A ironia do sorriso

Entrevista com Sérgio Sant’Anna
Sérgio Sant’Anna: “A minha literatura tem muito a ver com pensar a arte, se divertir com a arte”
01/09/2002

• Por que você escreve?
Eu venho de uma geração em que apareceram o cinema novo, a bossa nova, o neoconcretismo nas artes plásticas… Uma geração em que também, internacionalmente, nos anos 60 e 70, houve muitas transformações no universo das artes. E eu, por um espírito que procuro conservar ainda hoje, digo que escrevo — e gosto de mexer com artes em geral — como uma espécie de investigação, como uma espécie de aventura. O último conto que eu publiquei, por exemplo, chama-se Um conto abstrato. Eu gosto de citar esse conto, publicado na revista Cult, porque é justamente o que me dá esse élan: vou escrever um conto abstrato. O que é isto? Um conto abstrato é um conto melódico, por exemplo. Então, valorizo muito mais do que estar interessado somente na história — não desvalorizo a história de jeito nenhum, há grandes contadores de história. A idéia de escrever um conto abstrato era uma idéia que me interessava muito. Tenho, então esse Um conto abstrato, estou lá rascunhando Um conto obscuro, estou escrevendo contos agora — mas eles têm essa característica em comum, de procurar uma forma de narrar o conto. Não que eu ache que isso seja melhor ou pior do que os outros fazem, mas é o meu espírito. O espírito de sentar lá — e eu não vivo disso mesmo, não tenho expectativas (meus livros vendem uma média de cinco mil exemplares, mesmo assim em um prazo folgado) — e tenho essa liberdade de poder fazer o que eu quero em literatura. Então, eu escrevo para isso: para me experimentar, para experimentar as formas literárias. Como uma aventura, mesmo.

 • A impressão que se tem é de que, a cada livro, você se impõe um desafio de escrever uma coisa nova. Isso, de fato, se reflete na tua obra, que é cheia de coisas surpreendentes. O teatro também está muito presente na sua literatura. Você é um escritor diferente a cada livro, um escritor que deseja coisas diferentes a cada livro. Para escrever o livro seguinte é como se o escritor mudasse…
É isso mesmo. Acho que meus livros são todos diferentes e a vontade de escrever o próximo livro também. E talvez eu esteja até demorando a lançar um próximo livro — o meu último é de 1997 (Um crime delicado)— é porque ainda não pintou essa vontade. Agora é que estão pintando as idéias desses contos: Um conto abstrato, Um conto obscuro, tenho o conto Nefando, mas este ainda não acertei muito bem, mas é uma relação incestuosa entre mãe e filho. É curioso, porque eu não sou autor teatral, acho teatro muito mais difícil do que a literatura — o teatro é uma arte da extroversão e eu sou um autor introvertido. Mas por alguma peculiaridade, eu sempre gostei de fazer minha literatura, meus personagens, viverem uma representação e não propriamente uma realidade. Então, por exemplo, A tragédia brasileira, que é um dos livros meus de que mais gosto (embora não tenha vendido bem), é uma cena de infância feita toda por meio de uma representação teatral. É a história de uma adolescente que é atropelada e, por uma série de circunstâncias, ela é tida como uma daquelas virgens santas que fazem milagres. Outra coisa que a minha literatura tem demais é uma relação com as artes plásticas. Eu adoro o ambiente de artes plásticas. Não sei desenhar um quadrado, mas as artes plásticas me interessam. Eu acho o artista plástico o grande investigador de fórmulas. Se a gente pega a história da arte do século 20 é impressionante como houve transformações de um momento para o outro. Eu estava dando uma oficina literária, havia pouco tempo, e teve um aluno — que até escrevia bem, tinhas uns 64 anos — que disse que não suportava o cubismo. Era um aluno tradicional. Eu dizia “como?”. Não é questão de não suportar o cubismo… O cubismo tinha necessariamente que vir na arte, em um determinado momento. Então não é questão de você gostar ou não do cubismo. O cubismo aconteceu: em um determinado momento, a figura foi decomposta. Então, as artes plásticas têm essa característica. No meu último livro, Um crime delicado, eu fiz uma brincadeira — eu considero uma brincadeira, não considero uma comédia grave, uma comédia séria — com um crítico de teatro que é seduzido pela modelo de um artista plástico. Eu faço uma brincadeira com a crítica e com o universo das artes plásticas. O livro Junk-box — que é uma máquina de versejar — é todo ilustrado por Sebastião Nunes, um poeta marginal de Minas Gerais, que se baseou nas obras do Duchamps. Então, a minha literatura tem muito a ver esse espírito “duchampniano”, quer dizer, pensar a arte, se divertir com a arte. Embora eu possa parecer uma pessoa um pouco deprimida, um pouco introspectiva, mas tem essa coisa da arte como jogo formal. Um jogo, inclusive, que eu acho cômico. Porque a comédia, ao contrário do que muita gente pensa, não é a grande risada. Muitas vezes é o sorriso, a ironia, o pastiche, é o Duchamps — que ironizou totalmente o universo da arte, quer dizer, colocar uma roda de bicicleta em cima de um tamborete não é uma coisa de gargalhar, mas é extremamente engraçado, e que dessacralizou o mundo das artes plásticas. Eu creio que não há mérito nenhum, porque a minha geração (anos 60, 70) já pegou o mundo sendo dessacralizado, tanto estética quanto socialmente. Quem quis embarcou nesse novo trem que estava passando e utilizou isso artisticamente. Eu, pelo menos, procurei isso — em uns livros com mais sucesso e outros com menos, mas a vida é assim: feita de tentativas.

