Em sua obra, a realidade se constitui figurativa para permitir a travessia por certas zonas do puro entendimento. É a escritura da emoção. A persuasão da fantasia expande-se em tensão com o real. Hélio Pólvora conjuga em seus contos literatura com significado. Afirmando que tudo é possível no terreno da invenção, escreve com densidade, com intensidade, com uma sutil ironia e com um manejo depurado da linguagem e uma estética sóbria, sutil, sugestiva, mesmo se utilizado, muitas vezes, de uma técnica cuja sintaxe parece em espiral, com frases longas, cheias de volteios e beleza. Nascido na Bahia e com larga experiência profissional no Rio de Janeiro, onde fez jornalismo e literatura, é autor de Os galos da aurora, Estranhos e assustados, O grito da perdiz, Mar de Azov e Rei dos Surubins, entre outros volumes de contos. Também conhecido nacionalmente como tradutor e crítico literário, assinou rodapés de crítica semanal no Jornal do Brasil e Correio Braziliense, e foi resenhista literário da revista Veja, durante anos. Tem contos em antologias nacionais e estrangeiras, e atualmente reside em Salvador, Bahia, onde é cronista de A Tarde.
• Vamos pelo começo: o senhor se lembra das circunstâncias e de quando começou a escrever?
Imagens se sucedem, embaralhadas, na minha lembrança. Me lembro mais exatamente de quando comecei a ler. Isso ocorreu em antologias escolares. Houve um livro, intitulado Crestomatia, de Rodegásio Taborda, que me apresentou escritores portugueses e brasileiros. Entre os nossos, páginas de Euclides, Gonçalves Dias, Casimiro, Pompéia, Coelho Neto, Machado e outros prosadores e poetas. Houve outras antologias, como os livros de leitura de Erasmo Braga e as Páginas floridas, de Silveira Bueno. Alguns textos, apreciados e por isso relidos muitas vezes, acabaram decorados. Ainda hoje eu recito As andorinhas de campinas, estrofes de Os Lusíadas e A última corrida de touros em Salvaterra. Eu estava contagiado pela literatura e não sabia. Pode parecer exagero, mas naqueles idos um curso primário equivalia a um vestibular de hoje. Tomei gosto pela leitura e, como vivia em cidade pequena do interior, de vida enfadonha, comecei a comprar livros. Não tínhamos a concorrência dos audiovisuais, muito menos os apelos dessa sociedade globalizada. Lia-se, enfiava-se a cara no livro. O temperamento introvertido, o pendor ao devaneio e à contemplação fizeram o resto. Há outro fator: nossa casa, mesmo a da fazenda, tinha livros, nela entravam jornais e folhetins. Meu pai sempre voltava da feira em Itabuna, aos sábados, com algum livro — e foi por seu intermédio que “conheci” Erico Verissimo. Minha mãe acompanhava enredos tenebrosos de ficcionistas franceses nos folhetins que mascates lhe vendiam mensalmente. Um dia, na escola, escrevi uma descrição que agradou ao mestre. Era sobre o mamoeiro no nosso quintal. Nada de especial, mas a minha visão do mamoeiro desfigurava-o, tal como certas pinturas modernas desfiguram a realidade fotográfica. Era sinal de que o vírus literário já me roía por dentro.
• Quanto de sua literatura é extraído da experiência pessoal?
Tudo — ou quase tudo. Longe, porém, a idéia de autobiografia. Todo escritor que adquire uma expressão e, por ela merece ser lido, escreverá a partir do seu ponto de vista, quer dizer, de um certo núcleo crítico em que entram consciência e coração, lucidez e sonho. Prosa de ficção é arte sempre pessoal, acompanha o autor ao longo de sua vida, recebe afluentes, sub-plots, agrega-se e se desagrega — até que, um dia, vem para o papel. O processo de criação é um rio subterrâneo do qual nem sempre ouvimos o marulhar. O que um ficcionista escreve, na ilusão de que está criando, ele apenas o arranca de dentro de si, acrescenta, suprime ou mistura, segundo as artes de sua composição. Ninguém a essa altura se daria ao trabalho de escrever um romance como O conde de Monte Cristo, nem aventuras do gênero de Stevenson. Escrevemos sobre perdas, ausências e buscas, sobre fracassos e êxtases, que são matérias do coração humano. Procuramos explicação ou justificativa para a vida, e também denunciamos situações torpes a que o homem está sujeito. Esse material passa por nossa sensibilidade, que fica exposta, é uma ferida aberta, aquela ferida que não cicatriza, como a do guerreiro grego Filoctetes. De modo que a experiência pessoal é o que conta: quanto maior, mais fundo o escritor tenderá a ir na sua danação, e também na maldição de sofrer ou viver outras vidas e outras dores.
