• No prólogo à edição brasileira de A ignorância da morte, Ivan Junqueira atenta para uma “austeridade expressiva” em tua poesia, destacando tua capacidade de conferir emoção ao pensamento, o que, segundo ele, o colocaria em uma espécie de contramão em relação à tradição lírica portuguesa. Estás de acordo com isto?
Antes de mais, devo salientar que o prólogo de Ivan Junqueira constitui — digo-o sem nenhuma lisonja — um texto de penetrante argúcia. De alguém que sabe ver os outros, e encontrar logo o que cada um tem de único, como a própria cara, esse mistério que nos vai acompanhando. Se Ivan Junqueira entende que a minha poesia ocupa hoje “um lugar solitário na literatura de língua portuguesa”, eu permito-me acrescentar que faz parte dela, orgulhosamente. Pode assemelhar-se a uma discreta música de câmara. “O que de fato interessa ao poeta é o próprio homem”, escreve Ivan Junqueira. De resto, neste livro agora editado no Brasil, a vivência (existem outras) da morte centra-se na desaparição, e constitui uma forma de esconjurá-la. Os valores vitais, como em Dante e Camões, sempre foram para mim os dominantes.
• Quais outros poetas te acompanhariam nessa quebra de tradição?
Sinceramente, não sei responder. Olhando para trás, possuímos a noção do que nos separa e aproxima de outros contemporâneos. Mas afigura-se-me que não existe uma quebra de tradição — esta não se resume a uma linha contínua, é antes um percurso sinuoso de buscas e rupturas, uma forma de interpretar o mundo, “o poema mais difícil de ler”, citando um dos aforismos do grande amigo de Portugal e do Brasil, Ángel Crespo, autor, de resto, de uma das melhores Antologias da Poesia Brasileira.
• Recorda ainda Junqueira uma afirmação de Eliot de que a poesia não se realiza na “liberação da emoção” ou na “expressão da personalidade”, mas antes na “fuga” desses dois aspectos. Também o brasileiro João Cabral de Melo Neto costumava repudiar a emoção, o que o situava nas antípodas da tradição romântica. Emoção desgovernada e culto à personalidade devem ser naturalmente considerados danosos à criação poética, tanto quanto uma rigidez cadavérica — lembro um verso teu onde se diz: “É possível que os mortos não estejam imóveis” — e a esterilidade existencial, não crês?
A emoção desgovernada e o narcisismo, romântico ou pós-romântico, são dois caminhos perigosos. Quando Drummond de Andrade escreve (e serviu de epígrafe final ao livro que dá origem a esta entrevista), “só a morte é que sabe” — deixou para sempre — apenas com seis palavras — um dos mais indeléveis versos sobre a condição humana. A nossa luta é, precisamente, contra a imperfeição do tempo, e as suas injustiças.
• Um outro aspecto que menciona Junqueira no mesmo prólogo refere-se à condição episódica do Surrealismo em Portugal, mesmo que constate que “quase toda a poesia portuguesa contemporânea” pague tributo a este “modismo literário”. Vês como negativa a influência do Surrealismo na tradição lírica portuguesa?
Retenhamos que Ivan Junqueira entendeu que a minha poesia “não paga tributo algum ao Surrealismo”. Parece-me exato. Quando eu dava os primeiros passos nas tertúlias literárias de Lisboa (cada uma com o seu próprio Café, próximos no entanto entre si…), convivi com os surrealistas, sobretudo com Mário Cesariny e Luís Pacheco. Continuo a admirá-los, sou de ambos amigo. No entanto, cuido que nada lhes devo, no plano da criação literária.
• Em 1954, ao lado de Pedro Tamen e Cristovan Pavia, fundaste a revista Anteu. Como vês hoje essa aventura editorial, à luz de uma tradição muito forte, como tem sido a portuguesa, em termos de revistas literárias?
O Cristóvan e eu fizéramos 21 anos, o Tamen, 20. Primeiro de tudo, enfrentava-se a “censura prévia”, assim se dizia. Fui chamado a um militar reformado, um capitão caserneiro, senhor de um soberano lápis. Procurou ver no fundo dos meus olhos, depois do segundo número da revista, que citava autores tão intratáveis como Sartre e Camus… e assim, ingloriamente, acabou o Anteu.
• Chegas agora ao Brasil, pela mesma editora que também publica uma antologia poética de Ana Marques Gastão, de uma geração bem posterior à tua. Também o Manuel António Pina está sendo publicado por outra editora. Como vês essa descoberta repentina da poesia portuguesa por editores brasileiros e quais te parecem sejam os motivos para uma presença tão mínima de diálogo entre nossas culturas?