• Você falou a sua geração. No entanto, sua obra é muito solitária. Seu trabalho é muito particular. Que geração é essa e que tipo de laços, ou ausência de laços, você tem com ela?
A geração a que me refiro é a da arte em geral. Não necessariamente a literária. Na literatura, do pessoal que ainda está em atividade, eu me identifico muito com o João Gilberto Noll. Embora sejamos completamente diferentes, eu me identifico muito com o espírito dele. O Noll não está ali só para contar a história. Ele tem uma maneira nova de ver o mundo. Mas também há dois caras que eu li, antes de escrever, e que eu considero que mexeram muito com a minha cabeça. Dois brasileiros. Um deles é José Agrippino de Paula, que escreveu PanAmérica, e o outro é Jorge Mautner, que recentemente foi relançado belissimamente. Eles me influenciaram sob esse espírito novo. Eu lia, por exemplo, Guimarães Rosa, que é provavelmente a melhor coisa escrita no Brasil até hoje. Mas não há como continuar Guimarães Rosa. É um universo que se abriu e se fechou ali mesmo. E, ao mesmo tempo, a Clarice Lispector — que eu acho que foi um dos grandes saltos da literatura brasileira —, que fez uma obra de uma importância tão grande que seria uma condenação, para qualquer pessoa, tentar entrar por aquele caminho clariceano. Até no meu primeiro livro, O sobrevivente, tive essa influência. Mas essa influência acaba sendo nefasta, porque a Clarice é tão melhor que seus seguidores que fica aquele sub-Clarice… Já caras feito Agrippino (de quem, inclusive, meu filho André Sant’Anna tem influência) ensinam a gente a ter uma liberdade no trato com a literatura. Eu diria até um desrespeito com a literatura. Por exemplo, Um lugar público é um livro em que jovens estudantes de São Paulo e do Rio de Janeiro, cujos nomes são Napoleão, Cícero, Pio 12… Eles discutem filosofia, política, com um desrespeito. Por exemplo, a Marcha da família com Deus pela liberdade, logo após do Golpe de 64: o personagem está ali, namorando a menina, tirando o maior sarro na sala, assistindo à marcha pela tevê e, ao mesmo tempo, estão garantidos, porque os pais da menina estão participando da marcha… Então há esse desrespeito. E o PanAmérica é narrado em primeira pessoa, sobre o diretor de uma superprodução hollywoodiana, A Bíblia. E o Agrippino teve a coragem de colocar como personagens Merlin Monroe, James Dean, enfim, todos os ícones do cinema. As pessoas falavam que era uma literatura norte-americana. Não. Era pop. Toda a nossa geração foi criada pelo mundo cinematográfico de Hollywood. E ele fez daquilo num desrespeito, uma arte pop… Tanto que ele pirou. Mesmo. Não foi uma coisa metafórica, não. Mas relançaram o livro dele, que continua não vendendo. Mas acho que as pessoas deveriam ler.

