Aos 69 anos, Reinaldo Moraes segue com gás total. Diferentemente do protagonista de seu mais recente romance, o famigerado Kabeto, que vive uma crise de criatividade (“um escritor bloqueado”) e não consegue achar a primeira frase de seu próximo romance, o autor paulistano vive uma fase de plena imaginação. Trabalha todos os dias, inclusive nos fins de semana, dias santos e feriados. Dedicação total para concluir os próximos dois tomos que vão dar seguimento à história contada em Maior que o mundo, livro lançado no final de 2018 e que é assunto desta entrevista.
Para se “desbloquear”, Kabeto, cujo nome de batismo é Cássio Adalberto, decide sair pelas ruas de São Paulo com um gravador registrando suas impressões sobre a vida e o homem contemporâneo. Sempre na esperança de que a primeira frase de sua narrativa surja e assim desencadeie um turbilhão de novas sentenças que vão compor o sucessor de Strumbicômboli, primeiro e a aclamado romance do autor.
Kabeto é uma espécie de irmão siamês de Zeca, o cineasta tresloucado de Pornopopeia, livro lançado há dez anos e que colocou novamente Moraes nos holofotes após um longo período sem publicar romances. A linguagem dos livros também se parece, com a mistureba entre referências cultas e discurso popular, cheio de gírias e neologismos urbanos — o que muitas vezes faz o leitor se sentir lendo uma espécie de Guimarães Rosa trocadilhesco da Rua Augusta. E, claro, o sexo e as drogas continuam sendo o combustível ideal dos personagens. São pontos de contato que suscitaram algumas críticas, sugerindo que o autor estaria se repetindo. O que Moraes trata com naturalidade. “De certa forma, Maior que o mundo é uma continuação de Pornopopeia, com o protagonista 10 anos mais velho. [Zeca e Kabeto] São primos-irmãos, esses dois grandes filhos da puta”, diz o autor em entrevista ao Rascunho, feita pelo WhatsApp.
A falta de sintonia de Kabeto com as pautas progressistas do momento é outro calo no sapato de Moraes. Uma provável explicação para que os livros do autor tenham feito pouco sucesso em prêmios literários, apesar da excelente repercussão de Pornopopeia entre críticos e leitores.
Mas o fato é que Maior que o mundo traz a eloquência e verossimilhança que dão a uma narrativa o carimbo de boa literatura. Moraes é daqueles escritores que conseguem transformar uma mera ida à padaria em narrativa interessante. E, a bem da verdade, Maior que o mundo é isso, um rolê de Kabeto, não à padaria, mas ao bar, transformado em epopeia literária.
• Pornopopeia e Maior que o mundo têm muitos pontos em comum: personagens picarescas, putaria, drogas e excessos. Quando rolou o convite do cineasta Roberto Marquez para fazer um roteiro para um filme inspirado no Pornô, não ficou tentado a fazer uma continuação do romance, ao invés de começar do zero (ainda que na mesma vibe)?
De certa forma, Maior que o mundo é uma continuação de Pornopopeia, com o protagonista dez anos mais velho. Mas o personagem narrador do livro novo, o Kabeto, que se desdobra em outras vozes narrativas, tem um perfil bem diferente, embora sempre em paralelo com o Zeca do Pornopopeia. Esse era um cineasta de apenas um filme “de arte” que sai em busca de um roteiro original, baseado em sua própria vida, prum possível (na verdade, impossível) segundo filme. Já o Kabeto é um escritor de um só livro publicado que não consegue destravar a cabeça pra compor o segundo romance. Zeca trabalhava com vídeo institucional para viver, Kabeto com revistas customizadas, que, de certa forma, são a versão impressa dos famigerados institucionais. Mesmo assim, um e outro são protagonistas de périplos bem diferentes, existencial e formalmente falando. Kabeto está em busca do Santo Graal da literatura. Zeca, no fundo, só quer descolar a próxima trepada, o próximo sacolé de pó, num exercício infinito de solipsismo demencial. Kabeto parece mais comprometido com a literatura como missão na vida. Zeca é o antirromântico por excelência, Kabeto tem uma veia sentimental latente que vai se revelar em algum momento — no terceiro volume da trilogia, segundo imagino eu. Zeca é um junky descaralhado, Kabeto largou a drogaria mais pesada e se dedica apenas a um alcoolismo sociável, com marijuana incidental. Ambos arrastam pela vida afora um machismo atávico que os torna patologicamente inatuais, obsoletos, risíveis à beira do ridículo. São primos-irmãos, esses dois grandes filhos da puta.
