A brutalidade das nossas tragédias

Com "Violência", Fernando Bonassi fecha uma trilogia de romances sobre a “desumanização” da sociedade brasileira
Fernando Bonassi, autor de “Violência”
01/12/2023

Com o romance Violência, Fernando Bonassi termina uma das trilogias mais contundentes da literatura brasileira nos últimos 20 anos. O livro, junto com os volumes anteriores Luxúria e Degeneração, mapeia as entranhas da sociedade brasileira, em especial problemas crônicos que saltaram ainda mais aos olhos a partir da chegada de Jair Bolsonaro à presidência da república: o preconceito contra pobres, negros e homossexuais, o enfraquecimento da democracia e o genocídio escancarado de brasileiros na pandemia de covid-19.

Nas palavras do escritor, Violência e os dois primeiros romances da série mostram “aquilo que fizemos de nós mesmos” nas duas últimas décadas, “o país horroroso que nos tornamos, berço de uma elite de estúpidos e de desumanidades impensáveis”.

A narrativa, feita em capítulos curtos e em uma linguagem fria, narra o assalto a um condomínio de luxo, onde mora o assessor político de um candidato à presidência da república. Os ladrões acreditam que lá há montanhas de dinheiro escondidas entre as paredes da mansão.

A cena faz referência ao que acontece em Feliz ano novo, clássico conto de Rubem Fonseca em que convidados de uma festa são surpreendidos por uma ação violenta. No entanto, Bonassi dá toques tarantinescos ao seu livro, deixando-o ainda mais violento e cruel do que a história narrada pelo contista mineiro.

Além da desumanização da classe média-alta brasileira, Violência também entra fundo no lodo dos bastidores políticos, principalmente das campanhas majoritárias, onde qualquer tipo de ideologia escorre pelo ralo quando o único objetivo é vencer a eleição.

Depois de 15 anos produzindo roteiros para seriados da TV Globo, Bonassi está de volta à vida de freelancer, “rodando a minha bolsinha, oferecendo meus préstimos”, diz. Recentemente ele escreveu uma peça de teatro, que será dirigida em São Paulo por Nelson Baskerville. Também produziu um roteiro do seu primeiro longa-metragem como diretor, chamado Desamor.

A visão pessimista da sociedade brasileira contrasta com a fé cega que Bonassi tem em seu ofício e na literatura de um modo geral. Para ele, a literatura é “o último lugar da liberdade formal e moral com as palavras”.

“Ler um romance, sofrer e se emocionar com o sofrimento alheio, ainda é a melhor e a mais poderosa forma de conhecimento.”

• Como o título deixa claro, seu novo romance escancara a violência a que os brasileiros, infelizmente, estamos acostumados. Você acredita que o maior problema do Brasil é a violência gerada a partir das desigualdades sociais?
Não se trata apenas da violência como consequência das desigualdades sociais, mas por um certo desleixo generalizado quanto ao futuro, em especial por parte das elites, que preferem morrer em assaltos à mão armada defendendo seus Rolex, em vez de aderir a uma cultura de distribuição de renda, de democratização da propriedade e dos proventos sobre os recursos naturais do país. Isso quanto ao diagnóstico, quanto à fotografia do momento, mas há também esta percepção mórbida, e devastadoramente estúpida, entediante e indecente, de que nada muda, ou de que tudo muda para retornar ao mesmo nefasto lugar de origem: o fascismo de Bolsonaro é a reencarnação dos tigrões dos porões da última ditadura, que foi a reencarnação de ditaduras anteriores, república de milicos e de bananas, de impérios escravistas, do extermínio dos povos originários… Nossa história de zumbis tornou gêmeas violência e leniência. Apesar das pequenas conquistas identitárias, que muitas vezes seduz os iniciados em protestos, ainda somos uma sociedade de linchadores e de suicidas, cuja porção “bem-pensante”, “de bens”, desumanizou-se completamente nos últimos seis anos. A imprensa naturaliza o nazismo da extrema direita, convocando a canalha mais conservadora e burra para extensas entrevistas. Ligamos um foda-se para os princípios de moralidade e de justiça… E o pior é que a maioria do país mal se envergonha disso.

