A busca do equilíbrio

Entrevista com Rodrigo Petrônio
Rodrigo Petrônio: “Há mais poesia em um bom filósofo do que em muitos poetas”.
01/02/2006

Poeta, ensaísta e contista, Rodrigo Petronio é um dos principais nomes da nova literatura brasileira. Nasceu em 1975, em São Paulo. Tem ensaios, poemas e contos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras. É autor do livro de ensaios Transversal do tempo e dos livros de poemas História natural, Assinatura do sol e do recém-lançado Pedra de luz. Nesta entrevista concedida a Flavio Paranhos, Edival Lourenço, Carlos Willian Leite e Francisco Perna Filho, Petronio traça um paralelo entre literatura e filosofia e defende que só poderemos produzir literatura de qualidade, quando começarmos a ler literatura de qualidade.

• Sua formação é em letras, mas você demonstra grande intimidade com a filosofia. Para sua literatura isso é bom ou ruim? Em outras palavras, dominar a filosofia pode significar ser dominado por ela? A “contaminação” é sempre benéfica?
Hölderlin tem uma definição curiosa, engraçada, segundo a qual a filosofia seria o sanatório dos poetas. Nesse sentido, acho que ela pode nos salvar, mais do que contaminar ou castrar. A literatura que mais leio consiste em filosofia, história, poesia e ficção breve. Durante algum tempo, tive dilemas sobre essa questão. Se a literatura de gênero crítico e analítico tolheria a criativa. Mas hoje penso que, no fundo, toda grande filosofia é grande literatura. Há mais poesia em um bom filósofo do que em muitos poetas.

• “Existe algo mais provocante para o poeta do que sua relação com a palavra?”, pergunta Heidegger. E seguindo com ele: “nenhuma coisa é onde a palavra faltar” (Heidegger se apropria do último verso de um poema de Stefan George). Qual sua relação com a palavra? Acredita em sua força?
Pensar a palavra a partir da concepção de Heidegger é um trabalho fascinante. Em um ensaio brilhante sobre Rilke, ele nos diz que quando passamos pela floresta, passamos por dentro da palavra floresta; quando passamos pelo poço, passamos pela palavra poço. Ele concedeu uma dignidade à poesia poucas vezes vista, na medida em que a colocou como voz da origem: a filosofia não explica a poesia, mas aprende com ela. Nesses termos e nos termos de outros filósofos, a palavra ganha uma potência que me atrai muito. Quebra-se também uma dimensão mais analítica ou positiva que julgo empobrecedora. Gosto de pensar a palavra nesse campo de conceitos. Também me interessa muito a relação entre linguagem e pensamento mítico.

• Filosoficamente a poesia entra na categoria dos “inutilitários”. Como a poesia, sendo “inútil”, possa ter utilidade para a vida das pessoas?
A inutilidade pressupõe uma relação necessária e um contraste com o mundo dos instrumentos e dos fins. Isso pode gerar uma visão da poesia como ornamento ou como adereço, o que é bastante criticável. Diria que ela é intransitiva, não inútil. Esse seu caráter intransitivo não se dá apenas na linguagem. Abre uma clareira de sentido que nos remete à experiência originária, que é ao mesmo tempo a mais universal e a de mais difícil apreensão. A experiência poética nasce da tensão do arco dobrado sobre a lira, para lembrar o sempre oportuno Octavio Paz. É nesse sentido que a poesia pode ser revolucionária. Ao cumprir radicalmente o retorno ao eixo estruturante da experiência e do imaginário, encontra nele um manancial de possibilidades que não são contempladas pela nossa vida cotidiana, regrada por uma lógica quantitativa e instrumental. Nesse diapasão, pode nos colocar em contato com aquela moral lúdica de que fala o grande filósofo Vicente Ferreira da Silva. E assim cumprir a sua revolução, entendida no sentido etimológico: aquilo que volta a seu centro transfigurado.

• É possível hierarquizar a poesia brasileira, sem cometer injustiças? Aliás, existe poeta injustiçado?
As injustiças acontecem justamente por conta de uma má hierarquização ou de sua ausência. A diversidade é fundamental. Mas dizer que toda a sua gama de matizes se equivale é burrice. É o mesmo que anular o seu próprio princípio heterogêneo, o que é uma contradição. A crítica, em termos gerais, deve ser analítica, mas também judicativa. Deve resultar do juízo de um leitor que já leu impessoal e imparcialmente de tudo, e por isso faz de sua leitura um terreno, senão isento, o mais objetivo possível. O crítico é uma espécie de medium entre a tradição e a obra. Seu juízo deve sempre transcender a esfera privada de seu gosto sem esquecer a contingência histórica de sua leitura. Nesse sentido, ele é um leitor muito especial. Mais do que fruir a obra individualmente, ele a lê como eixo estruturante de um fio secular que se realiza nele e que nele se objetiva. Quanto aos poetas injustiçados são muitos. O cânone é uma coisa movente e, na maioria das vezes, confuso. Todas as nossas certezas cabem aos mortos. É difícil avaliar o vivo. Os melhores poetas geralmente demoram décadas para serem tidos como tais. Às vezes só postumamente. É impressionante o medo que temos de estabelecer valores e hierarquizar as coisas. Isso é fruto de uma cultura de populismo e demagogia. Creio que isso aconteça porque ainda confundimos bem e mal com bom e ruim. Atribuímos sempre causas transcendentes e morais a fenômenos puramente artificiais e contingentes. Nietzsche diria que o fazemos por sermos ainda animais religiosos. Em nós ainda predominam o espírito gregário e o gosto pelo rebanho.

• Em seu poema Ezequiel, de Pedra de luz, você se apropria de um tom deliberadamente profético e faz, digamos, uma neoprofecia. Usa elementos da antiga tradição para falar de coisas que são presentes (ou seriam perpétuas?). Seria a poesia uma nova forma de profetizar? De se fazer profecia ainda que laica?
A pergunta vai ao âmago de boa parte do livro. Uma das idéias desse livro é a de que a poesia é uma criação intempestiva, para usar um conceito de Nietzsche, retomado por Deleuze. Ela nega o binômio histórico-eterno, que estaria ligado a um dualismo de base empírico-transcendental, e tenta criar um tempo de pura duração e imantação. É o pêndulo que oscila entre esses dois extremos sem se ater a nenhum, porque o intempestivo é o desdobramento de uma potência, de um conjunto de forças, não a configuração metafísica de uma essência. A poesia não está submetida ao tempo, embora nasça dele, e não é eterna, embora queime para além dos limites contingentes de nossos corpos tragados pela história. Por isso é muito importante para mim esse esteio mítico, do qual geralmente me valho para descrever uma situação ou pintar um estado de coisas atual. Nesse poema, a recorrência é bíblica, recorrência que por sinal me interessa e vem me interessando cada vez mais. Mas há outros elementos da tradição que sinto necessidade de atualizar, sempre tendo em vista o nosso horizonte atual, a minha vida, a nossa experiência de homens imersos no tempo e habitantes da história. Há um belo ensaio de Heidegger que trata da palavra como imagem do mundo. Em outra oportunidade, o filósofo diz-nos que a poesia é o que dá fundamento à história. Creio que ele o afirma nesse sentido. A linguagem (e no caso a linguagem poética) é produto do tempo, mas o lança a um futuro incerto e, assim, produz outros tempos vindouros em sua virtualidade. O mito não é produto da história: ele a produz. Essa movência é bastante rica para todas as formas de criação e para o pensamento.

• Outra característica de Pedra de luz são as variações estruturais de cada poema. Isso quase sempre inviabiliza uma unidade coerente. Mas, no caso de Pedra de luz, embora essas variações sejam perceptíveis, existe uma idéia central de totalidade, mas que, ao mesmo tempo, é compartilhada e complementa os extremos fronteiriços. Como foi possível ordenar uma variação formal sem perder a unidade?
A idéia fixa que me persegue é que cada sensação pede um poema e cada poema pede uma forma. A gama de flutuações em nossa percepção é muito grande. Montaigne dizia que o que chamamos de eu é uma coleção heteróclita de estados de espírito e de paisagens. Alberto Caeiro diria que não somos o mesmo ao longo de um único dia. A poesia, ao lidar com a matéria-prima da sensação, acaba sendo enovelada nessa multiplicidade. Tento não gerar um desequilíbrio poético dos poemas de um mesmo livro. Mas quanto à unidade, confesso que cansei de pensar no assunto. O leitor que una as peças dispersas do que eu sou escrito.

• Por que a crítica literária migrou para as universidades? Qual a importância da teoria literária?
Não diria que a crítica migrou para a universidade, mas sim que ela minguou na imprensa. Isso é resultado de um problema muito sério que é da ordem da economia simbólica dos dias de hoje. Cada vez mais a cultura é tida como digestivo e a literatura como um subproduto de uma cadeia comercial indistinta. O espaço de reflexão necessário a uma avaliação crítica que tenha em vista apenas os critérios literários vai sumindo. Resta uma mescla de colunismo social, jornalismo informativo, diluição de teoria, impressões pessoais, cartéis mantidos entre editoras e jornais. Na universidade estão algumas das pessoas que mais entendem de arte e de literatura no Brasil. Mas o afastamento é pernicioso, porque cria um abismo entre as duas instâncias e bloqueia a divulgação da teoria produzida na universidade bem como a absorção, por esta, do que de melhor está sendo produzido na literatura atual, criando um descompasso, uma idiossincrasia. A teoria nos dias de hoje tem uma importância gigante. Todas as invectivas contra a teoria e a universidade são produzidas por um discurso espúrio, demagogo e populista. Sob o pretexto da universalização e da acessibilidade do conhecimento defende-se sim a sua aniquilação, na medida em que se questiona um dos seus cernes, que é o seu caráter não-instrumental. A crítica à teoria, na maioria das vezes, pactua com um ideal liberal cujo intuito é a destruição da ciência, leiloada em benefício da eficiência. Em outras palavras, é praticamente um projeto de recondução à barbárie.

• Quem é o grande poeta brasileiro vivo?
Não gosto dessa eleição de príncipe dos poetas. É algo monarquista, como diz jocosamente o Fabrício Carpinejar. Seriam muitos nomes, seria ruim disseminar e dispersar tanto. Cheguei a publicar alguns textos na imprensa sugerindo alguns. Prefiro falar dos bons poetas mais ou menos da minha geração que tenho conhecido. Um deles é a Mariana Ianelli. Uma revelação da nova poesia brasileira. Ela tem uma poesia de fatura delicada e que explora muito os matizes da palavra. Às vezes tem um tom bíblico, um andamento de litania. Precisa de um leitor maduro e com grande capacidade de interiorização. Seu livro que acaba de ser lançado, Fazer silêncio, é belíssimo. Uma incursão da poesia no limiar do mito, colhido na experiência do efêmero e do transitório, que nos remete ao espaço de uma duração pura. Sem nunca descontar um elemento de negatividade próprio a todo mergulho conseqüente no sagrado. Fico feliz de saber da existência de uma poética assim entre nós. Outro nome é o de Dirceu Villa. Grande conhecedor de Pound, tradutor fino de várias línguas e um dos melhores e mais cultos poetas que há hoje no Brasil, com certeza. O Descort é um dos livros fortes publicados por poetas que estão começando. É uma voz diferente. Também menciono o nome de Pablo Simpson, estudioso de Bonnefoy e autor do belo Mitologias. É um poeta que consegue atingir o sublime sem pagar tributos à impostação. Voz que esculpe pequenos cristais. E destaco o belíssimo e singular A casa azul ao meio-dia, de Flávia Rocha. Acompanho o trabalho dela faz tempo e fiquei muito feliz de ver a consumação de tanta reflexão poética e de tanto trabalho em um livro tão equilibrado, inventivo e cuidadoso. Uma beleza o trabalho com as imagens e a maneira como ela retém a memória afetiva na linguagem. Um dos bons livros de poemas publicados recentemente.

• Quem é o maior chato da literatura brasileira?
Por nomes assim não sei dizer. Coisas que não suporto mais é poeta com discursinho universitário e cartilha teórica debaixo do braço e prosador que elogia cultura de boteco, uma hipotética marginalidade e um hipotético submundo. O ápice da esquizofrenia nacional, diria o Glauber Rocha.

Pedra de luz
Rodrigo Petrônio
A Girafa
270 págs.
Flávio Paranhos

É escritor, autor do livro de contos Epitáfio.

Rascunho