A escrita e a vida

Aos 80 anos e prestes a lançar novo livro, Ignácio de Loyola Brandão celebra a vida e recorda momentos marcantes de sua longa e exitosa carreira literária
23/07/2016

Ignácio de Loyola Brandão é um grande trabalhador da literatura brasileira. Sua bibliografia é extensa e passa por praticamente todos os gêneros literários (e até não literários, como no caso das biografias que escreveu sobre personagens da História recente do país). O escritor diz que a intensa produção já foi motivo de críticas. O que nunca mudou seu ritmo de publicação.

Conhecido pelas cadernetas em que anota ideias e pensamentos para possíveis livros, o escritor nascido em Araraquara em 31 de julho de 1936 é uma espécie de workaholic literário. Em 50 anos de atividade, desde que estreou com a coletânea de contos Depois do sol, produziu muito — segundo uma lista que o próprio autor enviou, são mais de 80 livros. Também viajou muito. Conheceu muita gente. Tem muita coisa na cabeça. E é a partir dessa vasta experiência que ele conduz esta entrevista, publicada no mês em que comemora 80 anos.

Sim, Ignácio conduz o papo, porque até perguntas a si mesmo ele propôs. Recorda passagens da juventude, volta à infância, cita viagens e lugares, foge do assunto para retomá-lo após uma ou outra elucubração. Respostas condizentes com o melhor de sua literatura, de livros anárquicos na forma e cheios de referências no conteúdo, tal como Zero e Não verás país nenhum. Duas grandes obras da literatura brasileira.

Viajante contumaz, cinéfilo incorrigível, apreciador da beleza feminina, felliniano de carteirinha, entusiasta dos contrastes das metrópoles (em especial de São Paulo, claro) e homem eternamente marcado pelas suas raízes, Ignácio é uma força da natureza. Homem de várias facetas. Aos leitores do Rascunho, ele mesmo conta como percorreu (e percorre) a tortuosa — mas ainda assim doce — estrada da vida.

• O senhor fará 80 anos no final de julho (dia 31). Ao longo de sua trajetória, escreveu livros instigantes, que tiveram milhares de leitores, ganhou prêmios importantes, viajou pelo Brasil e pelo mundo para falar de seu trabalho e, ainda em vida, entrou para o cânone da literatura brasileira. Os escritores, em geral, sempre acham que não foram devidamente reconhecidos. O senhor se sente plenamente realizado?
Se os critérios são ter construído (ou estar ainda construindo) uma carreira. Ter elogios e ataques da crítica (não tivesse seria estranho; se a Flora Sussekind me elogiasse, eu odiaria). Ter livros traduzidos e ter a obra adotada em escolas. Viajar (e viajo) pelo Brasil inteiro — quase não há um cantinho que não tenha conhecido. Ter algumas teses acadêmicas sobre minha literatura. Saber que alguns livros saíram como eu queria, outros não (não pergunte quais, mas eu sei). Saber que tenho amigos no mundo dos escritores. Saber que tenho inimigos entre os escritores (chatice não ter). Então sou reconhecido. Só que sei, o reconhecimento hoje pode ser o esquecimento amanhã. Onde estão Osman Lins, Autran Dourado, Antonio Callado, Cornélio Pena, Samuel Rawet, Rosário Fusco, Campos de Carvalho, José Agrippino de Paula, Ricardo Ramos? Quantos anos se passaram até que Maura Lopes Cançado tivesse uma reedição? Sei também que certas situações confortáveis são desconfortáveis, e sendo o mundo literário de momentos de inclusão e exclusão, o jeito é ficar alerta. E isso significa o quê? Trabalhar. Desse ponto de vista sou realizado. Claro que não vou parar, não morri. Vinte anos atrás, quase fui (leiam Veia bailarina), mas fiquei, não sei se para o bem ou para o mal. Se olho para O menino que vendia palavras e Os olhos cegos dos cavalos loucos, acho que fiquei para o bem. A idade traz uma certeza: nosso tempo vai diminuindo. Então, temos de correr? Eu, ao contrário, hoje não corro mais, descobri a calma. Sei que não tenho muito tempo pela frente (sou realista), mas ainda tenho projetos, sonhos, ideias, planos. Não tenho mais tempo de fazer tudo. Mas gostaria de ser como aquela atleta olímpica [Gabrielle Andersen] que, muitos anos atrás, virou heroína ao chegar ao final de uma maratona se arrastando, quase caindo, desmaiando, mas evitando que alguém a ajudasse. E chegou ao final. Quanto à literatura, peço aos amigos que um dia me alertem: você está batendo pino, melhor parar. De repente, depois desta entrevista vem um monte de gente avisando que chegou a hora.

Ilustração: Ignácio de Loyola Brandão por Osvalter

Sei também que certas situações confortáveis são desconfortáveis, e sendo o mundo literário de momentos de inclusão e exclusão, o jeito é ficar alerta. E isso significa o quê? Trabalhar.