• Violência encerra uma série de três romance ligados por um arco temático que se atém à classe média brasileira e a problemas sociais, como pobreza crônica e preconceito — tudo isso tendo o cenário político contemporâneo como pano de fundo. Qual o lugar desses livros na atual literatura brasileira?
Gosto da ideia de que o romance ecoe o que se passa, não apenas como ilustração de fundo, mas quando a Grande História, a contemporaneidade, atravessa a vida dos personagens, determinando certos encontros e desencontros. Violência, embora não tenha sido planejado assim, encerra uma trilogia sobre — como eu gosto de dizer — “aquilo que fizemos de nós mesmos nos últimos 20 anos”… Luxúria, o primeiro romance dessa série, lançado pela Record em 2016, tem como trama central as dificuldades intransponíveis enfrentadas por um homem humilde para fazer uma piscina em seu quintal num conjunto habitacional de periferia, já que o entendimento da vizinhança é a de que “democracia deve ser ruim para todos”. O livro se refere a uma certa euforia que contaminou a todos nos últimos anos do governo Lula, seguida pela ressaca e a imoralidade institucional que nos levou ao golpe do parlamento e de Michel Temer contra a presidente Dilma. Degeneração, lançado em 2021, narra, em doze horas, as peripécias burocráticas de um homem para liberar e cremar o corpo do pai — personagem violento, torturador da delegacia do bairro —, com quem os filhos sempre tiveram uma relação difícil. A morte do velho acontece, na noite anterior à eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república, em 2018. Isto é: justamente quando o personagem pensa estar se livrando do seu passado estúpido e violento, este mesmo passado renasce encarnado para todos os brasileiros, na pessoa de um presidente da república de vocação nazista. E, por fim, esse Violência que, ao narrar o assalto a uma mansão onde supostamente se escondem malas de dinheiro, ecoa o cinismo que nos restou disso tudo, pelo momento, já que seguimos um país dividido, cuja elite não faz as suas lições de casa civilizatórias (inclusão dos socialmente marginais, distribuição de renda, democratização da propriedade, por exemplo).

• Seu livro deixa clara a cisão social do país, com ricos e pretensos ricos de um lado e uma horda de desfavorecidos de todas os tipos, de outro. Você não tem receio de uma leitura que o rotule de “maniqueísta”?
Não! Pois é justamente o contrário! A violência brasileira é riquíssima em sutilezas e camadas de significados (!): profissionais, raciais, econômicos, morais… Não há nada menos maniqueísta do que o tesão que temos no uso da força, por exemplo. É algo nojento, imoral, mas sutil, sensual, político. O que o livro faz é “pôr em ação” (trata-se de um romance policial) os personagens da nossa “cena de violência”, em que ricos e pobres, brancos e pretos, homens e mulheres se digladiam, sim, mas também se comunicam, geram contato e faíscas entre os polos, “contaminam-se”, criam tramas, narrativas e todo um “modo de ser” e de conviver, um vocabulário filosófico, quase religioso, por assim dizer, comportamentos sociais que, ao fim e ao cabo, nos definem. Mostram isso, esse país horroroso que nos tornamos, berço de uma elite de estúpidos e de desumanidades impensáveis…

• De que maneira a literatura pode (se é que pode) ajudar a entender a realidade de um país tão desigual como o Brasil?
Diante do amesquinhamento das palavras (escrita e leitura) nas redes sociais, na comunicação transformada em “coisa funcional”, penso que só a arte, em geral, e a literatura de ficção, em particular, podem dar conta do que se passa entre nós neste momento. Com a sociedade dividida, em demonização recíproca, em permanente pé de guerra, só as histórias humanas narradas podem nos restituir à razão e à sensibilidade perdidas e, assim, transmitir algum conhecimento racional e sensível (coisa que ao mesmo tempo só a arte faz) sobre como chegamos até aqui… À essa tragédia humana e social.

• Aliás, você acha que, por mais gasta que seja essa expressão, ainda vivemos uma infindável “luta de classes”?
Numa visão panorâmica é o que aparece: a desigualdade social continua fazendo vítimas em escala global! O que assistimos no Oriente Médio, por exemplo, é parte de um projeto de poder, as forças do imperialismo econômico em ação. Mata gente! Mas se nós não entendermos como isso se processa em nossa vida cotidiana, aqui mesmo, em nossas relações de trabalho, por certo, mas também como isso afeta os nossos afetos, então estaremos encerrados nisso em que estamos pelo momento: uma burrice eterna que se reproduz e se reitera a cada nova geração.

