A construção de um gênio

Entrevista com Daniel Piza
Daniel Piza: releitura da obra de Machado de Assis.
01/02/2006

Próximo ao centenário de morte de Machado de Assis (a ser comemorado em 2008), a sua genialidade ainda alvoroça os admiradores mais ferrenhos. Causa discórdia e acaloradas discussões. A releitura de sua obra — principalmente das obras-primas Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas — é indispensável nesta perene descoberta de novas nuances de um escritor que viveu o seu tempo de maneira intensa, irônica e crítica. O jornalista Daniel Piza encara a briga entre os machadianos com a biografia Machado de Assis — Um gênio brasileiro, na qual opta pela abordagem simultânea da vida e da obra do autor. O resultado é um vôo sobre boa parte do século 19 e início do 20, as importantes transformações que começaram a moldar o Brasil atual — como a abolição e a proclamação da república —, com mergulhos importantes na ficção machadiana. Nesta entrevista concedida a Rogério Pereira, Luís Henrique Pellanda e Paulo Polzonoff Jr., Daniel Piza comenta as diferenças de sua biografia em relação às demais, as polêmicas em torno de Machado e as circunstâncias que contribuíram para a construção de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos.

• Dois anos antes do centenário de morte de Machado de Assis, o senhor lança uma biografia com o propósito de jogar luzes sobre algumas polêmicas da vida do autor e também sobre a sua obra. Quais avanços o senhor destaca em seu livro em relação às biografias escritas por Raimundo Magalhães, Lúcia Miguel Pereira e Luís Viana Filho?
Nessas biografias, todas muito importantes para os momentos em que foram lançadas, Machado parece pairar acima de seu tempo, como se sua obra pouco refletisse sobre sua época e como se sua época fosse bem menos agitada do que foi. Há também o tratamento de especulações como fatos, principalmente em relação à sua infância, o que ocorre mesmo na extensa pesquisa de Magalhães Jr. E ainda é possível fazer discordâncias pontuais, como à afirmação de Lúcia Miguel Pereira de que o Machado contista é melhor que o romancista. Minha biografia tenta ser mais objetiva e hierarquizar melhor os fatos. Por exemplo, que Machado tenha recusado a extrema-unção é um acontecimento relevante, pois era um gesto raro naquela época e está relacionado com a crítica à religião católica que toda sua obra contém. Nas outras biografias, é apresentado como um fato corriqueiro.

• Há poucas informações confiáveis sobre a infância e a adolescência de Machado. De que maneira isso pode atrapalhar a compreensão da obra machadiana, pois como senhor apresenta na biografia, Machado levaria para toda a sua ficção a questão sobre “até que ponto somos definidos pela biologia e até que ponto pelo ambiente?” É muito frustrante para o biógrafo esta escassez de informações sobre os primeiros anos do autor?
Esclarecer esses fatos certamente contribuiria bastante. Não sabemos quando ele teve o primeiro ataque epiléptico, por exemplo. Normalmente a epilepsia de lobo temporal, que parece ter sido a dele, se manifesta uma primeira vez na infância e só depois da idade adulta é que se torna crônica. Não sabemos com quem de fato namorou antes de Carolina, se é que namorou. E não sabemos como sobrevivia logo que deixou a casa do pai. Tudo isso nos faria vê-lo melhor.

• Ao analisar a obra machadiana, a crítica ainda se detém em duas abordagens: a sociológica e a psicológica. O senhor considera estas leituras muito limitadas e como a sua biografia busca ampliar o vôo sobre a literatura de Machado?
Acho que essa polarização atrapalha o entendimento da obra de Machado. Para a corrente sociológica, Machado é uma espécie de “crítico da elite”, que denuncia a retórica da oligarquia do período. Para a psicológica, ele é um estudioso do comportamento humano, interessado em questões como o ciúme, tão-somente. Minha biografia busca superar essa dicotomia ao mostrar que Machado foi universal sendo local e vice-versa. Foi analisando o teatro de máscaras de sua sociedade que ele debateu temas como a relação entre corpo e alma, para destacar o mais fundamental de seus temas. Os sociólogos, em função de sua leitura, tendem a esquecer, por exemplo, a influência da sátira iluminista — Voltaire e Diderot — sobre sua obra, na qual nenhuma classe social é perdoada… E os psicólogos tendem a ver um Machado menos incisivo do que ele de fato foi, ignorando a teia de implicações sociais e políticas em seus enredos de adultério.