• Dos autores da sua geração, não há mais muitos escritores com uma visão da literatura tão livre quanto a que você tem. As pessoas tendem mais a encontrar seus caminhos. A sua obra é muito premonitória com relação ao que acontece no século 21. Essa coisa da internet, dos clones, do mundo virtual…
Esse negócio do falso eu sempre achei muito interessante. Acho muito divertido isso. Não sei se posso ter essa pretensão de já pertencer à turma do século 21, mas eu acompanho com muito interesse essa nova geração de escritores. O João Ubaldo, por exemplo, não lê os contemporâneos. Só lê os clássicos. E eu me interesso por essa geração do meu filho. Eles me mandam muitos livros. É uma geração muito boa. Eu vejo com esse espírito: Luiz Ruffato, Ronaldo Bressane, Marçal Aquino… Eles têm um espírito bastante contemporâneo. Eles pegaram esse espírito e estão realmente escrevendo de uma forma nova. Eu acho legal isso. Gosto de ler uma história bem contada, mas gosto de ver que o jovem escritor se inquieta com as possibilidades narrativas. Da mesma forma que o cineasta. A internet também. Não é possível que um cara criado num mundo com o uso da internet tenha uma mesma visão de mundo que um cara como eu, que pegou o início da televisão. Nelson de Oliveira organizou a antologia de contistas dessa geração, intitulada Geração 90 – manuscritos de computador. Acho um título muito feliz, indica bastante essa turma. É bem interessante, quando eles me mandam livros, quando mandam e-mails. E eu costumo responder e falar sobre os livros. E acabo estabelecendo esse contato via internet, que é um contato extremamente agradável. Porque é um contrato solto, curto… E é um prolongamento do mundo literário. É uma nova forma das gerações literárias. Eles não esperam que as velhas gerações tragam alguma coisa. Embora possa haver esse diálogo. É bom que eles sejam diferentes, no entanto. Eles têm em comum esse contato. A minha geração, na revista Estória, se encontrava numa esquina, em Belo Horizonte… Por incrível que pareça — era uma coisa bem mineira — a gente ficava em pé, em frente a um banco. Mas depois o pessoal ia para o bar. Com a evolução das coisas, íamos direto para o bar — onde sempre se bebia mais do que o devido. Agora há esse lance, muito típico, de trocar informações pelo computador. O que é muito produtivo.

• Essa tua visão de mundo, que está em seus livros, pode ser considerada um pouco desencantada. Algumas narrativas passam a idéia de que a realidade é inacessível, de que não se sabe com quem fala… Há mesmo um desencanto, um pessimismo…
Eu não chamaria de pessimismo. Eu chamaria de um jogo de espelhos, um tanto borgeana (mas não chega nem aos pés, é claro), mais pop. Agora, o desencanto e o pessimismo são, infelizmente, características minhas. Eu faço psicanálise há muitos anos e não consigo tirar isso de mim. Isso é uma visão de mundo, uma questão de temperamento. Um filósofo feito Nietzche me seduz. Mas, ao mesmo tempo, eu não consigo ser visceralmente um nietzchiano. Eu considero a existência trágica, mas não consigo tirar o júbilo da tragédia, o que seria um nietzchiano por excelência. Admiro muito quem consegue. Mas tenho tendências pessimistas, às vezes até depressivas. O Ziraldo uma vez perguntou: “Como é que você nunca se suicidou?” Eu não sei.