Fernando Bonassi

• O clímax do romance se dá quando assaltantes invadem um jantar na casa do assessor político de um candidato à presidência. Ali acontece todo tipo de violência, até sexual… Essa cena foi uma homenagem à literatura de Rubem Fonseca, especificamente ao conto Feliz ano novo? Acredita que a sua obra dialoga de alguma maneira com a de Fonseca?
Rubem Fonseca é o escritor brasileiro mais importante naquilo que diz respeito à criação de uma urbanidade local artisticamente de valor, culturalmente densa, foi ele quem deu à crônica do Rio uma dimensão e grandeza dostoievskianas. Um enorme estilista. Todos nós que viemos depois devemos muitíssimo a ele. A cena de Violência é sim a mesma de Feliz ano novo, mas os descaminhos das histórias seguem trilhas narrativas e morais diferentes. No mínimo, vai se notar que paulistas e cariocas lidam de maneira diferente com a situação — o que pode ser uma curiosidade a se debater, sobre diferenças e semelhanças entre as duas obras…

• O romance é escrito em capítulos curtos, alternando os assuntos e personagens, numa narrativa não linear. Há também uma voz bastante “impessoal” falando, muitas vezes em linguagem, literalmente, de Wikipédia. Que efeito imaginou com essa linguagem?
A narrativa policial tem muito de quebra-cabeças: as porções em que se fatiam as informações, a ordem em que se as apresenta, aquilo que se mostra e aquilo que se sonega são forças importantes para prender a atenção do leitor. Violência é esse caleidoscópio desfocado que vai se ajeitando à medida que as informações vão sendo lançadas, umas depois das outras. Esse é o jogo. O segredo do sucesso dele é a capacidade de surpreender de cada etapa dessa “evolução narrativa”: às vezes a história parece se desviar para um ponto “fora da curva”… mas alguns capítulos depois, você descobre que aquela informação, antes aparentemente desconectada, é parte substantiva da história que se desenrola. São as excitações e delícias da narrativa policial! Um policial brasileiro, por certo. Torço para que o livro chegue aos apreciadores do gênero. Vai ser bacana ouvi-los.

• Você me disse que o livro foi escrito durante a pandemia e que estava com “muita raiva”. O que mais o afligia naquele momento?
Viver num país à beira do fascismo, com uma população de limítrofes a ponto de elegerem uma excrescência moral e política como Jair Bolsonaro para a presidência da república; ver morrerem mais de 700 mil pessoas por inação de um governo de vermes negacionistas, de terraplanistas violentos, de supremacistas escusos; ver uma imprensa de segunda mão dando guarida às piores ideias e às pessoas mais desqualificadas, tudo em nome de uma ideia distorcida de “democracia”; perceber as polícias e as forças armadas cooptadas e aparelhadas por um projeto de poder de clara vocação nazista; sermos, por isso e aquilo, um verdadeiro problema para uma ordem mundial mais pacífica… Quem fará a nossa desnazificação, por exemplo? Dá pra encher umas cem páginas com as mazelas que borbulhavam e ainda borbulham do esgoto bolsonarista…

• Você vive em São Paulo. O caos da cidade o alimenta ou o perturba?
Gosto de viver numa cidade que funciona 24 horas. É uma cidade muito dura com quem não tem algum dinheiro, mas não é sempre mortal. Por aqui, até o crime organizado é ordeiro! Moro perto do Centro. Assunto pra escrever, com tanta gente dando trombada e se ralando, é o que não me falta. O caos, no entanto, nunca é bom. São Paulo está sucateada por uma série de administrações omissas. Poucos políticos que se elegem aqui ficam. A cidade não passa de um trampolim para outros cargos. Neste momento a cidade está podre, e às escuras. As coisas sempre podem piorar. E pioraram em São Paulo. Estamos na merda.

• Violência escancara o lado podre (e um tanto comum) da política brasileira. Qual é a sua opinião sobre os políticos e partidos que se revezam no poder?
Fiz campanhas políticas como redator durante os anos 1990 para vários matizes ideológicos e por mais morais que fossem, nunca dei nota dos meus serviços, sempre recebi em dólar, havia putaria à disposição dos funcionários, e droga, fácil de achar, e outras coisas que combinam pouco com política num país miserável como o Brasil: o que começa assim, mesmo na reconstrução democrática, está na cara que vai dar merda. Outra coisa: quando o candidato está em campanha, vira um produto, quer ganhar de qualquer jeito e o mais comum é que jogue as convicções e os princípios no lixo. Se você tem pruridos morais, entra em convulsão… Esta experiência toda está em Violência… No entanto, recentemente, vivemos algo pior: a divisão do país pela proposta de um projeto político horroroso, desumanizado, da extrema direita mais tacanha e a que muita gente importante e aparentemente racional aderiu. O ódio e o nojo da minha experiência infantil com a ditadura de 1964 e o medo de uma nova ditadura sempre vão me fazer ficar ao lado dos democratas.

• Entre os finalistas do prêmio Oceanos deste ano não há nenhum romance brasileiro. No entanto, há cinco livros de poetas nacionais disputando o prêmio. Como você avalia esta situação, sendo o Oceanos um dos mais importantes prêmios em língua portuguesa?
Um prêmio é importante, mas também é apenas o resultado de um grupo de leitores num momento. A poesia brasileira, em particular a escrita por mulheres, anda poderosíssima, e não me surpreende que tenham monopolizado as indicações. Também li bons romances brasileiros no ano passado, mas manda o gosto do júri. Júri de prêmio artístico não se contesta, nem se discute. Aliás, quanto ao prêmio Oceanos especificamente, além de ser fundamental para a integração dos países de Língua Portuguesa, não costuma apresentar controvérsias.

• Você tem uma longa trajetória como roteirista de cinema e TV. Como andam essas atividades? O que tem feito atualmente, além de publicar romances?
Fiquei os últimos 15 anos na TV Globo, onde, em parceria com Marçal Aquino, criei e desenvolvi dois seriados e duas minisséries por oito temporadas. Agora retornei à calçada dos freelancers, rodando a minha bolsinha, oferecendo meus préstimos. Escrevi uma peça de teatro que vai ser dirigida aqui em São Paulo pelo meu amigo Nelson Baskerville. Escrevi um filme pra eu mesmo dirigir, chama-se Desamor, estamos na batalha dos recursos… Na luta. Escrevo todo dia. Vendo minha mão de obra a quem quiser comprar, com certos pequenos senões… Ofereço meu peixe mais ou menos fresco no mercado a cada manhã…

• Nos streamings há uma abundância de séries sobre crimes e investigações. A que você credita o interesse do público por ficções em torno da violência, de crimes e da morte?
Não há nada mais excitante do que o ser humano diante da violência e da morte. Observamos, como leitores e espectadores, extasiados e destruídos, a finitude dos outros, e a nossa mesma! É um material ficcional e moral riquíssimo mesmo. Aprendemos muito ao testemunharmos desgraças. Pra isso que as tragédias existem, aliás! Para ensinar. Fazer prever, melhorar o que resta vivo. São, para mim, inesgotável fonte de sabedoria: em particular num país pobre e burro como o nosso, em que a violência e a brutalidade se tornaram linguagens, para além das palavras.

• Você tem 60 anos agora. Como tem sido a passagem do tempo para você? E especificamente sobre o seu trabalho, a escrita propriamente, o que mudou? Sente-se um escritor melhor do que o dos anos 1990, quando começou?
Pela minha experiência, na escrita, ao contrário do futebol, você melhora a performance quanto mais o tempo passa. Seu vocabulário aumenta, seu conhecimento de narrativa melhora, tem mais clareza, você evita se perder no meio do caminho… Embora nada disso seja garantido… Veja: amanhã eu vou me levantar para escrever, mas, ao contrário de um padeiro, não saberei o que fazer… Tenho um plano, mas não uma fôrma, nem uma receita por onde começar… Gosto disso. De imaginar. De transformar em palavras. Dar “materialidade ficcional” às melhores e às piores coisas que eu puder pensar…

• Você é um escritor. A literatura sempre terá valor em sua vida. Mas qual imagina ser o lugar da literatura no mundo hoje, um mundo regido pela internet e, claro, cada vez mais pela grana?
A literatura resta como o último lugar da liberdade formal e moral com as palavras. A necessidade de se comunicar depressa, de “lacrar”, presente nas redes sociais, matam qualquer possibilidade de emoção literária. Pode causar algum efeito, mas não levará à devida reflexão, necessária para a sabedoria verdadeira, enraizada na alma. Ler um romance, sofrer e se emocionar com o sofrimento alheio, ainda é a melhor e a mais poderosa forma de conhecimento. E bastante democrática, ainda! Violência é um livro terrível, mas acredito que imaginar o pior ainda é a melhor maneira de prevenir-se do horror… Meu abraço.

Violência
Fernando Bonassi
Record
352 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

Rascunho