul?
Não. Nós fomos agrupados pelo Manuelito Dornellas quando ele chegou aqui. Os irmãos Pítsica não queriam entrar em polêmica com o Grupo Sul e nem com a Geração da Academia. Então foi feito o grupo sem intenção de agredir um ou outro. Walmor Cardoso da Silva era um poeta de que eu gostava na época, pena que ele não tenha continuado. O Grupo Sul publicou dois poemas meus na última Revista Sul. Participei de certa forma. Gosto muito do Salim Miguel. Tenho uma admiração pela força e coragem com que ele lutou pela literatura do nosso Estado [Santa Catarina]. Depois me afastei de todas as formas de agrupamento e saí com uma certeza na cabeça: nada melhor que a poesia para acabar com o falso poeta.
• Como você gostaria de ser lembrado?
Como poeta. E é sempre bom lembrar que um poeta é um ser primitivo por natureza. Eu quero ser lembrado como me vejo: um poeta universal.
Obra poética de C. Ronald
As origens (1971)
Ânua (1975)
Dettagli dell’Assenza (1975)
Dias da terra (1978)
Gemônias (1982)
As coisas simples (1986)
Como pesa! (1993)
A cadeira de Édipo (1993)
Cuidados do acaso (1995)
Todos os atos (1997)
Ocasional Glup (1999)
A razão do nada (2001)