• Machado de Assis sempre viveu em um difícil equilíbrio: era monarquista, mas a favor da abolição; era moralista e trabalhou como censor de peças teatrais, mas criticou o conservadorismo da sociedade, sempre com muita ironia. Além disso, Machado também não tomou partido em algumas discussões. É possível a leitura de que ele optou, muitas vezes, por ficar em cima do muro apenas para preservar o seu nome e sua grande reputação? Como o senhor afirma, Machado “era muito preocupado com sua imagem pública”.
Essas contradições são um dos aspectos que minha biografia ressalta, em comparação com as anteriores. Não acho que Machado quisesse preservar sua reputação poupando-se de opinar sobre grandes eventos. Até porque ele opina, embora da maneira oblíqua, no tom menor que o caracteriza. Era a favor da monarquia ao estilo inglês, constitucional, e desejava que Dom Pedro II fizesse logo a abolição. Temia a república como uma ameaça de desagregação federativa, porque testemunhara muitas revoltas regionais ao longo do Segundo Reinado e achava que a centralização convinha mais a uma nação ainda em formação. E não gostava de peças e romances que apelassem aos “baixos instintos”, que usassem termos chulos e imagens degradantes. Por isso rejeitou o naturalismo, o que foi positivo para sua obra, marcada por uma sutileza que o tempo não enterrou. E é neste sentido que era cioso de sua imagem pública: acreditava estar construindo uma obra importante. Acertou.

• Há, na biografia, uma preocupação em afirmar que Machado de Assis não só era abolicionista como também se preocupava com a questão do negro na sociedade. O senhor acredita que ainda há algum tipo de movimento que “condene” Machado por sua postura supostamente alheia à questão do negro? Que tipo de relevância uma questão como essa tem na compreensão da obra machadiana?
Havia dúvidas a respeito do grau dessa participação. Como mostro na biografia, ele esteve presente nas reuniões da campanha abolicionista lideradas por Joaquim Nabuco e fez algumas crônicas ótimas sobre o assunto. Não foi um panfletário, não tomou partido explícito, como eu mesmo gostaria que tivesse tomado. Mas captou como ninguém o ambiente cultural daquela sociedade que resistia à abolição, a superposição de paternalismo e injustiça que explica tanto nosso país. Por esse motivo, o assunto é fundamental para o entendimento de sua obra.

• Em artigo publicado no Rascunho de dezembro, Domingos Pellegrini diz que em Dom Casmurro, o estilo de Machado “é uma mistura de prosa doméstica com meia-pompa erudita” e que vê “apenas sintoma da falta de caráter do narrador protagonista”. Pellegrini aconselha que o romance precisa ser mantido distante dos colegiais, pois é “a história de um anti-herói, ou melhor até, um des-herói, tão sem caráter que não chega a tomar consciência de que é homossexual, torna-se corno e até para se vingar é sub-reptício”. Após tantos anos estudando a obra de Machado, qual a sua opinião sobre essa leitura?
Isso sim é moralismo. Os protagonistas de Machado são homens que não conseguem encarar a si mesmos, daí a escrita sinuosa ou “volúvel” que, ironicamente, Machado assume em seu lugar. Mas Machado diz muito sem explicitar tudo; é essa sua estratégia genial. Existem analistas que tratam os narradores de Machado como se mentissem a cada palavra, como se todo seu enredo fosse falso. Isso seria tão limitado quanto uma narrativa convencional. O que Machado faz é mesclar verdade e mentira, distribuindo pistas, e é pelo mesmo motivo que sua linguagem mistura o formal e o informal, o solene e o vulgar. Sobre o homossexualismo enrustido de Bentinho, fui o primeiro a chamar atenção para essa hipótese. Bentinho sente atração física por Escobar e, ainda, transmite a Capitu essa mesma atração. Isso só mostra como Machado deve ser lido. Sua obra está sempre aberta à releitura.

• A atual composição e o espírito político da Academia Brasileira de Letras envergonham a idéia original de Machado de Assis para a ABL: “Uma torre de marfim, onde se acolham espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto”?
Esse conceito da torre de marfim também é vergonhoso. Escritores devem dialogar com a sociedade, opinar sobre suas questões, e ao mesmo tempo manter autonomia, distinguir o espaço particular da criação. Mas é verdade que a ABL se entregou em muitos momentos a uma politicagem que daria asco a Machado, como as admissões de Getúlio Vargas e Lira Tavares em plenas ditaduras.

• O ataque de Machado de Assis a Eça de Queiroz não foi, em termos contemporâneos, um grande golpe de marketing?
Golpe de marketing teria sido elogiar Eça, que na época tinha virado paixão de leitores brasileiros. Há equívocos na leitura que Machado fez, mas há acertos que o próprio Eça reconheceu, como conto no livro. Marqueteiros não vão tão a fundo…

• Sílvio Romero ainda é retratado como um grande vilão da literatura nacional por seus ataques à obra de Machado de Assis. Como o senhor vê isso?
Ele foi grosseiro e superficial ao analisar a obra de Machado. Principalmente, ao atribuir defeitos de seus romances a seus problemas de saúde. Quem ainda lê Romero?