• Li que o senhor se considera de formação neoclássica. Quais os escritores que mais o influenciaram? Foi muito afetado pelos ficcionistas da lost generation, pelos autores norte-americanos da primeira metade do século 20?
Eu não sei bem o que é “neoclássico”. Se falei nisso, foi inadvertidamente. Não saberia me definir. Sou uma conseqüência, é claro, do chamado romance (e conto) de 1930, aquele que tem forte vínculo com a terra, mas que, logo após os seus primeiros ensaios, começa a suprimir a paisagem para que o homem apareça — e, por fim, embora ainda presa ao chão, à moldura social, faz do homem o seu protagonista único. Uma literatura, portanto, de índole psicossocial, como a de Graciliano Ramos. Este foi um dos autores que ajudaram a deflagrar em mim o escritor. Quando li Angústia, parti logo para uma reavaliação do meu universo geográfico “localizado”, abri as janelas e olhei para longe. Olhei sobretudo para os meus interiores e procurei ver outras pessoas por dentro. A arte não imita a realidade. A arte é uma transfiguração da realidade, sem intenção de traí-la. Na aquisição dessa certeza, William Faulkner foi um mestre, como o foram Joseph Conrad, Anton Tchékhov — todos empenhados em preencher as entrelinhas com uma escrita en abyme. Você fala em lost generation. Sim, Hemingway foi outro guia, com ele aprende-se a importância da raw life, sem adornos retóricos, e aprende-se a fazer arte superior, ou seja: desenvolver a ação através do que as personagens fazem, dizem, pensam. O bom ficcionismo americano, desde Mark Twain, mostra que só se deve escrever sobre o que se conhece, o que feriu a emoção, o que é significativo, e sem berliques nem berloques — mas com um estilo consistente em que a prosa se deixe impregnar pela musicalidade e pelo sentimento poético.
• Há algum ambiente predileto para o senhor escrever? Segue uma disciplina, toma anotações? Descreva uma típica jornada de trabalho.
Se há, de fato, vontade de escrever, se ouvimos o pio das corujas (como diz Paulo Honório em S. Bernardo), ambientes pouco importam. Escrevi em redações de jornais, com os linotipos a matraquear, em meio a berros de um ou de outro. Faulkner gostaria de ter escrito num prostíbulo, durante o dia, quando as mulheres dormissem. Ambiente ótimo, decerto. Acho engraçado esses escritores que se dispõem a escrever tantas páginas por dia, que todos os dias se sentam diante do micro, ou da velha Remington. São macacos aplicados. Aníbal Machado aconselhava: “Se todo o teu corpo não participa do que escreves, guarda o papel e deixa para amanhã”. Sim, tomo notas, porque as idéias costumam fugir. Carrego sempre papel e caneta para tais visitas do que os românticos chamavam “musas”. Se é imperioso escrever, escrevo em qualquer lugar, a qualquer hora, sem disciplina — embora prefira o meu micro. O pior é quando vem o impulso e eu tenho um compromisso urgente. Me sinto logrado, infeliz, embrutecido.
• Parece haver em seus contos uma certa prefiguração: sente-se que a história foi planejada, que há um estabelecimento anterior de começo, meio e fim bem delineados. Parece que não há outra maneira de contar determinada história, que o conteúdo exige certa forma. O senhor projeta antecipadamente esse painel, em seus contos, ou tudo vai acontecendo naturalmente durante o processo da escrita?