Seu primeiro romance, Bebel que a cidade comeu, já apresenta certa polifonia narrativa, característica que estaria presente em trabalhos futuros. A utilização daqueles recursos — recortes de jornal, quadrinhos, propaganda, etc. — era parte de seu projeto literário na época? Ou seja, uma tentativa de achar um “estilo” de narrativa?
Quando escrevi Bebel, meu primeiro romance, já tinha publicado Depois do sol, em 1965, minha estreia. Antes, tinha escrito quatro romances tenebrosos, que enterrei no quintal da minha casa em Araraquara, para que ninguém encontrasse. Um deles, Cravo sobre gim seco, o Antonio Candido leu e me aconselhou a esquecer. Havia onze personagens e todos falavam igual. “Por que não faz um monólogo?”, disse o grande e generoso professor. Um dia, reli Manhattan transfer, de John Dos Passos, publicado em 1925, quando o autor estava com apenas 29 anos. Já tinha lido em Araraquara, na altura dos 16 anos. Encontrei na biblioteca municipal um exemplar editado em Curitiba, não me lembro a editora. Uma edição muito simples, quase caseira. Papel de jornal. Mas me encantei pelo livro. Com sua forma moderna, sua visão de Nova York. Trouxe o livro para São Paulo, porque São Paulo era uma Nova York para mim. Reli e cada vez mais achava as duas cidades idênticas. Nunca tinha feito uma grande viagem, mas a Nova York do cinema americano me deslumbrava. Comecei a escrever Bebel a partir de uma reportagem que fiz sobre o suicídio de uma promissora bailarina clássica, que se atirou de uma janela, depois de descobrir que tinha câncer em uma das pernas e teria de amputá-la. Publiquei a matéria, mas o assunto ficou na cabeça. Nessa época eu fazia muitas reportagens com jovens candidatas à garota propaganda, para a Última Hora (havia quem dissesse o Última Hora, ou seja, o jornal Última Hora. Mas, para nós que trabalhamos lá, era feminino, carinhoso). A partir daquele suicídio, decidi contar a história de uma carreira que não dá certo, porque eu conhecia dezenas de jovens que tentavam e nunca conseguiam nada. Conhecia todo backstage de teatro, cinema e TV. Quando comecei, percebi que podia ser mais, ser uma história que se passava em São Paulo e deveria ter a cara da cidade e da sua gente. Uma noite, ao fazer a mudança de uma pensão para meu primeiro apartamento, na praça Roosevelt, lendário lugar de São Paulo, redescobri Dos Passos. E pensei: esta é a estrutura, o jeito de ser da cidade, de como vivíamos, daquilo que líamos, assistíamos, comíamos. Vieram então as notícias, os classificados, as cartas dos fãs de Bebel, as manchetes de jornal, o barulho das ruas. Lendo Bebel, você encontra a São Paulo dos anos 1960 sendo modificada. A rua da Consolação inteira alargada, os bondes e trilhos sendo retirados, as putas nas ruas, os primeiros travestis, os inferninhos, os cinemas. Escrito após o golpe militar, ali está todo o ambiente, as informações em forma de notícia sobre o movimento subversivo, os atentados, as mortes. Foi uma decisão para aquele romance. Eu não sabia escrever romances, mas escrevia, saía do jornal, corria para casa e escrevia, escrevia a noite inteira, e Bebel acontecia, aquilo jorrava, eu vivia e transformava o que vivia em literatura, juntava material lido e vivido por outros, imaginava, havia muito de mim, mas disfarçava, era e não era minha vida, era a vida que eu gostaria de viver. Não, não, Bebel não foi parte de um projeto literário. Eu nem me considerava escritor, só queria sê-lo. Imagine, nem sabia o que era projeto literário. O que eu tinha era um projeto para aquele livro. Mas a estrutura dele foi ampliada, desenvolvida à exaustão e usada em Zero. Aí sim havia um projeto.

Em um papo que tivemos há alguns anos, quando o senhor lançava um livro com suas memórias sobre os Estados Unidos (Acordei em Woodstock), disse-me que Zero e Não verás país nenhum eram seus dois “marcos”, ou longest drive, expressão que usou para explicar os êxitos dos romances. Depois desses livros, vieram vários outros. Mas por que eles foram tão especiais? O que explica, do ponto de vista da criação, essas obras terem saído como saíram?
A não ser os grandes editores americanos — e alguns editores brasileiros que abrem nichos especiais —, poucos sabem por que um livro funciona e estoura. A maioria acontece num repente, até assusta. Zero foi produto de nove anos de trabalho. Iniciado em 1964, logo depois do golpe, ele se estendeu até 1973, quando terminei a primeira versão. Um livro violento, de raiva. Eu estava indignado, puto com os militares, odiava a censura aos livros e à imprensa, que eu sofria diretamente. Como lutar? Ir jogar bombas? Pegar em armas? Não sou disso. Então criei minha “bomba”. Aquele livro foi minha bomba. Que estourou! Zero foi emblemático por ter sido o primeiro livro que contou como eram os bastidores do Brasil durante a ditadura. A dificuldade de viver, a ameaça constante da morte, os assaltos, as explosões, o caos, as torturas, o medo permanente. Fiz tudo para escrever um livro não panfletário. Queria um livro que chocasse e arrebentasse, não um manual para guerrilhas, para montar bomba, colocar armas na mão das pessoas. Quando os leitores tiveram Zero na mão, se assustaram e se deslumbraram com a forma solta, livre, despedaçada, porque era isso que se queria fazer, algo solto, que provocasse e revelasse. Nunca mais escrevi um livro com tanta liberdade, esquecendo normas, regras, narrativa com começo, meio e fim, explicações, descrições físicas e psicológicas dos personagens. Não havia tempo para isso. As coisas aconteciam, porque aconteciam assim na vida real e os leitores receberam esse impacto. Então veio a proibição, passei três anos com meu livro enjaulado, os estudantes faziam cópias, os que tinham o livro liam e passavam para a frente, e assim formou-se um mito à minha revelia. Ajudou muito o fato de ele ter sido lançado primeiro na Itália, pela Feltrinelli, a mesma editora que revelou Pasternak e o Dr. Jivago para o mundo. Quando veio a liberação, Zero foi para a Codecri, editora do Pasquim. O jornal ajudou muito na explosão de vendas. Estava sempre na lista dos mais vendidos e era um livro difícil de ler e seguir. Nunca me esqueço do relançamento de Zero, após a liberação, em 1979, na Livraria Capitu, em São Paulo, um livraria pequena, dirigida por Ana Elena, Cristina e Patricia, três superjovens idealistas. Formou-se uma fila de três quadras, que ia se renovando, porque o espaço era mínimo dentro da livraria. Começou a chover e ninguém arredou pé, as pessoas chegavam molhadas, me abraçavam, todos estávamos molhados, ninguém se importando, foi chamada de “a noite da liberdade”. Zero foi o primeiro livro liberado entre os 500 ou mais títulos proibidos pela censura.