Há muitos anos que o Carlos Nejar e eu temos tentado promover o intercâmbio entre os autores dos nossos países. Não fomos felizes na obtenção de apoios institucionais, solicitados numa base de reciprocidade. Por último, contentávamo-nos, por ano, com edições de quatro poetas e ficcionistas de cada país. Ficou um enorme desgosto. Oxalá a Editora Escrituras (e outras) dêem a conhecer os bons autores portugueses. A estreita amizade com Nejar e outros escritores brasileiros permitiu-me que fosse estando a par da excelente literatura brasileira, sobretudo na poesia. De um modo geral, os autores brasileiros são em Portugal mais conhecidos e editados que os portugueses no Brasil. Permita-me uma confidência. Senti sempre pelo Brasil grande atração. Estive aí há coisa de vinte anos. Com o guia de Manuel Bandeira, fiz questão de visitar Ouro Preto. Nesse lugar não senti vergonha de ser português, pelo contrário, nem admirador do Aleijadinho, o primeiro artista de gênio nascido nesse continente. E estive perto da casa, no coração do Rio de Janeiro, que foi a de Cecília Meireles, que cheguei ainda a conhecer em Lisboa. “Dizer com claridade o que existe em segredo”, foi o que Cecília fez, e eu vou tentando. Fiquei amigo de Lêdo Ivo, de João Cabral de Melo Neto, de Donaldo Schuler, de Alberto da Costa e Silva, que foi um notável Embaixador em Portugal (inclusive de poesia)… Nessa altura, depois de o conhecer, escrevi uma Elegia para Mário Quintana, vivo, que vem neste livro. Era uma pessoa fascinante apesar de tão discreto. Tive ocasião ainda de lhe dar a ler, em Porto Alegre, esse poema, de cujo amável atrevimento ele não desgostou. Eu perguntava-lhe:
Diga ao menos se conseguiu
encontrar Botticelli,
de quem o senhor descende:
entreajudem-se.
E, finalmente, sugeria-lhe com evidente ousadia:
Peça-lhe (é preciso audácia
com Deus) que assine
a sua ordem de expulsão
— e volte, gestante,
pelo túnel de outra vida.
• A teu respeito também escreveu o Marques Gastão que, a exemplo do Adolfo Casais Monteiro, esteve muito empenhado em uma inter-relação entre poesia brasileira e portuguesa. Recentemente fui surpreendido com a edição de uma antologia de poetas portugueses e brasileiros, publicada por uma editora brasileira, mas para circulação na Argentina, edição preparada por José Augusto Seabra, sob os auspícios da Embaixada de Portugal em Buenos Aires. O que entendes que haja de errado nas relações entre governos brasileiro e português que ainda não se possa pensar na sistematização declarada de um diálogo entre nossas culturas?
O mal está no desconhecimento mútuo. A literatura portuguesa precisa de ser descoberta pelo Brasil… E a inversa não é menos verdadeira. As instituições ligadas à cultura não se impõem essa recíproca revelação. É pena. Ana de Castro Osório, que foi pioneira da literatura infanto-juvenil e viveu alguns anos em São Paulo, defendeu, num livro editado em 1922 e reeditado em 1992, A grande aliança, antes de mais um estreito intercâmbio cultural entre os nossos dois países. E o início dessa “aliança” começava logo na escola — pela integração de um número satisfatório de bons escritores dos dois países nos programas de língua portuguesa em todos os níveis de ensino. Seria essa uma importantíssima medida. Para evitar que se conheça aqui o Brasil sobretudo através das telenovelas, o que, parece, não chega.
• Por último te deixo a tribuna livre, para que evoques algum tema que certamente deixei escapar.
Não quero deixar de dar o devido relevo a duas antologias de poesia portuguesa contemporâneas saídas no Brasil — uma organizada em 1982 por Carlos Nejar, da Massao Ohno-Roswitha Kempf, de São Paulo, e a outra por Alberto da Costa e Silva e Alexei Bueno, da Lacerda Editores, 1999. Ambas notáveis pelo conhecimento, isenção e rigor. Para terminar, deixo a sugestão da sua leitura…
LEIA RESENHA DE A IGNORÂNCIA DA MORTE
Dois poemas inéditos de António Osório
Ginásio
Ele sofrera
uma paralisia facial.
A seu lado, o jovem
que caíra do andaime,
tetraplégico. Os trombosados,
as vítimas daquela inquieta lepra.
No ginásio do Hospital,
as atentas, dadivosas
fisioterapeutas.
Havia uma, que seguia
o encanto da luz. Segredava-lhe
os movimentos como se fossem
de amor. Impunha, acariciava.
Possuía a elegância
e o olhar afectuoso
da rola que cuida dos filhos.
…
A antiga pensão
Às escuras
os cães temem
subir as escadas.
Como crianças
e mulheres velhas.
Pelo estudante
esperavam
à porta da pensão.
Ficavam
no terceiro andar.
Vindo atrás,
degrau a degrau,
ele falava
e a voz
subia, iluminava.