Fim da espera

Milton Hatoum fala sobre o processo criativo de "A noite da espera", que marca seu retorno ao romance após nove anos
Milton Hatoum, autor de”A noite da espera’
25/02/2018

Em 2011, em uma conversa informal com Milton Hatoum, perguntei a ele por que publicava tão pouco, mesmo tendo uma legião de leitores ávida por seus livros. “Porque prefiro ler”, disse. Nunca esqueci aquele diálogo, que em poucas palavras dizia muito sobre o escritor amazonense. Era uma resposta fora da curva, quase altruísta, em tempos de exposição exagerada, em que todos fazem de tudo para aparecer.

Naquela época o autor já trabalhava na série O lugar mais sombrio, cujo primeiro dos três romances, A noite da espera, foi lançado no segundo semestre de 2017. Os outros dois volumes saem em 2018 e 2019. Três livros em três anos. Algo inédito na carreira de Hatoum, que nesta entrevista ao Rascunho comenta o “caminho longo e sinuoso” da escrita de um romance. “Não jogo a toalha antes de atingir um limite físico e mental”, diz.

A noite da espera surge após Dois irmãos, o best-seller de Hatoum, ter ido parar na TV Globo, transformado em minissérie no começo de 2017. Em comum, os dois livros trazem uma história de desagregação familiar — um dos pilares da obra do autor.

No romance mais recente, o protagonista Martim procura um caminho existencial após a separação dos pais e a mudança para Brasília, na virada das décadas de 60 e 70, em plena ditadura militar. Outro assunto recorrente em seus livros, a política agora divide espaço com um cenário cultural efervescente: Martim e seus novos amigos formam uma trupe ávida por referências artísticas. É a deixa para que a narrativa seja povoada por pintores, cineastas e poetas, transformando a história em um notável romance de formação.

A noite da espera também marca uma mudança estilística na obra de Hatoum. Com capítulos curtos, que se alternam entre períodos do narrador na capital federal e em Paris, o livro e sua estrutura seguiram o ritmo das experiências de vida do próprio autor quando jovem. “Minha vida de estudante em Brasília e depois em São Paulo era fragmentada. A forma que encontrei [de narrar] tem a ver com tudo isso, com a descontinuidade ou suspensão momentânea da vida, com a confusão de anseios, frustrações, dúvidas. Por isso usei cartas, anotações, diários… ”

A seguir, Hatoum fala também sobre outras questões instigantes, como o futuro incerto e nebuloso do Brasil.

• Você tem dito que A noite da espera foi escrito muito antes do início da crise política que vivemos agora no Brasil. Portanto, o impeachment da presidente Dilma e a derrocada moral e política que assola o país hoje não teriam influenciado a escrita do romance. Mas é muito provável que o leitor faça uma relação direta entre a história do livro, que se passa durante a ditadura militar, e o presente. Você pensou nessa recepção por parte do leitor?
Não. Mas os conflitos de um romance podem falar do atual contexto histórico-político. O tempo presente contém o passado. O que acontece hoje tem uma relação profunda com a nossa história, pontuada de tragédias e desmandos. Talvez seja paradoxal, mas na literatura essas correspondências podem ocorrer à revelia do autor.

• Muita gente considera o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff um golpe. Você vê paralelo entre os anos 1970 e o momento atual na política brasileira?
Uma ditadura é um estado de exceção permanente. Não foi outra coisa o AI-5, que deu todos os poderes ao governo militar. Naquela época, cada número do Rascunho teria sido submetido à censura, e provavelmente nossa conversa teria sido mutilada. E se as palavras “ditadura” e “tortura” fossem publicadas, todos nós seríamos detidos e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Mas há fortes indícios de autoritarismo e arbítrio no atual governo, que nada mais é do que um inventário de escândalos, com nove ou dez ministros indiciados e o próprio presidente sob suspeita. Aliás, o autoritarismo é exercido nos governos federal, estadual e municipal. Não faltam exemplos: repressão a movimentos sociais, a passeatas, protestos. Prisões de estudantes e professores, invasões de várias universidades, conduções coercitivas de professores e reitores que nem sequer foram intimados a depor. Isso é inconstitucional. O reitor da Universidade Federal do Paraná publicou um ótimo artigo sobre essa impostura. E há tantas outras aberrações nessa democracia caricata. Uma das maiores é a violência contra negros, indígenas, mulheres. Li os ensaios e vi as fotos do livro Conflitos — fotografia e violência política no Brasil, 1889-1964, publicado pelo IMS. Esse livro analisa e ilustra a história da violência no Brasil até o golpe de 64. O genocídio em Canudos foi um dos atos mais bárbaros da República nascente. E essa matança nunca foi interrompida. Mais uma vez: o tempo presente contém o passado.