E sob o ponto de vista da criação, por que os livros “aconteceram”?
Certa vez, perguntaram a [Luigi] Pirandello, dramaturgo italiano, prêmio Nobel, como ele explicava a peça Seis personagens em busca de um autor. Sua resposta me marcou. Ele disse: “Não sei, sou apenas o autor”. Confesso que também não sei explicar por que Zero e Não verás país nenhum se transformaram em longest drives. Muita gente dizia: Zero vende porque foi proibido. Porém, continua vendendo até hoje, já chegou a quase 1 milhão de exemplares vendidos ao longo desses anos. Foi liberado em 1979. Portanto está nas livrarias há 37 anos e hoje não tem mais censura, e esperamos que não tenha. Com Não verás, deu-se um fato espantoso, sem explicação. Quando a Codecri o lançou, em novembro de 1981, a primeira edição, de cinco mil exemplares, esgotou em uma semana. Era preciso rodar outra, imediatamente. Mas era véspera de Natal, tempo de cartões e boas festas. A editora encontrou as gráficas sem espaço na programação e sem papel. Foi feito um tour de force e saíram mais 10 mil exemplares. Esgotados. Então, rodou, rodou, rodou. Continua até hoje, está sempre na lista de adoção de colégios e universidades. Muita gente comparou a Admirável mundo novo [clássico de Aldous Huxley]. Li, mas é diferente. Falaram de 1984. É diferente. Este país sem árvores, sem água, o Amazonas como deserto, as cidades sob violência, as grades fechando edifícios e casas, câmeras de segurança, o sol e o calor matando as pessoas, foram invenções minhas a partir do exagero dos noticiários sobre o meio ambiente. O meu país absurdo se transformou em realidade. A vida copiou a ficção. Sempre achei que Zero e Não Verás seriam tremendos fracassos. Tive enorme ansiedade antes do lançamento dos dois livros, pois são pesados — ainda que contenham profunda ironia, sarcasmo, humor negro —, mas, mesmo assim, são lidos. A violência da realidade superou tudo. Não Verás hoje é róseo, ainda que cínico. Quando o livro está impresso, desliga-se de nós, vive vida própria, liberta-se. Durante anos, tive um problema. Falavam de Loyola, falavam de Zero. Loyola-Zero. Estava amarrado a esse livro. Um estigma, uma marca. Será que serei autor de um livro só? Somente o impacto de Não Verás me libertou, me deu sobrevida. E se você analisar, as estruturas de ambos são antagônicas. Um é fragmentado, estilhaçado. O outro, convencional, tradicional, com começo, meio e fim, tudo no lugar. Mas cutuca o tempo inteiro, incomoda. Na minha cabeça, o regime político que comanda o país em Não Verás veio da ditadura de Zero. Essa ditadura cujos efeitos recebemos até hoje.

Ignácio entrevista JK.

Durante anos, tive um problema. Falavam de Loyola, falavam de Zero. Loyola-Zero. Estava amarrado a esse livro. Um estigma, uma marca. Será que serei autor de um livro só? Somente o impacto de Não Verás me libertou, me deu sobrevida.

Muitos de seus livros têm em comum uma visão surreal da vida, sempre sugerindo outras possibilidades para o cotidiano e os fatos. Não verás país nenhum é uma distopia. Já Dentes ao sol, uma narrativa tão anárquica que desafia a elaboração de uma sinopse que dê, minimamente, conta de tudo que acontece no romance. Isso para citar apenas dois exemplos. De onde vem essa predileção por narrativas desestabilizantes? É uma coisa genuína do escritor Loyola Brandão, ou esse “estilo” foi moldado a partir de seu repertório cultural?
Vai lá saber! Os teóricos que expliquem quando minha obra se completar. Se é que ela tem seu valor. Escrevo. Não posso esquecer que sofri por anos e anos a castração da censura, a necessidade muitas vezes de usar a metáfora, a fábula, o surreal para disfarçar o que queria dizer. Mesmo em Dentes ao sol, que considero um romance realista, esse fantástico aparece. E fico espantado quando você me diz que ele é anárquico. Ali é minha cidade — e este é um de meus livros prediletos. É o interior fechado, a vigilância de uns sobre os outros, as mentiras que corriam, as fantasias sobre determinadas pessoas, o mundo doentio de uma sociedade cheia de preconceitos, conservadorismo, fofoqueira, moralista, cada um fechado em si, desconfiado do outro. Será que a Araraquara do romance não é o mundo de hoje? A minha aldeia tornou-se universal? Daí as histórias dentro da narrativa, denominadas OS FATOS ATRÁS DOS MUROS. Talvez as pessoas e a crítica não tenham entendido o livro, daí o mutismo sobre ele. Passou ignorado, o que sempre me doeu. Minhas narrativas são desestabilizantes? Ora, a vida é desestabilizante, não vê e não reflete quem não quer. Os momentos históricos brasileiros têm sido continuamente desestabilizantes. O que é o período em que estamos vivendo agora? Eu apenas copio e transfiguro a vida real. Nada mais. É tão simples. Diga, é estável um país que tem um ministério com oito titulares envolvidos em processos de roubo, suborno e propina?

Quando o leitor chega ao fim de Zero e de Não verás país nenhum, sabe que as histórias não serão esquecidas tão cedo. Isso, no fundo, é o grande objetivo de todo escritor?
Jamais esqueço a primeira lição de “técnica literária”, que tive com Lourdes Prado, a mulher que me ensinou a ler e a escrever, continuando o trabalho de Cristina Machado, minha primeira professora. Quando em uma redação dei um final inesperado ao conto Branca de Neve, que ela tinha mandado a classe reescrever (reescrever, dizia, é aprender a escrever), matando todos os anões, a classe deu uma gargalhada, adorou e durante dias falaram do meu texto. Foi quando Lourdes comentou: “Sempre que o final de uma história nos surpreende, espanta, é porque ela foi bem-sucedida”. Só para se ter uma ideia, o final de Zero reescrevi 23 vezes. E o de Não Verás, nada menos que 38 vezes, até encontrar o tom certo. Como esses dois livros citados documentam literariamente uma realidade que tem tons de irrealidade, eles chocaram, emocionaram, impactaram. Creia, sou apenas o autor.