• Você fala dessa geração mais jovem. Há uma tendência muito naturalista no Brasil, como se não tivesse havido um Sérgio Sant’Anna…
Nesse pessoal que está agora, não vejo isso, não. Por exemplo: o Ronaldo Bressane publicou um livro que chama Dez presídios de bolso, nada tão pouco naturalista feito isso… O Ruffato, que talvez seja o escritor mais talentoso que apareceu aí, eu não chamaria de naturalista. Ele fez um painel nesse livro Eles eram muitos cavalos, com fragmentos da cidade de São Paulo.Eu considero isso de uma grande contemporaneidade. É um mosaico da cidade. Aparece o naturalismo na medida em que os personagens são reais — são tirados do universo de São Paulo. Mas a maneira como ele fez a colagem desses personagens eu acho extremamente moderna, inovadora. Fiquei satisfeito porque ele foi uma pessoa com quem tive muito contato. Ele disse que me leu e eu achei muito bom. Ele disse que houve alguma coisa em mim que o teria ajudado. Eu o considero muito superior. Morro de inveja desse Eles eram muitos cavalos. É muito bom.

• Em relação a sua passagem por Minas?
Tinha aquele suplemento literário de Minas Gerais que era dirigido por Murilo Rubião, que era bem mais velho do que a gente. Ele tem uma coisa muito interessante, porque é um escritor muito surrealista. Talvez tenha sido o único escritor surrealista do Brasil. Isso já o tornava um homem diferente. Ele era de uma generosidade muito grande com os jovens, abriu o suplemento para uma turma nova, enquanto outras figuras de Belo Horizonte ligadas à academia, desprezavam os jovens — até por questões de linguagem, porque os jovens falavam palavrão, porque tinha sexo na literatura. Para mim foi muito importante a revista Estória. É uma revista pouco conhecida, mas trazia monólogos, fragmentos… entre os escritores, o Luiz Gonzaga Vieira. Ele tem uma literatura voltada para a música… É um cara rejeitado pelas editoras. Tem o Sebastião Nunes, que é um dos pioneiros da computação no Brasil. Foi um dos primeiros a usar recursos do computador na poesia, ele já usava a visualidade na poesia quando fomos colegas na faculdade de direito — naquela época era comum os escritores fazerem Direito… Minas Gerais tem uma tradição literária muito grande. Foi muito importante para mim, porque lá existe um contato muito grande com a literatura. O último lugar aonde eu morei, no Rio de Janeiro, antes de ir para Minas, foi Copacabana. Mas lá, minha vida era praia, futebol… embora lá em casa houvesse livros, eu gostava muito de corridas de cavalos, praia, futebol — coisa, aliás, das quais ainda gosto. Mas em Minas eu já tinha essa coisa com a literatura. E encontrei, no cursinho e na faculdade, pessoas que gostavam das mesmas coisas. Percebi que não éramos bichos estranhos, na minha família, pelo fato de termos muitos livros. Era comum, sem nenhum pedantismo, que lá em casa alguém, aos 16 anos, estivesse lendo Sartre. Porque os livros estavam lá, dando sopa. O jovem quer sempre saber o que é novo, e o Sartre era aquela figura mítica do existencialismo em Paris. A gente via o existencialismo não só pelo lado filosófico, mas pelo lado de as pessoas estarem nos cafés parisienses, de roupa preta, desfrutando do amor livre… Então, aos 16 anos, ler Sartre era uma glória. Ainda que se entendesse muito pouco. Mas eu, encontrando pessoas na faculdade de direito — e também no berço da formação política, porque eu tinha colegas que eram marxistas, meu pai também era, na juventude —, tive essas coisas muito próximas de mim. Não sei se tivesse continuado no Rio de Janeiro, teria sido a mesma coisa. Acho que Copacabana é um espírito um pouco diferente disso. É mais dispersivo. Embora Copacabana tivesse coisas como a Bossa Nova, um fenômeno bastante ligado à Zona Sul…