A escrita de um romance percorre um caminho longo e sinuoso. Depende muito do ritmo, da pulsação, da exigência de quem escreve. Não jogo a toalha antes de atingir um limite físico e mental.

• Há uma percepção de que, no Brasil, os escritores de ficção participam pouco dos debates sobre assuntos importantes da pauta nacional. Seus livros, nesse sentido, são políticos? Acha que a literatura e os autores poderiam ter mais protagonismo?
Não tive pretensão de escrever ficções políticas, mas todo ser humano é político. Na imensa maioria dos romances, a política aparece de modo mais ou menos ostensivo. Às vezes está oculta, mas basta ler com atenção e você encontra lances do jogo político, do exercício e disputa do poder. Isso pode aparecer na posição social do narrador ou das personagens, nos conflitos morais, na humilhação do corpo, no machismo, racismo, em qualquer tipo de preconceito. O que se deve evitar num romance é o discurso ideológico. Mas a dimensão ética e estética é sempre importante. A literatura e a voz dos escritores perderam espaço nas últimas décadas. Isso é compreensível: a literatura exige um tempo longo de leitura, concentração, reflexão, imaginação. Não gosto de política partidária, nunca ingressei num partido nem fui militante político, mas dos 12 aos 30 anos minha geração viveu sob uma ditadura. Mais de duas décadas de brutalidade e censura deixaram marcas nocivas nas instituições, na prática política, na educação pública… O fator externo influi na literatura. Quer dizer, influi não apenas como contexto social e político, mas principalmente como possibilidade de se inventar um conflito moral, um trauma que deve ser interiorizado pelas personagens. Foi isso que tentei fazer nesse romance.

• Quando lançou Cinzas do Norte, você disse que era um pouco os personagens Lavo e Mundo — dividido entre a província e o mundo. A noite da espera parece ser seu livro mais autobiográfico. Martim é seu verdadeiro alter ego?
Não. Martim foi pensado, inventado e construído para ser esse personagem-narrador nos dois primeiros volumes. A experiência e o modo de ser do Martim coincidem com a minha vida em poucos aspectos. Nós dois passamos uns anos em Brasília e estudamos no mesmo colégio. Senti a solidão do Martim quando morava na capital. Aos 15 anos de idade, eu também me distanciei da família e da minha cidade. Mas as coincidências param por aí. Meu alter ego talvez se aproxime mais do Nortista e da Ângela.

• A noite da espera traz a história de uma família improvável que, inevitavelmente, se desfaz. Rodolfo é um engenheiro conservador casado com uma professora de francês bastante progressista. O casamento acaba e o filho Martim é jogado às traças, achando uma nova família entre os amigos de Brasília. A derrocada da família como instituição já aparece em Relato de um certo Oriente e Dois Irmãos. Esse é o seu grande tema?
Mas as famílias não são sempre, ou quase sempre improváveis? Esse é o tema de inúmeros romances, contos, poemas, peças de teatro. Os fantasmas familiares na poesia de Drummond, Laços de família, da Clarice Lispector. Extinção, de Thomas Bernhard, é focado na degradação de uma família burguesa austríaca. As taras e a sordidez de famílias de classe média nas peças de Nelson Rodrigues e nos contos de Dalton Trevisan. A partir do Dois irmãos, e com mais ênfase do Cinzas do Norte, tentei expandir o drama familiar para a cidade e até para um contexto mais amplo, incorporando questões do país.

• Seus leitores costumam reclamar que você publica pouco. Foram nove anos desde Órfãos do eldorado (2008). No entanto, pelos próximos dois anos teremos livros novos com sua assinatura nas livrarias — as sequências da trilogia estão programadas para serem publicadas em 2018 e 2019. Essa série foi uma forma de aplacar a sanha de seus leitores?
Meus leitores são pacientes e fiéis. Bom, alguns devem ser impacientes, e outros, infiéis, o que não é nada mau. Foram dez anos de espera por esse primeiro volume. A escrita de um romance percorre um caminho longo e sinuoso. Depende muito do ritmo, da pulsação, da exigência de quem escreve. Não jogo a toalha antes de atingir um limite físico e mental.

• Você é dos poucos escritores brasileiros que tem leitores fora do circuito estritamente literário. Ou seja, não é lido apenas por seus pares, jornalistas e críticos. Sente-se privilegiado com essa condição diante de um cenário de tão poucos leitores?
O privilégio pressupõe direitos ou prerrogativas especiais em relação à maioria, e a gente não deve pensar a literatura nesses termos. Mas fiquei contente. Quem não ficaria? Todo escritor deseja ter muitos leitores. Se possível, leitores de qualidade, como dizia Tchekhov. Em seus Diários, Sylvia Plath diz várias vezes que desejava escrever um best-seller. Joseph Conrad também diz isso numa carta a seu agente literário. O Dois irmãos e o Cinzas do Norte atraíram um público maior, de fato incomum para os padrões do país. Não sei a razão disso. A leitura nas escolas e universidades contribuiu bastante, mas há muitos leitores fora desse circuito. No fundo, o leitor é um grande mistério.

• A noite da espera também traz uma figura curiosa: Faisão, um embaixador que está na geladeira do Itamaraty porque critica o status quo. O personagem carrega certa dose de surrealismo em suas ações, é um homem delirante, embebido pela poesia, que lembra muito o jornalista Paulo Martins, de Terra em transe (filme citado no livro). Faisão também tem traços fellinianos. Como surgiu o personagem?
Paulo Martins e os traços fellinianos do embaixador Faisão são bem lembrados. Terra em transe foi um dos filmes marcantes da minha juventude. O embaixador surgiu no rascunho do romance como uma personagem influente na formação intelectual de Martim, mais que na do Nortista. Faisão vê ou percebe em Martim uma paixão pela poesia e pela arte, e isso ele não vê no filho dele, o Fabius. Naquela época, alguns poucos diplomatas davam abrigo a estudantes meio perdidos, ou totalmente perdidos. Guardei vagamente essas lembranças, e a imaginação fez sua parte.

• O livro é permeado de referências culturais, de autores de ficção, poetas e cineastas. Esses realizadores fazem a cabeça de Martim e seus amigos, quase todos com veleidades artísticas. Esse aprendizado cultural e político do protagonista permeia toda a narrativa. Sempre foi sua intenção fazer de A noite da espera um romance de formação?
Sim, foi intencional desde o primeiro esboço. Poetas, fotógrafos, pintores e tradutores aparecem nos outros livros. No Relato de um certo Oriente, o fotógrafo alemão Gustav Dorner é um exemplo. No Dois irmãos, no Cinzas e no Órfãos do Eldorado há poetas, pintores e tradutores. São romances de formação ou de aprendizagem, às vezes eles se confundem com o romance da desilusão.

• O livro tem uma estrutura diferente dos seus romances anteriores, com capítulos bem curtos. A linguagem também está mais enxuta. Nos seus primeiros livros, você escrevia e divagava mais, em muitos momentos com uma prosa poética. Sua escrita ficou mais econômica?
Só começo a escrever quando encontro a forma de narrar, a estrutura do livro. Minha vida de estudante em Brasília e depois em São Paulo era fragmentada, interrompida pelas circunstâncias políticas, pela busca de uma atividade prazerosa, uma busca que às vezes não levava a lugar algum. A forma que encontrei tem a ver com tudo isso, com a descontinuidade ou suspensão momentânea da vida, com a confusão de anseios, frustrações, dúvidas. Por isso usei cartas, anotações, diários…

O tempo presente contém o passado. O que acontece hoje tem uma relação profunda com a nossa história, pontuada de tragédias e desmandos. Talvez seja paradoxal, mas na literatura essas correspondências podem ocorrer à revelia do autor.

• Por que a série de romances se chama O lugar mais sombrio?
Esse título pode aludir a muitas coisas: um lugar ou país, o sentimento, a política, as relações humanas. A parte sombria tem a ver com a vida e o destino da maioria das personagens. O romance é o lugar da desilusão, uma narrativa sobre personagens diante de um impasse. Mas essa é a perspectiva do romance, desde a sua origem. Enquanto gênero, é difícil definir um romance, pois nele cabe tudo. A questão é como estruturar e organizar a narrativa.

Uma das qualidades salientadas pelos seus leitores é que sua literatura é acessível. Mas essa característica também gera ressalvas por parte da crítica, que vê sua prosa muito atrelada à narrativa clássica, do século 19. O que pensa sobre isso?
As ressalvas são bem-vindas, mas a opinião dos leitores é soberana. E certamente a maioria dos meus leitores conhece obras de autores do século 19, do modernismo e da literatura contemporânea. A verdade é que centenas de romances e contos são totalmente acessíveis: O estrangeiro (Albert Camus), São Bernardo (Graciliano Ramos), os contos excelentes de Anjo noturno, do Sérgio Sant’Anna. A metamorfose é um dos livros mais lidos por estudantes do ensino médio. Há os que pensam, ingenuamente, que escrever sem pontuação ou usar neologismos é sinônimo de novidade ou originalidade. O experimentalismo, quando é meramente artificial ou apenas um jogo verbal, não convence. Não é o caso de James Joyce, Marcel Proust, Guimarães Rosa, Céline, Faulkner, escritores que inovaram e enriqueceram as literaturas de língua inglesa, francesa e portuguesa. Foram gênios verbais, e todos escreveram de uma perspectiva interna, às vezes movidos pela loucura, mas a loucura dos iluminados. Guimarães Rosa costumava dizer que era um sertanejo. Os livros desses autores são, sem dúvida, difíceis. Traduzir Finnegans Wake ou Grande sertão: veredas é uma façanha, trabalho de uma vida. Donaldo Schüler, Bertold Zilly e Alison Entrekin que o digam. Com paciência, obstinação e prazer, tento aprender um pouco com os gigantes do século 19 e do modernismo.

• Quando concebeu O lugar mais sombrio, pensou em publicar as três histórias em um único volume? O que o leitor pode esperar dos outros dois romances?
Num único volume, não, pois não era uma trilogia. O processo da escrita me levou a isso. Preferi dividir o calhamaço em três partes. No segundo volume a ação é ambientada em São Paulo, com a entrada de novos personagens e outros conflitos. Será um livro mais extenso que o primeiro. No terceiro haverá vários deslocamentos: a ação se passa na França e é narrada por uma personagem feminina.

• Seu livro de maior sucesso, Dois irmãos, foi adaptado para a televisão. Isso ajudou a divulgar sua literatura? A TV instiga a leitura em casos assim?
Ajudou um pouco. A audiência foi enorme, sem dúvida milhões de telespectadores, mas o Dois irmãos não é um thriller nem um livro comercial. É um exemplo muito claro da ausência de um grande público de leitores. Durante a exibição da minissérie, o Dois irmãos atraiu uns 30 mil leitores, mas antes já havia 170 mil. Esses números respondem à pergunta que você fez. Na França, um livro premiado com o Goncourt é lido por, no mínimo, 200 mil leitores. Quando se fala em leitores de qualidade, é preciso mencionar a educação pública de qualidade, que requer boas condições de ensino, formação sólida de professores, boas bibliotecas, salário digno. Exigir formação educacional eficiente e pagar um salário de R$ 1.500 ao corpo docente é um dos grandes escárnios da elite política.

• Para encerrar, o que acha que vai acontecer com o Brasil nos próximos anos? Você é otimista em relação ao futuro?
Não sei o que vai acontecer, mas basta estar vivo para desconfiar de qualquer otimismo. As grandes questões brasileiras se remetem ao funcionamento precário ou à quase falência das instituições. Há corrupção no governo federal, nos estados e em milhares de municípios. A degradação ética e a impunidade alcançaram níveis alarmantes, e essa estrutura arcaica, corrupta está longe de ser desmontada. Numa crônica escrevi: “Faz parte da desfaçatez nacional o conluio entre os três poderes”. O país está encalacrado. Mas o fio de esperança, mesmo frágil, não pode ser rompido. Espero que os eleitores não se deixem enganar nas próximas eleições para presidente. Minha maior temeridade é a ascensão do fascismo. Mas a manutenção da atual classe política é também algo a temer.

>>> Leia resenha de A noite da espera

Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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