Meu processo de criação resulta de um acúmulo gradativo de impressões, incidentes, estados de ânimo. Ficam na memória, ali se juntam numa argamassa intemporal que acaba por criar um segundo ou terceiro pisos. Ao ter certeza desse redimensionamento, dessa superestrutura, estou em condições de tentar escrever — no que sou, algumas vezes, surpreendido, porque, na medida em que a escrita avança, surgem situações novas, pontos de vista que mudam impressões preestabelecidas. Pode ocorrer também que o “planejamento” seja inconsciente, com sua nascente em um sonho, por exemplo. Cada história curta requer tratamento próprio, elas não devem ser metidas na camisa-de-força de um modelo, de uma técnica de composição. É tarefa do contista descobrir o melhor approach para a sua história — se na primeira ou na terceira pessoa, se através de um narrador-personagem ou do próprio escritor onisciente. Que efeito pretenderá atingir? É preciso escrever en toute lucidité. É verdade, não haveria, honestamente, duas maneiras diferentes de contar aquela história…
• Há uma alteração de musicalidade, de ritmo, entre seus primeiros contos e os contos, por exemplo, de Mar de Azov. O senhor poderia falar um pouco sobre essa mudança de tom, até mesmo de estilo?
O conto clássico desestruturou-se, mas não a ponto de nada narrar. Temos um compromisso com o ficcionismo, com o que pudermos sacar da vida sob forma de recriação. Mais importante do que contar, com princípio, meio e fim, tornou-se o como contar, no conto moderno. Isso nos leva à questão do estilo, que é a soma do ponto de vista com a arte de escrever do ficcionista. Os pais da moderna prosa de ficção do século passado me chamaram a atenção para a necessidade de carpintaria, em primeiro lugar, depois para o tom e o timbre, quer dizer, a escrita tem um ritmo, é uma melodia, a prosa precisa sair do prosaísmo para as sutilezas e encantos propiciados por uma impregnação poética. Concordo, houve uma mudança de forma e de densidade nos meus contos, hoje eu escrevo em busca de conceitos, de sínteses existenciais capazes de interessar o leitor sem rosto. O romance Luz de agosto, de Faulkner, foi, nesse sentido, uma revelação.
• Faulkner declarava que escrevia para deter o movimento, a vida. Hélio Pólvora escreve motivado pelo quê?
Escrever, para mim, tornou-se tão essencial quanto ler. São as atividades menos enfadonhas que conheço — e quando temos a impressão de que saíram a contento, elas nos exaltam, e deslumbram, e nos fazem andar pelas ruas em estado de graça e estupor, como aconteceu comigo depois da escrita de um certo conto. Um conto ou novela escritos equivale à velha pele que uma serpente abandona na margem do caminho. A escrita produz mudanças em nós que se refletem em nossa maneira de ser e de estar no mundo, de ver e conviver. No princípio era o Verbo, que, com sua força motora, engendrou o discurso com que nos iludem e iludimos. Esconder abismos ou cavar abismos, tudo dá no mesmo. A vida é absurda, somente a escrita lhe dá aparência de lógica. Escrevo como quem morre e como quem vive, a um só tempo, simultaneamente.
• É a Bahia um Estado de bons contistas? Por que os contistas baianos são tão pouco conhecidos no resto do país?
A Bahia teve Vasconcelos Maia, autor de um conto intitulado Sol que merece qualquer antologia. Também teve Adonias Filho (Léguas de promissão) e Jorge Medauar (Água preta, A procissão e os porcos, O incêndio, Estórias de menino). Não é muito, quanto à qualidade. Por quê? Talvez porque a retórica de Castro Alves, Arthur de Salles e outros, na poesia, e de Ruy Barbosa, Pedro Calmon e Afrânio Peixoto, na prosa, impedissem na história curta uma contração e densidade capazes de provocar epifanias. A Bahia parece pensar que ela se basta, que dispensa audiências nacionais — ou então que essas audiências deveriam formar-se naturalmente, sem o esforço da mercadologia.
• O que significa a experiência jornalística e ensaística para sua obra? Sendo o senhor também um crítico literário, o que pensa dessas práticas hoje no Brasil? Temos bons críticos ou temos bons resenhistas?