• O que o senhor acha da teoria exposta por Décio Pignatari na peça Céu de lona, em que ele sugere que Machado seria sexualmente reprimido, um bode enrustido que Carolina, balzaquiana e expulsa da sociedade portuguesa, “puxou para cima”? Para Pignatari, a boa influência de Carolina na vida amorosa do marido teria coincidido com a mudança de pegada do Machado romântico, “mau poeta e prosador de terceira”, para o Machado realista, irônico e genial.
Não há base para afirmar tais coisas. Na biografia, porque não se sabe exatamente como foi a vida amorosa de Machado antes de Carolina. Na obra, porque quando Machado escreve os romances de sua primeira fase, já estava casado com Carolina. Essa primeira fase não é genial. O Machado genial só surge depois de 1879, quando ele se retira por motivos de saúde para Nova Friburgo. Carolina certamente foi importante na vida de Machado como mulher madura e culta, que lhe deu muita segurança emocional. Mas daí a atribuir a ela sua revolução literária vai uma distância infinita.

• Ainda sobre Pignatari, ele também disse que, até então (2004), nenhuma biografia de Machado havia atingido um nível satisfatório de rigor em suas pesquisas. De acordo com ele, há dois tipos de biógrafos no Brasil: os acadêmicos, que padeceriam de “pudores moralistas”, e os jornalísticos, que careceriam de “método científico”. O senhor concorda?
Plenamente. Nossos acadêmicos não conseguem imprimir andamento narrativo e dar interesse humano a suas biografias. Escrevem para seus colegas, para o tipo de pessoa que dá mais valor à nota de rodapé que ao texto. Os biógrafos jornalistas fogem da análise, temendo que ela prejudique a fluência da obra. Minha tentativa foi, na frase de Carlos Heitor Cony, uma “abordagem simultânea de vida e obra”, sem cair no erro de explicar uma pela outra.

• Em resenha publicada no Zero Hora, Luís Augusto Fischer aponta alguns erros em sua biografia, definidos por ele como “imperdoáveis e comprometedores”. Enumera alguns, como o equívoco no nome de José Dias (de Dom Casmurro), denominação de Vice-Reino em vez de Reino Unido, além de outros deslizes em algumas datas. Como estes erros comprometem a biografia?
José Dias saiu errado em duas citações, certo em todas as outras. Será que Vice-Reino em vez de Reino Unido é assim comprometedor? Não há livro que não saia com problemas de revisão ou imprecisões. Estamos fazendo uma dúzia de emendas para a segunda edição, todas desse quilate. Para um livro de 400 páginas, é pouco. Resenhas como as de Antonio Carlos Secchin, Milton Hatoum, Roberto Pompeu de Toledo e Fabrício Carpinejar preferiram dar atenção à proposta da biografia, que é enxertar melhor Machado em seu tempo e lugar. Imperdoável seria não ter conseguido isso. A melhor frase sobre o tema é de Otto Maria Carpeaux: “Só o pedantismo ou o despeito costumam denunciar pequenos erros e lapsos”.

• O que foi mais decisivo para que Machado — mulato (numa sociedade escravocrata), gago, tímido e epilético — tenha se tornado “um gênio brasileiro”, como o senhor defende em sua biografia?
Gênio não é um tipo de pessoa. Há gênios de esquerda ou direita, jovens ou velhos, virtuosos ou canalhas. Gênio é quem criou uma obra de gênio, ou seja, uma obra seminal, que transformou nossa percepção sobre as coisas, que continua a ser reinterpretada por gerações seguintes. Machado não era um caso isolado: sua geração teve brilhantes cabeças, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e Raul Pompéia, polemizou intensamente sobre questões como romantismo x realismo e produziu obras-primas que alicerçam a cultura brasileira. Machado viveu o nascimento de um Estado-Nação, a transição de uma monarquia para uma república, as transformações de uma cidade por invenções modernas. E leu muito, absorveu a tradição literária e filosófica ocidental de um modo muito peculiar e profundo. Todos esses elementos se somaram ao seu dom, ao seu talento verbal, e se traduziram num trabalho fundador.

• Capitu traiu Bentinho?
Muito plausivelmente. Lembre-se de que ela reconhece a semelhança física de Ezequiel, seu filho, com Escobar, antes de mais nada porque os dois têm olhos azuis, ao contrário dela e de Bentinho. E diz que é por “coincidência”, o que, convenhamos, a genética não explica. Mas o que importa no livro não é isso, e sim o efeito que a hipótese causa na psicologia mimada e covarde de Bentinho.

Machado de Assis — Um gênio brasileiro
Daniel Piza
Imprensa Oficial SP
416 págs.
Daniel Piza
Nasceu em São Paulo, em 1970. É jornalista, tradutor e escritor. Trabalhou na Folha de S. Paulo e na Gazeta Mercantil. Desde 2000, é editor-executivo de O Estado de S. Paulo. Traduziu livros de Henry James, Herman Melville, entre outros. Machado de Assis — Um gênio brasileiro é seu 12º livro.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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