• Você passa longos períodos sem publicar. Fale um pouco disso, e também de todo o seu processo de criação.
Eu, na verdade, tenho encontrado cada vez mais dificuldade para escrever. Eu estou experimentando — no sentido literal da palavra. Experimentar o texto para ver se dá certo. Também fui me tornando mais preguiçoso, com o passar do tempo. Já publiquei vários livros, então não sinto tanta necessidade de publicar mais. Não gostaria de publicar, por exemplo, um livro do qual me envergonhasse depois. Então estou lá, fazendo alguns contos para que um dia — daqui a uns dois ou três anos, quem sabe — eu publique um livro de contos. Tomara que seja um livro como o do Luiz Vilela (A cabeça). Ele não publicava havia 23 anos. E, de repente, as pessoas reconheceram que aquele livro representava uma retomada daquilo que ele tinha de melhor. Eu gostaria que eu publicasse um livro de contos em que as pessoas pudessem ver alguma coisa legal.

• Mas como é a sua rotina de trabalho?
Eu escrevo muito devagar. Embora eu use computador, como todo mundo, tenho uma cadeira de balanço — no quarto que era do meu filho —, boto os pés em cima de uma arca, tenho uma pasta de papelão, ponho uma folha de papelão ali e fico rabiscando a caneta. Rabisco uma folha, rabisco outra… Só quando eu tenho um rascunho mais ou menos engatilhado, passo para o computador. Mas eu teria uma inibição com o computador, ao contrário do pessoal de hoje, que se inibiria com a caneta. Para mim, a caneta é um instrumento comum. Nunca ando sem uma caneta, é um vício. Para anotar em qualquer lugar. Então, eu tenho essa característica de escrever sempre, mas sempre muito pouco. E faço muitas anotações. Nunca durmo sem ter um papel do meu lado. Além de anotar sonhos, anoto idéias. E a maior parte dessas anotações acaba não servindo para nada. Ou então, uma anotação que é feita hoje, vai dar um conto daqui a três, quatro anos… É um método de trabalho um pouco caótico. Eu não sou um escritor profissional, como seria, por exemplo, Rubem Fonseca. Quase todo ano sai um livro dele.

• Como é o seu contato com os escritores da sua geração?
No Rio, a gente se encontra pouco. Então, quando há um lançamento, a gente acaba se encontrando. Eu lembro que encontrava muitos escritores na casa do Eric Nepomuceno. Ele dava umas festas lá… Agora, ou ele parou de dar as festas, ou parou de me convidar… Lá eu encontrava João Ubaldo, Antônio Callado, Ana Miranda… Era legal isso. Mas eu não vejo muito esse ambiente literário no Rio de Janeiro, não. Em Belo Horizonte, eu acho que tem. Lembro que fui relançar Junk-box lá e encontrei vários amigos. Ou eu me tornei mais arredio. Eu tenho uma tendência — estou saindo de uma relação amorosa de dez anos com uma pintora — de agregar as pessoas daquela com quem estou me relacionando. Então, depois que acabou a relação eu penso: “Meu Deus, eu estou sozinho! Todos os amigos eram dela e não meus”. Acabava andando muito com o pessoal de artes plásticas por causa dela. E era legal. Mas na hora que acabou, comecei a sentir uma certa carência… estou meio solitário.

• E isso não te faz escrever mais? A solidão ajuda ou atrapalha?
Não sei se está ajudando ou atrapalhando. O fato é que eu não tenho escrito muito. Embora, na semana passada eu tenha terminado um conto, que eu não gostei. E não gostando é fogo! Mas eu escrevo de qualquer jeito: bem ou mal, eu escrevo. Ou pelo menos eu tento. Acho que há momentos em que a gente está mal e pode fazer boa literatura. A mesma coisa estando bem. Mas tenho uma tendência ao pessimismo. Mas o que me dispõe a escrever é o estímulo intelectual. Um quadro, por exemplo, pode me dar vontade de escrever. Um dos contos meus que eu mais gosto, que se chama Uma visita domingo à tarde ao museu, veio de uma visita ao museu — o que nada mais é do que ver quadros.

