A entrevista com 15 perguntas a Cassas tomou outros ventos, mas manteve a mesma direção: converteu-se em comovente depoimento sobre a carência de todas as infâncias — de adultos e crianças. Mais do que denunciar, quer salvar as crianças, o verdadeiro sol da sua cidade. São palavras de fogo, banhadas na solidária ferida do menino de todos nós. Sente-se na poltrona, leitor.
1
A poesia me foi anunciada através das palavras de fogo de uma criança de minha idade, 11/12 anos, moleque simpático e esquelético, que me fez as honras do anjo Gabriel:
— “Amigo, arranja pra mim um prato de comida. Tenho fome!”
Morava na Rua das Hortas, 157, esquina com Viana Vaz, próximo à Praça Gonçalves Dias, onde entre palmeiras imperiais, ergue-se o busto do maior poeta maranhense-brasileiro, olhando longe o mar que o afogou. Mas a vida respingava de luz era embaixo das janelas. Era lá que eu sentia a varinha de condão da infância iluminar o passeio, através da algazarra dos meninos de rua. O circo era total: papagaios coloridos, bolas sobre os paralelepípedos amedrontando as vidraças, bolinhas de gude correndo ágeis no intervalo das calçadas quebradas. Os meninos de rua eram os senhores da vida e os donos do mundo. Sua liberdade de ser e viver excitava-me à inveja e à admiração. Em meu pequeno mundo — as janelas da minha pequena torre particular —estrelas traziam-me notícias traquinas de mergulhos no Jenipapeiro, ecos guerreiros da caça aos camaleões com baladeiras, dribles nos bondes sucateados da Refesa. Meu fascínio aumentava e me frustrava. Meus brinquedos não tinham a magia do risco.
2
Um dia, bateu à porta, hora do almoço, um desses meus heróis-mirins. Faminto, pedia comida. Alguma coisa descolou e explodiu dentro de mim. Chorei envergonhado. Os cacos jamais juntaram. Percebi que eu e os meus ídolos vivíamos — dentro e fora dos tijolos das janelas — um estranho conto de fadas. Um personagem mau teimava em roubar-nos a alegria da vida. A poesia, dentre secretos destroços, botou o pescoço pra fora. Escrevi meu primeiro poema: Ode ao menino de rua (a palavra “ode” foi pescada de um livro de Manuel Bandeira). Começava assim: “um menino/ é o que vejo na rua/ e a única coisa que vejo/ é a mãe desse menino/ que se fez poeta/ declamando/ de braços abertos sua dor…”. O poema inaugural permaneceu inédito. Mas em meu primeiro livro — República dos becos, de 1981 — tematizei o sofrimento de meus pequenos ídolos de carne e osso, dedicando-lhes 3×4 e Boletim meteorológico-sentimental de 25 de dezembro. Infelizmente, meu sonho infantil permaneceu desapontado: mudar-lhes o destino.
Toda a vida me deparei com o olhar dos meninos de rua. Essa necessidade de entendimento obrigava-me, adulto, a abrir muitas vezes os braços à sorte destes cúmplices e companheiros. Olhar o outro ser, excluído, desencadeava, receptivo, acolhimento na manjedoura do coração, reencontrando meu próprio menino extraviado. A infância voltava alegre como a descarga elétrica de um coice. Nesse vaivém de alegria, renascia e morria, embalado por órfica canção. Admito, a infância foi uma rua iluminada em que me perdi no coro das suas vozes sorridentes. Sou eterno mendigo por não lhes retribuir à altura.
3
Quando o anjo Gabriel penetrou pela segunda vez na minha vida, através das mãozinhas do meu neto, filho da minha filhinha Ana Carolina, tornando-me avô aos 42 anos, entrei em nova crise de renascimento. Temi que o seu destino fosse igual ao meu: olhar o sol da vida pela janela, brilhando, meio-dia, no cerol da linha 20 que acionava os papagaios. Idêntico ao Homem de Lata e ao Mágico de Oz, preciso da conexão com o coração, muitas vezes molhado, para quebrar o disfarce das emoções. E, então, reivindicar comunhão na assembléia da vida. Vendo meu neto Gabriel respirar à noite, um pânico percorreu-me o corpo. Queria-o no centro do furacão, não voyeur da alegria. A lembrança do sentimento guardado por essas crianças, ativado por seu cordão umbilical, convidou-me à criação e à expansão. Infelizmente, a compaixão não é um barco em que todos navegam. Mas um porto a desembarcar. Falo de janela para mim e todos.
Meu neto, lúdico por natureza, dentre todas as travessuras, acabou tornando-se meu avô, desenterrando o meu menino sem rua. Entre essa perplexidade madura e o retorno à casa do sol, escrevi meu 12º livro, Em nome do filho. É uma ponte celebrando todas as infâncias e exorcizando a tristeza dessa chaga social aumentada por nossa omissão — os adultos. Mas o olhar de Gabriel — meu pequeno anjo tímido e travesso — traz o reflexo de todos eles. E, se Deus quiser, a promessa de renovação coletiva.
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Todas as tradições espirituais referem-se ao nascimento do menino-de-luz. Exteriormente ou internalizado na constelação do espírito, é o sol que pressagia autoconhecimento, renascimento, retorno à fonte divina, realização. É recurso celeste a levar-nos por sendas envoltas em sombras e claridade à individuação, que nos faz escapar da linha de montagem.
Na tradição judaico-cristã — o maior acontecimento de todos os tempos é o nascimento de Jesus Cristo, na Judéia — a criança pobre, encarnação de Deus tornado menino, que veio ensinar a todos os homens o caminho da verdade da vida.
Seria exagero visualizar no apocalipse das crianças pobres e desamparadas, famintas e maltrapilhas, o verde sinal transfigurador, semáforo do ser, convidando-nos à partilha com o outro, o menino-exterior, para que sobrevivesse em nós a centelha de iluminação? Não seria essa estrela de inclusão — a luz é para todos — a atualização da boa-nova de que “somente se alguém se tornar criança, terá direito ao paraíso”?
Se a vida é uma criança — na formulação da própria gênese criadora — a poesia de Em nome do filho quer ser instrumento pacificador de intervenção do Ideal no Real — pequena gota de água-viva contra a cristalização — através do verbo poético, para reavivar, na memória do homem, a lembrança de sua origem e a comunhão com a plenitude da existência.
No plano psicológico, Jung postula que só há verdadeira cura quando há o encontro com o sagrado. Nessa dimensão, expiamos nossas culpas, regeneramos a inocência perdida perdoando nossos pais, ativamos nossa carga de ludicidade e nos tornamos melhores pais e mães desenvolvendo uma consciência integradora. Voltamos a crescer — emocional e espiritualmente — em direção ao sol. O adulto, banhado no influxo amoroso da luz divina, começa a concluir em si o trabalho da infância. Tornamo-nos amigos de todos, porque respeitamos neles a criança-divina, guia de todos nós. Analogicamente, o que é dado como verdadeiro e certo, no campo psíquico, não se estenderia ao campo social?
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O que vale aos pais e às mães, em domínio privado, não seria ampliado ainda aos agentes públicos — Estados, Nações, Cidades — a quem cabe a função paterno/materna de garantia dos direitos públicos de todas as crianças, mormente as mais excluídas, tais como o direito à vida, guarda, proteção, saúde, educação, integridade física etc? Um breve olhar à humanidade atual nos precipitaria o aguilhão da perplexidade. Principalmente, quando muitos desses próprios agentes públicos, usurpando malignamente a capacidade criativa das próprias crianças, invertem a ação mágica construtiva. Roubam-lhes o segredo da Lâmpada de Aladim — em delírio de egocentrismo desvairado e orgulho global — para fabricarem fome, opressão, miséria e possantes brinquedos eletrônicos, criando um paraíso terrestre de anjos destroçados. Às vezes penso que estamos matando a árvore da vida e adubando — com sangue — a árvore do bem e do mal.
A esses — omissos e exacerbados — vale lembrar o discurso de Maria, mulher do povo, há dois mil anos. Entronizada como templo de sabedoria e misericórdia, Maria é também rainha celeste e deusa terrestre, “saúde dos enfermos”, “consoladora dos aflitos”, portanto, mãe de todos nós. Em sua contraparte humana, educou o filho amado para o cumprimento de uma revolução pacífica e universal:
“… manifestou o poder de seu braço. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu os ricos de mãos vazias…”.
Na mensagem do “Magnificat”, pronunciado por Maria, não está consubstanciado o germe de todas as revoluções sociais, sinal de que os justos possuirão a Terra? Não está anunciada a vitória final dos humildes sobre os poderosos e, portanto, dos puros de coração, as crianças?
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A Cabala ensina que os princípios espirituais contidos na Bíblia têm o valor de sentenças energéticas valendo por toda a eternidade. Escrita predominantemente no hebraico, língua sagrada, o tempo presente do verbo Ser — a conjugação do “Eu sou” — por conter a afirmação divina, torna o presente eterno, vigindo no agora/sempre. É garantia inderrogável de cumprimento. “Amar o próximo como a si mesmo” também não é uma das mais poderosas fórmulas de salvação?
Mas onde encontrar essa substância quintessencial, que nos permita a refiliação ao plano divino, capaz de gerar um renascimento coletivo, fundindo consciência social e consciência espiritual, dentro de uma ótica familiar, planetária, solidária e universal?
Está no amor — a substância alquímica, mística, gnóstica e mágica — mais poderosa que já foi posta a serviço do homem. Mas o verdadeiro amor — o que quer ver o crescimento e a felicidade do outro — que é dádiva, doação, contentamento, onde encontrá-lo? No terreno da inteligência humana, sede do cérebro, não está. Sabiamente, a própria vida já demonstrou que o amor não é encontrado nos genes da evolução humana, como o progresso científico e tecnológico. Está no território quântico e inefável da Graça, não no campo minado da energia. Sua verdadeira pátria — o coração do Divino — somente os predestinados o conservam em abundância, porque se doando, renovam o estoque e a circulação. A cota comum de nós, mortais, mal-abastece o consumo interno.
É hora de nos reconectarmos com o inesgotável depósito de luz celeste e suplicarmos que verta sobre as taças dos nossos corações a graça do amor, para que possamos nos amar dignamente, amar ao próximo e amar toda a humanidade. Oração — este poderoso canal — suprimento de luz de que nos desligamos, a propósito, não é o que vem pedindo Maria, Mãe da Luz, nas aparições de Fátima, Medjugore etc., para curar o seu coração ferido e as dores do mundo?
Talvez na oração — que faz o fogo coronariano arder em reverência ao calor amoroso da vida e tornando a nossa inteligência esclarecida, esteja a oxigenação fundamental para o impulso ao outro. E, então, auscultando o ardor do próprio coração, possamos sentir o suor, as lágrimas e o sangue circulando em nossas veias, preparando-nos — no banquete presente da eternidade — o corpo de compaixão.
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São Luís, capital do meu Estado, o Maranhão, a quem por fundação, em 1612, coube-lhe por legenda o nome do rei-menino, de origem francesa, exibe, às vésperas do seu quatrocentenário, as chagas abertas de grave problema econômico e social: os baixos índices de desenvolvimento humano, que asfixiam o futuro do povo e das crianças. Convivem em sua personalidade de cidade barroca — tombada pelo Patrimônio Histórico da Humanidade e por grande contingente de bairros populares, banhada pelo Oceano Atlântico e pelos Rios Anil e Bacanga — duas formulações ancestrais que lastreiam a formação do espírito ludovicense.
De um lado, o entusiasmo dos visitantes estrangeiros Simão Estácio da Silveira e Claude d’Abbeville, que consideraram as suas entranhas paradisíacas e cheias de fartura. Já os historiadores locais — João Lisboa e Gaioso — refletem sobre nossa pobreza e íntima penúria. Os primeiros são arautos do ideal, patrocinadores das idéias encantatórias e progressistas. Os segundos, profetas do real. Denunciam a nossa frágil formação sócio-econômica. No meio, a ação pública se orienta em vocacionar a tese do ideal, tentando melhorar a auto-estima popular com visitas ao trabalho e as mudanças. Apesar do esforço público na captação e gerenciamento de recursos e na erradicação substancial da corrupção, agrava-se a crise, com o advento da globalização.
É que não conseguimos transformar o modelo econômico baseado na concentração da propriedade, originário do sistema escravagista. Com precário nível de industrialização, continuamos exportadores de produtos primários, não incorporando esse imenso contingente social à economia de mercado.
A antiga “Atenas Brasileira”, usina de poetas, escritores e historiadores, sucumbe assim, à sua mais grave crise histórica, a do conhecimento, termômetro aferidor da temperatura do progresso e civilização.
Se apurarmos olhos e ouvidos, perceberemos que grande parte das crianças da capital e do Estado passa fome, embalada sazonalmente pelas cantigas de boi — animal mitológico, musical e coreográfico que o próprio povo, em sua sabedoria, exorciza na alegria da dor bíblica, mastigando-lhe o canto.
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Como sonhar São Luís em plena Era Messiânica de Aquário, rumo a “novo céu e nova terra”, se grande parte dos filhos menores da cidade vive no esquecimento da noite do ser e não vislumbram o facho solucionador para lançar canhões de luz sobre as trevas?
Na proximidade do Natal, acendem-se as cores do nascimento de Cristo, que veio salvar o mundo e redimir o gênero humano. Nesse período, retornam à nossa memória a lembrança dos assassinatos dos menores de até dois anos, em Belém, ordenado por Herodes, para negar ao mundo o nascimento do Redentor. Breve meditação sobre o tema respingaria para a nossa época a dramática atualização da tragédia da aurora humana. É que aumentou o apocalipse da infância e a tragédia da miséria do menino pobre em milhares de cidades, incluindo a nossa. Por isso, os natais são cada vez mais tristes.
Não é hora de todos fazermos o milagre da reconciliação e proclamarmos: — “Este meu filho estava morto e reviveu; tinha se perdido e foi achado” — e comemorar o fraterno reencontro?
Creio que somente uma ação revolucionária e humanitária, conjunta e integrada, liderada pelos próprios dirigentes, ouvido o próprio coração e o da comunidade — mas de oxigenação prolongada — fundindo idealismo solar e capacidade realizadora, possa redespertar a sociedade civil. E promover um amplo projeto político-social, ancorado na espiritualidade fraterna e materialidade participativa, dentro das nossas reais potencialidades — o renascimento da infância e quiçá, do espírito maranhense, vencendo o demônio da miséria (Exponho as mãos: as minhas circunstâncias pessoais me impediram de ser bom pai. Tento, no prosseguimento da segunda geração paterna, ser amigo e avô do meu neto).
9
Utopia? Certamente. Mas o que é o homem, mensageiro da luz e recipendiário da missão cósmica, senão o gerador e executivo da grande utopia terrestre?
Jamais esqueçamos que o fermento que possibilitou a multiplicação de cinco pães e dois peixes como alimento para cinco mil pessoas, é o mesmo agente alquímico tomado de empréstimo pelo Presidente Lula, em seu “Programa Fome Zero”, para saciar a fome de milhões de irmãos brasileiros oprimidos. A receita é a mesma: solidariedade e comunhão. No fundo, acredito que todas as fomes — comida, arte, liberdade, beleza, justiça, igualdade, lazer — têm no Amor o seu verdadeiro nome.
Aliás, o mais eloqüente registro histórico do julgamento do mundo, baseado na garantia solar do amor ao próximo, está contido no Evangelho de Mateus. Retrata o diálogo do Mestre, como única porta de salvação: — “Estavas nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão, e viestes a mim”. Então, os justos, o interpelarão: — “Senhor, quando é que nos sucedeu verte com fome e alimentar-te; com sede e dar-te de beber; desnudo e vestir-te; ver-te doente na prisão e irmos a ti?” E Jesus dirá: “… todas as vezes que fizestes a um destes mais pequeninos foi a mim que o fizestes”. Esse texto devia ser afixado em todas as casas e meditado diariamente em todas as consciências.
Quanto a nós, poetas, fiéis depositários da luz do menino interior, resta-nos a capacidade de sonhar — para que as formigas não enlouqueçam — as utopias do amanhã, vencendo o pesadelo de hoje. E acreditarmos que, se o Planeta Terra ainda é uma casa em ruínas, pode tornar-se o verdadeiro lar de todos, desde que saibamos dividir o espaço e o alimento do coração. É hora de arregaçarmos as mangas para um compromisso maior com a vida.
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Esta noite, um sonho grandioso misturou-se à minha realidade noturno-diurna. Um bando de crianças, em divina fanfarra, brincava nos galhos da Árvore da Vida. E os homens, seduzidos por essa estranha ciranda cósmica, atraídos por ela, reconduziam-se ao seu destino luminoso.