O jornalismo nos ensinou a ser concisos, o mais possível breves, e a escrever para transmitir significados. A rotina das redações introduz a disciplina — o que não quer dizer que estejamos sempre predispostos a escrever ficções. Quanto à atividade ensaística, tudo se resume em ligar e desligar a tomada… Parece difícil, mas sem treinamento não se forma o atleta. O jornalismo é um auxiliar da ficção e tem a sua literatura própria, as suas regras e conceitos, o seu timbre, o seu tom. Que não pretenda, porém, passar das páginas para uma permanência que somente a arte superior da escrita, seja em ficção ou não-ficção, obtém. A crítica está morta há tempo. Temos a troca de amabilidades, que é a crítica cordial, do toma lá, dá cá. São as farinhas trocadas. Esse tipo de crítica é uma empulhação, e de tanto nos habituarmos a ele, reagimos violentamente a mais leve restrição. Jornais e revistas encolheram o espaço reservado à literatura — e com isso a crítica foi refugiar-se nos sacrossantos recintos universitários, de onde se fazem ouvir pela boca de suas vestais, em geral em linguagem criptográfica. Prefiro um book-reviewer inteligente, honesto, desses que não tencionam competir em brilho com o autor.
• Há pouco tempo, andaram publicando uma coletânea com “os melhores” contistas do século 20. Mas contistas como Moreira Campos, Guimarães Rosa e o senhor, no entanto, foram excluídos. O que o senhor pensa de antologias?
Antologias, salvo raríssimas exceções, são ações entre amigos. Delas participam, primeiro, os amigos do organizador, em seguida os amigos dos amigos do organizador, desde que tenham um talento razoável. A antologia a que você se refere esqueceu Guimarães Rosa, segundo consta, por questões de direito autoral não resolvidas, mas não tem desculpas para a omissão de Moreira Campos. É lastimável, sobretudo quando se sabe que, na dita cuja, há contistas de muito menor expressão. Lastima-se também a exclusão de Adonias Filho e Jorge Medauar, baianos que marcaram a seu modo a contística brasileira. Nosso mal é estarmos fora do eixo cultural Rio-São Paulo, talvez de estarmos no Nordeste, aonde chega o badalar dos sinos dos conventículos literários do Sul, não para nos convocar à santa missa, onde todos são filhos de Deus, mas para nos impor a sua adoração. O fato de figurar em umas duas dezenas de antologias nacionais e algumas estrangeiras me dispensa do sentimento do despeito. Prefiro ficar de fora a fazer cavações indignas.
• Pratica-se hoje no Brasil um tipo de literatura preocupada com o transitório, a literatura em que o “castelo de areia” é também arte enquanto não vierem as ondas. O que houve com os cem anos de Stendhal? O senhor faz parte do grupo de escritores que acredita que somente o tempo é soberano em julgar o texto?
Muito escritor de renome tem advertido: literatura é coisa séria. Os deslumbrados fecham os ouvidos e vão em frente com empulhações que acabam competindo com o produto verdadeiro, à falta de críticos que separem o bom do ruim. Há um nivelamento por baixo. O texto transfigurador vê-se forçado a competir com o texto de literatura factual. O conto que é uma experiência de vida, um prolongamento de vida vê-se comparado ao chamado miniconto, que é uma burla. Somente o tempo, esse crítico supremo, poderá enterrar a má literatura.
• Imre Kertész escreveu que até os mais célebres escritores do mundo “se esforçariam em escrever desejando o sucesso”. Até que ponto o sucesso ou o fracasso lhe são relevantes?
Creio que se deveria escrever pela necessidade inarredável de escrever, sem pensar em êxito. Mas é claro que todos os que se exprimem pela arte desejam reconhecimento. E quanto mais cedo melhor. Aqui e agora, antes na terra do que nos golfões interestelares. O sucesso, no entanto, é uma loteria: contempla a uns, que parecem ter encontrado os temas e as vozes desejados pelo senhor leitor, e põe outros em insuportável compasso de espera. Convenhamos: o sucesso é um desejo muito humano. Uma conclusão é certa: quem desejar com afinco o êxito deve preparar receitas diet. Para mim, não se trata de êxito ou fracasso, senão de uma compulsão que, uma vez esgotada, se dá por satisfeita. Este é um pensamento que fica, eleva, honra e consola, como diria Machado de Assis.
• O senhor poderia esboçar um painel do conto? Tem futuro, o conto no Brasil?
Conto e narrador se completam quando o conto projeta a sombra do narrador. O conto conceptual, com significados humanos além do simples entretenimento, será sempre um prolongamento do seu narrador. Escrevam contos, convidou Machado de Assis. Enquanto são escritos, o conto da vida passa, sem que os narradores percebam. Sendo, pois, essencial, o conto garante lugar no futuro. Houve Machado, depois de Machado o vazio, até que o conto brasileiro ressurgisse em meados do século passado.