• Que papel tem o escritor hoje?
Transformar. Com essa perspectiva literária — do Noll, por exemplo — a literatura se renova. Clarice Lispector é uma escritora pouco lida. Tem alguns livros lidos por causa da escola e coisa assim, mas as pessoas que lêem mantêm o processo criativo em andamento. Há uma modificação dos processos criativos, porque há uma diluição da literatura. Ao mesmo tempo, penso que sou um otimista. Acho que, com a TV a cabo e com a internet, acho que cada vez mais há lugar para escritores que têm formas particulares. Aquele medo da massificação total da televisão, eu perdi. As tevês a cabo estão dando um espaço para programas interessantes. Com toda a certeza, tanto na tevê quanto na internet, temos acesso a esses novos escritores. Nós, autores brasileiros, tivemos uma boa oportunidade, ao aparecer no programa Espaço Aberto, do Pedro Bial. Ele é um cara que, embora esteja fazendo Big Brother e Fantástico, é muito bem informado e está fazendo um trabalho espetacular nesse programa da TV a cabo. Coisas que estou falando aqui, eu pude falar na TV, e aquilo foi transmitido para milhares de pessoas. É uma possibilidade, sim. O autor que transforma, está tendo seu papel. Tem havido um bom espaço para ele.

• Qual é a sua relação com a esperança e com o sonho? Você ainda sonha?
Esse sonho meu do fazer, eu gostaria de morrer com ele. Quando tiver 80 anos, gostaria de escrever e escrever alguma coisa provocativa. Mas ainda tenho sonhos de ver um país melhor, um país mais culto. Essa geração me alimenta muito desse sonho. Eu fico um pouco invejoso quando vejo as pessoas mais jovens fazendo coisas boas, mas ao mesmo tempo fico muito contente. Principalmente quando vejo que as coisas continuam. A literatura não morre. Muitas pessoas dizem que agora não está acontecendo nada. Mas como não está acontecendo nada? Tem muita coisa boa. Essas pessoas não se dão ao trabalho de entrar numa livraria e procurar os livros que não estão tão na mídia. Às vezes não se dão nem ao trabalho de ler os cadernos literários dos jornais. Porque os cadernos literários falam, às vezes, nessas pessoas. Isso é um sonho que sempre continuará. Eu tenho um filho que publicou dois livros por editoras que estão fora do mapa, mas que tiveram uma repercussão crítica muito boa.

• Você também tem um lado rebelde. Você se considera um pouco rebelde?
Às vezes, eu tenho uma tendência a ser rebelde. Esse papo também me estimula a continuar rebelde. Sempre fui assim. Mas, às vezes, posso ficar acomodado, o que não é legal. Acomodar é sempre mais fácil. Mas tenho a cobrança de que eu preciso continuar sendo rebelde. Ainda hoje estava conversando com um jornalista, sobre o livro A senhorita Simpson, e acabamos entrando no assunto “budismo”. Eu disse que, algumas vezes, quando estou desencantado com a vida, gosto de ler sobre isso. Temos escritores de textos zen, como o dr. Suzuki que, de vez em quando, quando estamos numa pior, nos alimentamos muito daquilo.

• Você é de uma família bastante atuante na literatura. Vocês trocam idéias?
Eu trocava muito com a minha irmã mais velha. Ela era uma leitora ávida e me orientou muito no começo. Depois eu comecei a ler coisas mais avançadas. Meu irmão (Ivan Sant’Anna) é o leitor e escritor de best seller, não tenho nada a trocar com ele. Mas acho que ele escreve bem. Meu irmão é um maluco. O primeiro cara que eu vi que disse que ia ganhar dinheiro com literatura e ganhou. Mas esteticamente ele me goza. Só falta dizer que esse negócio de arte é frescura. E ele declara aos jornais que não é literato. Ele fala para a revista Veja que não está preocupado com a literatura…