• Ricardo, Zeca ou Kabeto, quem é seu melhor personagem?
Não pergunte a um pai qual de seus filhos ele prefere. Se ele der uma resposta — é este, é aquela — estará demonstrando que é um pai de merda.
“O humor é um ácido insidioso que corrói sem piedade a solenidade dos discursos ideológicos, religiosos, melodramáticos, políticos e até mesmo poéticos.”
• Maior que o mundo é um livro metaliterário, não? Há várias análises sobre a técnica do romance ao longo do livro. Foi uma maneira de você discutir consigo mesmo sobre seu ofício?
Acho que esse componente metaliterário da narrativa é a razão de ser do livro. Trata-se de um livro de literatura, da mesma forma que há filmes sobre cinema. O próprio suporte da trama e seus personagens, o texto no caso, é que se apresenta como o “assunto” da obra. Mas há também o componente lúdico da narrativa, que não carece de nenhuma justificativa intelectual ou ideológica. Em grande parte, escrevo para me divertir. Se o leitor se divertir também, tá tudo certo. Senão… so sorry, bró.
• No começo do livro há uma frase provocativa: “Eu devia ter virado crítico literário. Bem mais fácil que escrever romance”. Concorda com o Kabeto?
É só uma provocação do escritor bloqueado, que é o Kabeto, diante da crítica literária. Ou seja, diante de seu próprio superego crítico. Na verdade, crítica e criação literária requerem talentos e conhecimentos muito específicos. Mas o grande ensaísta crítico sempre terá maior relevância do que o escritor medíocre ou apenas mediano. Pra ser escritor você não precisa estudar a fundo as literaturas mundiais e as teorias analíticas. Pra ser um bom crítico literário isso é absolutamente necessário, seja você um mero resenhista ou um ensaísta de fôlego. Em geral, o bom crítico precisa queimar muita pestana e acumular uma montanha de horas-bunda nas salas da graduação e da pós numa universidade. Para ser um bom escritor, basta ter traquejo com o uso artístico da palavra. Um leitor desorganizado pode virar um bom escritor. Um crítico desorganizado dificilmente terá alguma relevância. Provavelmente há um bom punhado de honrosas exceções a essas afirmações.
• Aliás, para muita gente o Pornopopeia é o melhor livro da literatura brasileira dos anos 2000. Mas o livro foi pouco badalado pela crítica. Não ganhou prêmios etc. Tem algum palpite para que isso tenha acontecido?
Na verdade, Pornopopeia foi abundantemente aclamado pela crítica, tanto a acadêmica quanto a jornalística, para minha absoluta surpresa. Você mesmo acaba de dizer que “para muita gente o Pornopopeia é o melhor livro da literatura brasileira dos anos 2000”. Muita gente achou isso, de fato. Agora, prêmios literários são outros quinhentos. Talvez as putarias, a junkeria e os excessos envolvendo essas dimensões da vida dos personagens, algo que eu não consigo contornar quando escrevo, funcionem como um dispositivo antiprêmios nos meus livros. Mas acho que não é necessariamente por isso que não amealhei estatuetas e diplomas com meus livros nos concursos literários. É que outros livros falaram mais alto à percepção e ao gosto dos jurados, simples assim. De qualquer forma, tenho conseguido sobreviver sem prêmios. Publico por boas editoras, tenho um bom público pros meus livros, que nunca passam em brancas nuvens na mídia, vendo os direitos para adaptações cinematográficas e teatrais. Tá de bom tamanho pra mim.