Toda entrevista que pretenda repassar fatos de sua carreira, não tem jeito, precisa mencionar livros como Zero e Não verás país nenhum, como acabei de fazer. Mas, em sua opinião, que trabalho de sua bibliografia mereceria mais atenção da crítica?
Já disse antes e repito: nunca leram direito o Dentes ao sol. Aliás, o único capista que o entendeu foi o desenhista da edição americana, lançado pela editora Dalkey, de Illinois. Ele mostra a fechadura de uma porta. Era isso. Como você observou, esse romance tem tanta coisa por trás que deve ter passado despercebido. A tradução do título também é muito boa: Teeth under the sun. Ou seja, Dentes sob o sol. Jamais fizeram a ligação entre Cadeiras proibidas e Dentes ao sol, em relação ao fantástico. Dois livros de 1976, em plena ditadura militar. Outro livro que passou em brancas nuvens foi O beijo não vem da boca. Até o considerado Wilson Martins — que sempre me apoiou muito — disse uma frase curiosa ao comentar o livro. Escreveu: “Eu queria ter tantas mulheres quanto o Loyola teve”. Confundiu, ele que era um mestre, o personagem com o autor. Wilson sempre me levou às aulas dele em Nova York, cada vez que passei por lá. Eu diria ainda que Cadeiras proibidas poderia ter tido melhor recepção. Curioso que, lançado nos anos 1970 e esquecido, estourou entre os jovens nos anos 1990 e agora neste milênio. Bomba de efeito retardado. Não é reclamação, é um apontamento. A crítica que escreva o que quiser, é a função dela. Mas há coisas que me alegram. Em 1980, ao passar por Albuquerque, no Novo México, dei palestras para as turmas do professor, e brasilianista de primeira, John Tollman. Depois, fomos jantar. No restaurante, um jovem estudante que tinha acabado de ler, em português, Dentes ao sol, disse-me: “Foi curioso, estranho e ao mesmo tempo bom, ao ler Dentes ao sol, descobrir que tudo parece se passar aqui nesta minha cidade, tão igual”. Pronto, o livro tinha ganhado universalidade.

O romance é uma grande trepada, múltiplos orgasmos, enquanto o conto e a crônica são rapidinhas. Ainda que rapidinhas que nos levem a trabalhar muito, até o acerto final.

Desde de Bebel que a cidade comeu, São Paulo é pano de fundo constante em seus livros. Que sentimento a cidade exerce no senhor? Acha que a literatura pode contribuir para o imaginário de uma cidade ou a relação é inversa, a cidade é sempre a matriz da inspiração?
Assim como Woody Allen tem sua Nova York, Fellini tem sua Rimini, tenho a minha São Paulo. Longe de mim comparar-me aos dois. Usei-os como referências. Meu pai era apaixonado por São Paulo e trazia os filhos para passear aqui. Eram viagens deslumbrantes. Íamos à catedral da Sé, ainda em construção (e era maravilhoso ver um bonde entrando na igreja para transportar material), ao Museu do Ipiranga, viajávamos no bonde Penha-Lapa horas e horas, passávamos sobre os viadutos do Chá e de Santa Ifigênia, íamos à estação da Sorocabana e onde hoje está a Sala São Paulo. Subíamos ao Martinelli, assistíamos a filmes no cine Metro, hoje um templo de uma dessas religiões caça-níqueis. Ah! todas as salas Metro do mundo inteiro eram iguais, barrocas, coloridas, delirante: cinema era pura magia. Jamais esqueço o primeiro anúncio luminoso que vi, inteiro em neon, em cima da antiga Light, ao lado do Mappin. Publicidade de um café, mostrava o bule se inclinando e o café caindo na xícara por meio do movimento de luzes. Desde que cheguei, em 1957, gostei e odiei, amei e detestei, tivemos grandes brigas, a cidade e eu, mas daqui não saio. Ela é personagem em 80% de minha obra. Por isso adorei quando me convidaram para escrever crônicas sobre a cidade. O título de minha coluna era “São Paulo Sociedade Anônima”, em homenagem a Luís Sérgio Person, o cineasta, que amava a cidade como eu. Sei pelo cheiro quando estou chegando em São Paulo. Ela tem mil cheiros. Quando assisti Amarcord, de Fellini, em que ele reconstitui Rimini, sua cidade natal, eu quis fazer o mesmo com Araraquara. Daí o romance A altura e a largura do nada, que recebeu total indiferença da crítica. Não tenho nenhum recorte, nenhuma resenha, nada. Silêncio. Nem uma palavra. E trata-se de um livro que tem uma estrutura igualmente curiosa, uma coleção de histórias e personagens que se entrelaçam.

A metrópole, com suas contradições, o fascina?
No meu livro Solidão no fundo da agulha, de 2013, escrevi: “Por que o cheiro repulsivo de São Paulo me fascinava?”. Quando entrei no apartamento no bairro do Pari, em 1957, numa esquina da Rua Bresser, onde o bonde fazia a curva, senti um cheiro esquisito, enjoativo. Não sabia que era do gás. Os relógios de gás ficavam na entrada dos prédios e muitos eram defeituosos, com vazamentos. Não sei como não havia explosões. Logo passei a identificar São Paulo pelos cheiros. Quando passava pelo Parque Dom Pedro, sentia o odor que vinha da usina do Gasômetro. Diziam que antigamente as mães levavam os filhos com problema de asma ou de pulmão para cheirar os respiradouros da usina. São Paulo também tinha o cheiro da mistura dos escapamentos, do asfalto quente, da poluição (ainda não se usava esta palavra), dos bueiros, do lixo, do atrito das rodas de ferro dos bondes com os trilhos, tudo isso era símbolo da cidade grande. São Paulo era o cheiro gorduroso da fritura de milhares de pastéis nas feiras livres e nas pastelarias. Não me repugnava, não me fazia mal. Fascinava-me. Deixava-me deliciado. Pequeno mistério do prosaico cotidiano. Dia desses, 55 anos depois, o fascínio me foi desvendado de modo poético. O cronista Lee Siegel, americano que escreve no jornal O Estado de S. Paulo, falando da Nova York de sua juventude, me desvendou: “Quando somos jovens, o fedor de uma grande cidade é afrodisíaco”.

Manhattan Transfer, de John Dos Passos, é um romance que, além das experimentações, também utiliza a cidade como personagem. Essa obra foi um modelo para o senhor? E, aliás, existe algum escritor em que o senhor reconheça algum parentesco com sua obra?
Além de Dos Passos, Graciliano Ramos, na sua linguagem crua, descarnada. Tentei escrever como Hemingway, que dizia: “Escrever é a arte de cortar”. Imaginei que seria o máximo escrever como Faulkner, até descobrir que aquele barroquismo nada tinha a ver comigo, ainda que me deslumbre. Ao ler Francis Scott Fitzgerald, pensei: “Quero retratar assim meu tempo, as décadas 1950 e 1960, os anos de formação”. O que realmente me influenciou foi a linguagem cinematográfica. Quanto ao parentesco com minha obra, você vai ter que perguntar a algum teórico. O curioso é que Zero fez muito barulho, mas não influenciou ninguém. É um livro solitário dentro da literatura, sem filhos, amigos, parentes. Há um autor hoje quase desconhecido que teve influência sobre minha forma de escrever, com um toque pessoal e com simplicidade: William Saroyan, americano de origem armênia, que foi enorme sucesso entre os anos 1930 e 1960, declinando depois. Seus contos, narrados de forma coloquial — como se o autor estivesse conversando com o leitor —, foram inspiração para meu jeito de escrever crônicas.

Ilustração: Ignácio de Loyola Brandão por Osvalter

O jornal, assim como a publicidade, consumiu muitos talentos que teriam feito carreira na literatura. Convivi com vários. Frustrados, alcoólatras, deprimidos, alguns bem ricos.

Entre os escritores mais inventivos do século 20, William Faulkner talvez tenha sido o que melhor conjugou experimentos de linguagem com boas tramas. O autor de Palmeiras selvagens, por mais que tenha se esmerado em alcançar uma linguagem sofisticada, nunca abdicou da boa história. Seus livros sempre me pareceram ter essa premissa. A grande literatura, para o senhor, passa por esse tipo de conjunção?
Desde o poema de Gilgamesh, literatura é história, narrativa, personagens, seja qual for a forma que o autor utiliza. Cada um descobre a sua. Livros cerebrais, livros revolucionários, livros inovadores sem um plot, um enredo, não têm nada a ver. A literatura vive de personagens e de conflitos. Veja o fracasso do nouveau-roman francês. Os grandes romances de Dickens, Cervantes, Stendhal, Theodore Dreiser, Machado de Assis, Balzac, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Alberto Moravia, Tolstói, Dostoiévski, Hemingway, John Updike, Steinbeck, Gabriel García Márquez, Thomas Mann, Salinger, Saramago, José Cardoso Pires, Juan Rulfo, Augusto Roa Bastos e milhares de outros permaneceram porque contaram (contam) histórias. Até mesmo o difícil Ulisses, de James Joyce, tem uma história, contada de maneira peculiar.

Em relação à sua vida de leitor, gostaria que fizesse um breve inventário do tipo de autor e livro que leu. Posto de outra forma, o senhor é um leitor metódico ou anárquico (no sentido de fazer escolhas mais aleatórias)?
Anárquico. Leio três livros ao mesmo tempo, em diferentes horários. Neste momento releio A ilha de Arturo, de Elsa Morante, Entre aspas, de Fernando Eichenberg, um jornalista que produziu um volume de entrevistas, semelhantes aos da Paris Review, e Do PT das lutas sociais ao PT do poder, de José de Souza Martins, percuciente análise do crescimento e decadência desse partido que galvanizou o país e o mundo e se afundou na corrupção. Mas, dos primeiros momentos como leitor, lembro-me quando meu pai me deu uma versão para crianças do Robinson Crusoe. Fiquei fascinado e aterrorizado. A solidão de Robinson era apavorante. Outro livro que me pegou: Simbad, o marujo. Aquele viajante era um deslumbre. Eu queria viajar também. Outro que me pegou: Pinóquio. Agora, quando li As caçadas de Pedrinho, foi pura magia. Eu me tornei Pedrinho e caçava pelos quintais de Araraquara. Devorei Lobato inteiro. Felizmente estão reeditando a obra dele e já comecei a comprar para meus netos Pedro, Lucas, Felipe e Stella.

E depois, na fase adulta?
Li e invejei Françoise Sagan, espanto de minha geração. Tive a fase sartriana, li Simone de Beauvoir e Albert Camus, Boris Vian e, claro, Saint-Exupéry (Voo noturno é um primor). Duras e Yourcenar. Até hoje gosto muito de Jacques Prévert. Assim como passei, nos anos 1960, pelo Jack Kerouac, do On the road (preciso reler, tenho dúvidas). Na fase americana, li Truman Capote, Tennessee Williams, Theodore Dreiser. Erskine Caldwell — adorava os contos dele —, James Agee, Sinclair Lewis, James Jones, Norman Mailer, Philip K. Dick, John Hersey, Carson McCullers — idolatro, respeito, venero essa mulher —, William Styron, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, P. D. James, James Ellroy, James Cain, Jonathan Kellerman, Ruth Rendell e Agatha Christie, O. Henry, John Updike. Ah, como adorei A. J. Cronin aos 16 anos, meu pai tinha toda a coleção. Ainda releio A cidadela. Gosto de reler e agora tenho tempo. Tenho todos da Patrícia Highsmith. Li Herman Hesse, Charles Morgan, Kafka, Somerset Maugham. Minha ironia e amor pela desestabilização vem muito de Pitigrilli, que ninguém mais sabe quem foi, e de Giovanni Papini. Li Cesare Pavese, Vasco Pratolini, Moravia, Elsa Morante, Antonio Tabucchi (que traduziu Zero para o italiano). Entre brasileiros, aos 12 anos tinha lido todo Jorge Amado, José Lins do Rego. Raquel de Queiroz, com o tempo devorei Lygia Fagundes Telles (sento-me ao lado dela na Academia Paulista hoje), Lúcio Cardoso, Ariano Suassuna, Jorge Andrade, Cony, Nelson Rodrigues, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, Clarice Lispector (muito antes dela estar na moda), Fernando Sabino (desejei que Dentes ao sol fosse O encontro marcado de minha geração), Dalton Trevisan, Miguel Sanches Neto. Gostei demais, releio de vez em quando, deliciado, Um nome para matar, da esquecida Maria Alice Barroso, assim como acabei de comprar Hospício é Deus, dessa potente Maura Lopes Cançado. E Caio Fernando Abreu, Joyce Cavalcanti, Ferreira Gullar, Menalton Braff, João Carrascoza, Joca Reiners Terron, Evandro Afonso Ferreira. Sem esquecer um especial: João Almino. E uma descoberta recente, Sidney Rocha. E a sublime Marina Colasanti? Gosto de Ferreira Gullar, assim como de Affonso Romano de Sant’Anna, Moacyr Scliar, Antonio Callado, Verissimo e Raduan Nassar — com quem me encontro esporadicamente na Fnac, tentando resolver problemas de computador. Quantos leram este gênio que viveu recluso, Ricardo Guilherme Dicke? Ou Samuel Rawet? Ah, como sonhei — e ainda sonho — escrever uma saga como O tempo e o vento. Quando li, fiquei siderado. Quem, no Brasil, fez outro romance igual? Que domínio!

Um de seus livros de contos mais conhecidos, O homem que odiava segunda-feira, tem uma estrutura muito interessante: apesar de as histórias serem independentes, os temas se comunicam (um personagem quer eliminar a segunda-feira do calendário, outro perdeu a sombra, etc.). A mão forte do romancista traiu o contista nesse caso? Entre os vários gêneros a que se dedicou, o romance é onde se sente mais confortável como criador?
Gosto desse livro, muito lido pelos jovens. Ele tem parentesco com Cadeiras proibidas, mas é mais elaborado. Gosto de romance. Fico mais tempo com os personagens, viro e reviro as situações, mudo os caminhos, faço e refaço. Talvez porque sempre gostei de ler romances, narrativas longas como Os miseráveis, O corcunda de Notre Dame, Os Maias, Guerra e paz, Anna Karenina (ou Karienina), O legado de Humboldt, Doutor Jivago. O romance é uma grande trepada, múltiplos orgasmos, enquanto o conto e a crônica são rapidinhas. Ainda que rapidinhas que nos levem a trabalhar muito, até o acerto final. Escrever romance é escrever sobre vidas, conviver, gostar. Quando termino um romance, fico vazio. Depois de dez anos sem passar pelo romance, voltei a ele, está caminhando. Chama-se Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela [leia trecho inédito na página 29]. Título baseado em um poema de 1921, de Bertolt Brecht. O que é? Se eu contar, a história vai embora, não preciso escrever. Ponha aí entre minhas manias. Tenho dois ou três livros na cabeça. Infantis (ou infantojuvenis), uns cinco.

Em janeiro de 1958, com a estrela de cinema Giullieta Masina, que foi casada com Federico Fellini, ídolo do escritor brasileiro

O senhor também teve uma carreira importante no jornalismo. Trabalhou, entre outras redações, no Última Hora, famoso jornal de Samuel Wainer. Certa vez Hemingway disse que o jornalismo não faz mal a um escritor jovem, e pode ajudá-lo se ele sair dele a tempo. Como o senhor resolveu, em sua cabeça, essa questão tão batida e tão atual?
Comecei em jornal em 1952, com 16 anos exatos. Trabalhei na rua e em redações até 2010. Façamos as contas. 58 anos? É isso. A melhor parte para mim foi o jornalismo de jornal, de reportagem, rua, entrevistas sobre incêndios, inundações, polícia, crime, desastres, política. Revistas como Cláudia, Realidade, Planeta, Lui, Ciência e Vida e Vogue me fizeram viajar muito para o estrangeiro. Mas chegou um momento em que, ou separava as coisas, usando o jornalismo como tema, assunto, trampolim, ou misturaria as bolas e seria um jornalista daqueles que envelhecem na redação, tornam-se utensílios. O jornal, assim como a publicidade, consumiu muitos talentos que teriam feito carreira na literatura. Convivi com vários. Frustrados, alcoólatras, deprimidos, alguns bem ricos. A literatura, para mim, era o momento de liberdade, escrever do jeito que eu quisesse, sobre o que eu quisesse. Jornal era camisa de força, porque cada publicação obedece a ideologia do grupo que o comanda. O jornal me levou a lugares incríveis, conheci pessoas fascinantes e horripilantes, grandes e mesquinhas, generosas, invejáveis, cheias de compaixão. Aprendi sobre mediocridade e altivez, maldade e bondade. Com a crônica, continuo jornalista. Às vezes aceito fazer entrevistas ou artigos (e cobro bem por isso). Aprendi, sobretudo, a trabalhar numa boa com prazos. Prazo me obriga a produzir, me traz ansiedade e isso é essencial na criação. Zero nasceu de todas as matérias que o censor proibia na Última Hora. Juntei, transfigurei aquela realidade, virou literatura. Quase todos os meus romances e contos nasceram do dia a dia jornalístico.

É bastante conhecida a sua paixão pelo cinema. A literatura entrou em sua vida por meio dos filmes, quando ainda em Araraquara escrevia críticas para a Folha Ferroviária. Que tipo de cinéfilo o senhor foi e é?
Não, a literatura não entrou em minha vida por meio dos filmes. Amei cinema desde que assisti ao primeiro filme de minha vida, A canção de Bernadette, com Jennifer Jones, que vi no Cine Paratodos, em Araraquara, o mesmo cinema que aparece no romance Dentes ao sol. Difícil precisar a data, mas o filme deve ter sido exibido por volta de 1945. O que me encantou foi um conjunto de coisas: a sala imensa, o movimento das pessoas entrando, excitadas, conversando, rindo, acenando umas para as outras (pareceu-me uma festa). Depois comecei a comprar uma bala chamada Fruna. Era quadradinha e dentro vinha uma foto de um artista de cinema. Zé Celso, do Teatro Oficina, também colecionava, negociávamos as que “eram para troca”, como se dizia. Fundei um clube de cinema, era sócio do Clube de Cinema de Marília, frequentava a Cinemateca em São Paulo. Para mim, ir ao cinema era combater a solidão. Quantas vezes desejei que o Zorro, ou Jim das Selvas, ou Bill Elliot, ou a Jane do Tarzan, ou a Judy Garland, do Mágico de Oz, descessem da tela e ficassem comigo? Anos mais tarde, quando pensava que seria interessante escrever um romance em que eu entrava na tela e vivia o filme, o filho de uma mãe do Woody Allen fez A rosa púrpura do Cairo. Fui um garoto magro, tímido, feio, introvertido, sofria bullying na escola e só tinha prazer ao sentar e olhar a tela, me enfiando naquele mundo infinito. Ao atravessar as cortinas de veludo marrom ensebadas da porta do Paratodos, eu me transportava para um mundo mágico. Desde os 12 anos lia sobre cinema. Aprendi a amar cinema com Almeida Salles e Paulo Emilio Sales Gomes, do jornal O Estado de S. Paulo. Aos 15 anos, na biblioteca municipal de Araraquara, lia Moniz Viana, Van Jaffa, Pedro Lima, Alex Viany, todos críticos de cinema do Rio de Janeiro. Minha cabeça se abria. Curiosamente, naquela década de 1950, a biblioteca de uma cidade do interior tinha jornais e revistas do Rio. Adorava cinema, mas filho de ferroviário, portanto classe media baixa, não podia ver todos os filmes, como desejava. Um dia, soube que críticos de cinema não pagavam entrada. Fui aos dois jornais existentes na minha cidade, Folha Ferroviária e O Imparcial. Eles não tinham críticos. Certo domingo de agosto, em 1952, acabei de ver um filme, fui para casa, redigi uma crítica. Estava com 16 anos e conhecia os macetes. Um colega, o Fenerich, célebre por gostar de palavras, etimologias, línguas, corrigiu, levei à Folha, que publicou. Na terceira colaboração, ganhei a entrada livre para o cinema e passei a ir todas as noites. Mudei de jornal, fui para O Imparcial, um diário. Ali começaram a me dar tarefas: uma reportagem, uma entrevista, me ensinavam coisas. Aprendi a trabalhar com linotipo (era a pré-história), com clicheria, a fotografar. Quando fui para São Paulo, a única coisa que sabia fazer na vida era jornal. Aí entrei para a Última Hora

Há, em sua biografia, uma passagem pela Itália, nos anos 1960, quando foi tentar a vida como roteirista. Poderia contar um pouco sobre esse episódio?
Em 1963, trabalhava no jornal Última Hora, tinha 27 anos e decidi viver uma aventura. O diretor e produtor Fernando de Barros — que tinha lançado Tônia Carrero, Maria Della Costa e Marisa Prado no cinema e realizado filmes como Quando a noite acaba e Perdida pela paixão —, amigo do Walinho Simonsen, dono da Panair do Brasil, me descolou uma passagem para Roma. Fui. Vivia num apartamento perto do Monte Mario com o ator brasileiro Celso Faria, o roteirista Wladmir Lundgren herdeiro das Casas Pernambucanas e com três jovens que tinham feito pontas em Cleópatra. Cada um vivia sua vida à parte. Eu enviava regularmente entrevistas e reportagens para o jornal, para garantir o emprego. Vivia na Via Veneto, que ainda trazia o charme de La dolce vita, de [Federico] Fellini. Adorava passear de lá para cá, olhando artistas, escritores, gigolôs, playboys, nobres, modelos, putas, travestis, gays, sapatas. Vi Gore Vidal, [Luchino] Visconti, Dino Risi, Francesco Rosi. Sentei-me na mesa junto ao músico que amo, escrevo ao som de suas trilhas sonoras Nino Rotta. Espantei-me ao dar com Anita Ekberg.

O americano J. D. Salinger participou do desembarque das tropas aliadas na Normandia, no que ficou conhecido como o “Dia D” da Segunda Guerra Mundial. Dalton Trevisan, quando jovem, sofreu um acidente na fábrica de louças da família que quase o matou, ainda nos anos 1930. Ambos episódios, segundo Trevisan e Salinger, foram determinantes para que “virassem” escritores. O senhor também teve um episódio-limite em sua vida, mas quando já era um escritor consagrado. O aneurisma que sofreu nos anos 1990 teve algum reflexo em sua criação, para além do livro que o senhor escreveu sobre o ocorrido (Veia bailarina)?
Sobre a criação, não sei dizer. Daqui a 100 anos, quando eu estiver morto e algum crítico ou ensaísta se debruçar sobre minha obra (odeio a palavra obra), talvez perceba alguma coisa. Sobre minha vida, sim, já falei disso em Veia bailarina. Mais do que nunca sinto que a vida é frágil e que devo viver cada momento com intensidade. Mais do que nunca sinto o que é viver, estar vivo. Cores, perfumes e sabores são diferentes, novos. Só quem chegou ao limite e voltou sabe o que é isso. É como a dor de pais que perdem um filho, sentimentos indefiníveis, impossíveis de serem expressados. Ansiedades tolas se foram. A pressa desapareceu. O mundo está ruim? Está. O Brasil tem uma classe política enlouquecida e medíocre? Tem. Vou deixar por isso? Como não sei o que fazer, escrevo, relato minha indignação, meu medo, meu protesto, porque essa é a minha luta. Sempre odiei livros de autoajuda, os que te dão normas para enriquecer, vencer na vida, ser um gerente ativo, um executivo perfeito. Um dia, vejam só, descobri que Veia bailarina tem sido indicado pelos médicos para aqueles que vão sofrer uma cirúrgica complicada, invasiva, arriscada. Veia acalma, me dizem os médicos. Traz paz. Então fiquei tranquilo. Se traz o bem-estar, seja louvado.

É verdade que o senhor viu mais de 80 vezes 8½, de Fellini, e mais de 100 vezes a peça Os pequenos burgueses, que José Celso Martinez Corrêa encenou na década de 1960? Nos seus romances, a alegoria felliniana é facilmente reconhecível. O que não é muito comum no meio literário. Geralmente, os escritores são influenciados por outros autores de literatura. Fellini e Zé Celso ajudaram na concepção de sua obra mais do que outros autores literários?
A estatística quanto a está furada, já vi mais de 120 vezes, e ainda ontem revi a cena em que Marcelo Mastroianni sonha com seu harém e chicoteia as mulheres ao seu dispor. A primeira vez que vi o filme, em 1963, quando fui morar na Itália, não entendi nada, nem sabia italiano. Vi várias vezes até me acostumar com a estrutura da obra, seus vários planos, realidade, memória, idealização, sonho, etc. Foi quando senti, fortíssima, a liberdade de criar. A mesma que sinto em Zé Celso, o mais solto e delirante de nossos diretores teatrais, que arrisca sempre e sempre. Não é por acaso que somos filhos de duas mães católicas e catequistas. E ambas eram amigas da Sociedade de São José, de vestido preto e fita amarela. Até então não havia nenhum outro filme igual, Fellini criou uma estrutura anticonvencional, foi contra todas as normas. Como o Zé. É um filme que explora vários planos, do sonho, da imaginação, da realidade, da fantasia, da memória idealizada. Ou seja, aprendi ali que a gente cria as normas a cada momento, a gente inventa a estrutura necessária. Cada filme, cada livro, é um momento diferente do outro. Para Zero eu precisava de algo que mostrasse o Brasil estilhaçado, desintegrado, fragmentado, sem lógica, absurdo. De repente, lembrei-me das cenas aparentemente descosturadas de e a minha linha narrativa surgiu. Quando Fellini morreu, o cinema morreu um pouco. Porém, o cinema sempre renasce. Como todas as artes. Quanto a Pequenos burgueses, vi e revi porque gostava muito da peça, uma obra-prima do Zé Celso. Mas vi tanto 138 vezes porque estava apaixonado pela Ítala Nandi, ia todas as noites contemplá-la, deslumbrante, sensual, inteligente, uma santa erótica. Foi Ítala que, em uma tarde, ao me visitar, viu na minha quitinete da praça Roosevelt, a montoeira de caixas, onde estavam todas as matérias que a censura tinha me proibido de publicar e que eu tinha instintivamente guardado. “Se isso não foi publicado, então aí está o que o Brasil não soube. Quer dizer, meu querido (disse ela no sotaque gaúcho que ainda conservava), que você tem em mãos um romance, uma porra de um romance!”

Voltando a Hemingway, ele dizia que aprendia a escrever tanto com escritores quanto com pintores. Além de Fellini, que outro artista não literário o ajudou no seu ofício de escritor?
Tenho paixão pelos quadros de Edward Hopper, pela atmosfera de melancolia, depressão e abatimento dos personagens em seus quadros. É um clima em que pensei para Dentes ao sol. Quando viajei pelos Estados Unidos em companhia de minha mulher e de um casal de primos, procurei o clima de Hopper na Nova Inglaterra. Encontrei, aqui e ali, e registrei em Acordei em Woodstock, um livro de viagem mais por dentro de mim do que por dentro dos EUA. Penso em trocar o título para Em busca de Woodstock.

Para finalizar, como é fazer 80 anos?
Não sei, é a primeira vez que chego aqui. Numa boa. Me aterrorizam esses que buscam a juventude. Tenho um amigo que, ao fazer 40 anos, enfiou-se em casa, não sai mais, fechou as janelas. Eu? Vivo na rua, caminho, vou à padaria, passo pela praça, viajo. Corro o risco de cair um dia e me darem por indigente, nunca levo documentos. Celular, não tenho. Não quero ser encontrado, encontro quem eu quero. Fase dura foi chegar aos 21 anos. Ao fazer 21 anos, em 1957, estava no Vale do Ribeira, litoral de São Paulo, reduto de bananicultores, uma região pobre, com as plantações sempre inundadas pelo rio Ribeira. Tinha ido acompanhar um pastor protestante que fazia um trabalho social na região. Frio, julho, tempo cinza, certo momento me vi sozinho no barco por uma hora. Então percebi que era meu aniversário. Pensei: “Estou velho. O que vou fazer de minha vida? Vou ser o quê?”. Bateu o desespero. Não sabia fazer nada, não era formado em nada. Não via caminhos, era um jovem magro, sem um dente na frente (há muito reposto), não sorria nunca. Qual seria o futuro? Quase saí do barco e me enfiei entre as milhares de bananeiras, queria desaparecer do mundo. Ainda hoje tenho medo de terminar a vida como um sem-teto, dormindo em calçadas frias, cheirando a mijo e bosta de cachorro, porque vivemos uma época infestada de cães.

>>> Leia trecho inédito do romance Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela.

Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

Rascunho