• Você mencionou seu filho André. Como você o situa na nova geração?
A mãe do André foi ligada a artes plásticas e o pai dele é escritor. Então ele sempre conviveu em um meio muito propício a informações. Mas há uma coisa que é muito própria dele: ele sempre foi um sonhador. Sempre gostou de arte. Via ensaios de teatro. E também quis ser músico… Alguma coisa ele pegou de mim. O Glauber Rocha, por exemplo. Ele sabia que eu gostava do Glauber… O André é o cara mais fanático que eu conheço pelo Glauber Rocha. Ele é o cara que mais gosta do Idade da Terra, que é o filme menos assistido do Glauber. Mas ele tem essa coisa com a arte. Ele escreveu dois livros: Amor e Sexo. Amor é um livro sem gênero definido. E isso é uma coisa bem do André. O fato de ele ter sido músico — o grupo dele era bem experimental — também influenciou. Mas acho que eu tive uma influência mais rápida sobre o André do que o meu pai teve sobre mim. Meu pai deu os livros, mas meu pai era conservador. E eu não era conservador. E o pai, se for esperto, recebe muita coisa do filho. Eu fui o primeiro leitor dele. Amor eu achei fantástico, extremamente pessoal. Em Sexo, eu identifiquei alguma coisa de José Agrippino de Paula, que é aquele lado da repetição, da redundância. Mas o fato dele vir com esse tipo de coisa, me ensina principalmente a audácia. Muita gente pensava que essa geração mais jovem ia vir para o lado mais comercial. E não foi o caso do André, nem desses outros. Pelo contrário. Eu entreguei Amor para a editora Relume Dumará e eles não quiseram publicar. Foi editado pela DuBolso e a crítica foi muito positiva. Temos críticos de outras gerações que são capazes de entender uma nova geração, e isso é muito importante. Não vou entrar com juízo de valor, mas temos o Wilson Martins, que é do Paraná, que é um crítico mais conservador. Ele dificilmente pegará a literatura do André, e de outros, e destacará ou dará estímulo… O Bernardo Carvalho poderá fazer isso. O André me provocou. E me incentiva muito. Nessa edição do Junk-box, ele foi um dos maiores incentivadores.

• O que você achou da adaptação para o cinema do A senhorita Simpson, com o título de Bossa Nova?
Na verdade, não tem nada a ver com o livro. Eu não tenho o que dizer daquilo. É a cara do Bruno Barreto. Ele fez uma comédia romântica para agradar ao grande público. Quem ia fazer primeiro era o Arnaldo Jabor, que chegou até mesmo a escrever o roteiro. E era muito mais interessante. Tinha uma coisa assim: paralelamente à trama dos alunos, ia haver a trama do livrinho de inglês. Ia ser muito legal. O Jabor é um cineasta bem mais inquieto do que o Bruno. Ele é um cara muito inteligente. Mas, de qualquer maneira, o cinema ia sacrificar muitos personagens. Há personagens demais. O Jabor mesmo disse que o público não ia se fixar em tantos personagens secundários. Mas eu gosto desses personagens secundários, dessas histórias paralelas.

• Você já escreveu críticas, resenhas… Isso não te interessa mais?
Gosto de fazer resenha. Gostei de fazer pro O Estado de S. Paulo e para a Folha de S. Paulo. É uma maneira de dialogar com o leitor. Na Veja, eu fiz e não deu certo. Eles mexeram muito. Os textos que estão ali não são meus de jeito nenhum. Fiz duas resenhas para a revista. Quando me ofereceram, achei que poderia ser uma experiência fascinante. Mas não foi nem para mim e, acho, nem para eles. Na segunda, escrevi sobre um livro de que não gostei. Eles pediram para eu reduzir pela metade. E eu falei para eles reduzirem. A partir daí, a relação se desfez. A Veja tem um texto padrão que acaba prevalecendo…

• Quais as suas influências estrangeiras na literatura?
Li de tudo. No princípio, eu lia muito Faulkner. Mas depois eu vi que era uma canoa furada. Acho que as influências estão todas diluídas. Quero ter essa veleidade de achar que eu sou um escritor com uma voz própria. Li de tudo e sem organização. Passo de um autor francês para inglês, de um moderno para um tradicional… É uma mistureba danada. Joyce me impressionou muito pela liberdade. Mas não teria competência para escrever da forma como ele escrevia.