• Uma das coisas de que mais gosto nos seus livros é o humor. Mas esse elemento é pouco utilizado na literatura brasileira atual. Nossos autores são sempre muito sisudos na escolha dos temas e na maneira de narrar. O que poderia falar sobre isso?
O humor é um ácido insidioso que corrói sem piedade a solenidade dos discursos ideológicos, religiosos, melodramáticos, políticos e até mesmo poéticos. Mas penso que nem todo mundo tem estômago pro tipo de humor que eu venho praticando nos meus livros, humor esse que tende ao esculacho e à franca obscenidade. Já houve quem me acusasse de nunca ter saído do fundão da classe da quinta série. Caguei de rir ouvindo isso.
• A narrativa do livro mistura vozes em primeira e terceira pessoas, sem a utilização de aspas ou travessões nas falas dos personagens. Isso acabou sendo uma estratégia que casa bem com a velocidade do texto e os diálogos anárquicos e em alguns momentos nonsense?
Não tenho nenhuma teoria específica sobre vozes narrativas. Simplesmente fui alternando primeira e terceira ao sabor da escrita. No meu primeiro romance, o Tanto faz, me toquei a certa altura que estava escrevendo ora numa voz, ora noutra. Fiz, então, a primeira pessoa se encontrar com a terceira na plataforma do metrô, em Paris, pra decidirem no par-ou-ímpar quem continuaria a narrar a história. A primeira ganhou. A terceira foi catar coquinho no cemitério.
• Kabeto e Zeca são personagens que tentam driblar as convenções da vida cotidiana, mas às vezes são acometidos por uma rebordosa existencial. No fundo eles estão procurando algum tipo de redenção?
Não tenho muita prática com redenções de um modo geral. É provável que as rebordosas existenciais dos meus personagens tenham alguma ligação com a quantidade de álcool ingerida por eles na véspera. Nada que um grama de novalgina não resolva. Ou mais um porre bem tomado. De qualquer modo, me parece que viver é uma atividade que costuma gerar certo desconforto, não acha? Não há muito o que fazer a respeito.
• As aventuras sexuais e, digamos, o pensamento kabetiano não estão muito em sintonia com a lacração em vigor hoje no Brasil. Como se defenderia de um ataque feminista aos seus personagens que adoram “objetificar” as mulheres?
Uma jovem acadêmica feminista me desancou numa resenha n’O Globo, sem se dar conta de que o pobre do Kabeto vive levando esporro das amigas mais jovens no Maior que o mundo por conta de suas atitudes dinossáuricas em matéria de sexo e relacionamento amoroso. É como se ela, a resenhista, encarnasse umas dessas amigas do Kabeto. Mas a moça acabou reconhecendo que o texto é envolvente e que ela, mesmo se mordendo de raiva, não conseguia parar a leitura. Não podia ter-me feito elogio maior.
• A poesia sempre está, de alguma forma, muito presente em suas narrativas. Que tipo de leitor de poesia você é? Que lugar e importância ela tem em sua vida de leitor?
A poesia é o laboratório da linguagem. Minha sensibilidade como escritor foi adestrada nos versos dos poetas. Me apaixonei por Camões, Sá de Miranda, Álvares de Azevedo, Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Drummond. Pra não falar de Chico Buarque, Caetano, Gil, Noel Rosa, Cartola & companhia ilimitada.
• Vira e mexe, há sempre alguém dizendo que o romance está em crise e que as narrativas realistas estão superadas — e que esse seria um dos motivos da paulatina perda de importância da literatura ao longo das décadas. Seus livros são realistas e urbanos. O que pensa sobre essa “crise” da literatura?
Quem colocou a literatura em crise foram os próprios escritores modernos. Joyce botou o romance numa tremenda sinuca de bico, com aquela história de narrar os fatos da vida de todos os pontos de vista possíveis mais ou menos ao mesmo tempo. Acho que essa crise é permanente. É o caldo de cultura em que floresce a literatura. Aliás, qual arte de representação não vive em crise? Isso significa que você tem que reinventar sua arte para poder exercê-la. Digamos que não é a tarefa mais fácil do mundo.
• Em uma narrativa realista, algumas circunstâncias poderiam parecer irreais, caso não estivessem em um livro de ficção. Como um escritor faz para que leitor acredite que uma situação aparentemente “absurda” seja crível? Está aí o “pulo do gato” do escritor?
O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge matou essa charada ao bolar o conceito de “suspensão do descrédito”. Ele queria enveredar pelo fantástico na poesia sem perder a credibilidade perante os leitores, gente culta e refinada. O segredo, diz ele, é injetar nas piruetas da imaginação “o interesse humano e a aparência de verdade”. Com isso você consegue a cumplicidade do leitor, que topará, então, suspender o descrédito diante do fantástico, do sobrenatural, do absurdo, em nome do prazer que lhe proporcionará a leitura. É uma espécie de acordo tácito entre escritor e leitor que vem sendo pactuado desde Homero, ou até antes.
“Já houve quem me acusasse de nunca ter saído do fundão da classe da quinta série. Caguei de rir ouvindo isso.”
• Em 2005, você lançou um ótimo livro de contos, Umidade. Mas depois disso só se lançou em voos solos no gênero, publicando em revistas. Por quê?
Não me vejo como um contista de verdade. Meus contos resultam enormes, como minirromances. Tenho vários inéditos na gaveta. Estou planejando mais um volume de “contões” com esse material, mais o que já foi publicado em revistas, mas só quando acabar essa trilogia mastodôntica inaugurada com Maior que o mundo.
• Quando lançou Pornopopeia, você disse que o romance era bem maior em sua versão inicial e que houve muitos cortes até chegar à versão final. Com Maior que o mundo também aconteceu isso? Como é esse trabalho de corte? Você elimina capítulos inteiros? O que você faz com essa montanha de material? Já conseguiu reaproveitar algo ou simplesmente milhares de palavras vão para o lixo?
Sim, corto longos trechos, episódios inteiros e muito raramente aproveito esse material. É uma perda de tempo danada, mas não sei fazer de outro jeito. Escrevo de forma compulsiva, obsessiva, meio delirante às vezes, o que me leva a digressões e birutices perfeitamente dispensáveis. Se o leitor visse a lata de lixo dos seus escritores preferidos, nem lhes daria bom dia ao encontrá-los na rua.
• Seus dois livros mais recentes são romances de fôlego, longos. Como os escreveu? Trabalhou por empreitada ou foram escritos aos poucos, mas de forma contínua?
Não tem segredo. Vou escrevendo todo dia. Se tenho que trabalhar em outra coisa, reservo ao menos duas horinhas por dia pra tocar o romance. Escrevo sete dias por semana, não sei o que é feriado, férias, nada. Pra escrever Maior que mundo me enfiei por pelo menos duas semanas por mês numa casota na roça que alugo em parceria com um amigo. Lá não tem telefone, internet, bar próximo, amigos, nada. Só mato e silêncio. Enfio o coração, a cabeça e o pau no teclado, e que o mundo se acabe em barranco. Um belo dia acordo e vejo que, bem ou mal, escrevi um livro.
• Maior do mundo é o primeiro de uma trilogia de romances. Há alguma previsão para que os outros livros sejam publicados?
Estou achando que acabo o segundo volume até o fim do ano. Deve sair no primeiro semestre do ano que vem.
• Em 2020, você fará 70 anos. Pensa muito nisso? O que espera da vida e da literatura daqui pra frente?
Espero viver bem até os 140 anos pra dar conta de todos os meus projetos literários. Vamos ver o que rola.