• Você é formado em Direito, mas nunca exerceu a profissão de advogado.
Isso. Nos tempos da faculdade, em Minas Gerais, eu ficava mais tempo nos botecos. Tinha um pessoal que escrevia, lá. A gente lançou um livro que se chamava Porta. Era de um pessoal que freqüentava a porta da escola. Uma das curiosidades é que um dos autores é José Francisco Rezek, que depois veio a ser Ministro do Supremo Tribunal Federal e Ministro do Collor. Tem dois contos dele lá. Nem trabalhei muito com Direito. Comecei trabalhando com um juiz. Eu batia sentenças. Ele gostava porque eu sabia escrever, então ele podia fazer a sentença mais simples. Ele escrevia bem, mas tinha consciência de que comigo não ia passar erro. E para mim era bom porque eu batia as sentenças e caía fora. Eu ia lá de sandália, calça jeans e camiseta. E o juiz Heros de Campos Jardins gostava de mim. A gente tinha uma boa relação. Ele sabia que eu escrevia e me incentivava muito. Dois presidentes do Tribunal, lá em Belo Horizonte, me convidaram para ser assessor de imprensa. Como eu tinha relações na imprensa, eu mandava as matérias do Tribunal para os jornais e os jornais publicavam. Então, os juízes não se importavam que eu escrevesse no Tribunal. Quando eu fui para o Rio era o contrário disso. Em Belo Horizonte, o presidente do Tribunal achava legal que tivesse um escritor trabalhando lá. No Rio, não. Escrevi muito pouco no Rio. Eu tentava. Consegui alguma coisa. Escrevi, inclusive, com papel timbrado. Isso é crime, é peculato. Mas eu usava não porque não queria comprar papel, é porque o papel estava ali, à minha disposição, na máquina. O mesmo papel que eu usava para bater as informações, de repente eu escrevia ali… O romance Amazona foi todo escrito em papel timbrado.

• Você se arrepende de alguma coisa que tenha escrito, tenha rasgado?
Não. Porque eu não rasgo, eu deixo de lado. Quando eu rasgo é porque é ruim mesmo. Eu deixo de lado… Espero que ninguém faça nada com eles. O pior é quando publicam e o material é ruim. Apesar de que eu não tenho essa importância. Existem alguns escritores importantes que têm algumas coisas publicadas pela família, e é um problema. Eu estava lendo Essas Histórias, do Guimarães Rosa, e ali há alguns contos fracos… Têm os cacoetes sem ter as virtudes. Não sei se ele estivesse vivo, se publicaria essas histórias…

• E romance, tem algum rascunho?
Não. Eu nunca fui muito romancista. Sempre fui mais de conto. Talvez pelo lado da preguiça. E eu acho que o conto tem esse lado da experiência formal. Eu gosto muito. De ler e escrever. Muitos romances, em determinados momentos, me cansam. Gosto de coisas novas. E isso eu vejo com contistas. Veja o caso do Ruffato, que escreveu esse “romance-conto” Eles eram muitos cavalos, que é um amontoado de contos. Pode ser lido de duas formas.

• A literatura tem muita dificuldade para interagir com a mídia. Há uma falta de articulação dos escritores?
Há um problema na divulgação. Eu tenho a sorte de receber muitos livros em casa. Nelson de Oliveira tem escrito para o Jornal do Brasil com certa regularidade sobre essa nova geração. Então é importante ler os suplementos literários. O problema é que muitos escritores têm seus livros publicados por editoras pequenas, que não têm um setor de divulgação muito grande. Uma das editoras que está publicando esse pessoal mais novo é a Ciência do Acidente. Tem um poder de fogo pequeno, mas é altamente simpática. Outra é a DuBolso. E já indica: o autor paga. Eu paguei essa edição do Junk-box.

LEIA RESENHA DE JUNK-BOX

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho