Entrevista de Inês Pedrosa

Entrevista de Inês Pedrosa concedida a Marcella Lopes Guimarães.
Inês Pedrosa, autora de “Fazes-me falta”
01/10/2003

Como você avalia o alcance da literatura escrita em língua portuguesa depois do Nobel de José Saramago?
O Nobel veio espicaçar a curiosidade dos editores internacionais pela literatura portuguesa — tive a felicidade de estar na Feira de Frankfurt, numa delegação de escritores portugueses que incluía Saramago, quando esse Nobel foi anunciado, e verifiquei que houve uma autêntica expedição de editores internacionais ao pavilhão português, querendo saber tudo sobre a literatura portuguesa. É justo que se sublinhe que o próprio Saramago demonstrou uma camaradagem e uma generosidade enormes para com os escritores portugueses, não só na comovente conferência de imprensa post-nobel, como em inúmeros eventos internacionais, desde então. E, de fato, as traduções de autores portugueses contemporâneos têm crescido, nos últimos cinco anos.

• Em Pela mão de Alice, Boaventura de Sousa Santos, caracteriza Portugal como uma sociedade semiperiférica, nem central, nem margem, mas com traços de ambas. Para quem já venceu o Bojador…, o entrelugar não parece terrível? Ou os portugueses se convenceram de que o (Quinto) Império é um tema da obra de Vieira e nada mais?
Pessoalmente, sou muito atraída pelo conceito de entrelugar — esta expressão parece-me até muito feliz. Para a protagonista de Fazes-me falta, inventei um “noante” entre o céu e a terra que me parece, afinal, uma maneira portuguesa de viver. Portugal foi um colonizador muito metafórico, no sentido em que se interessou sempre mais em marcar território (plantar padrões, estátuas, azulejos) do que enriquecer com ele (os espanhóis, já para não falar dos holandeses, transformaram o saque das conquistas em riqueza nacional, os portugueses esbanjaram tudo) — talvez por falta de jeito para lidar com a dimensão material da existência. Sente-se, todavia, ainda, o aroma da nostalgia, não tanto do “império” como dos grandes espaços da Descoberta. A descolonização deixou feridas, que doem precisamente porque foram absorvidas demasiado depressa, e num silêncio orgulhoso. A imensa maré de retornados das ex-colônias africanas que veio desaguar a Lisboa, só com a roupa que tinha no corpo, depois da revolução de 1974, marcou decisivamente o progresso econômico português dos últimos trinta anos, com a sua energia e a sua imensa capacidade de sobrevivência. Mas há, nessas pessoas que tiveram grandes propriedades em África, um saudosismo amargo que demorará mais uma geração a diluir-se. Por outro lado, há toda uma geração de jovens portugueses de raça negra que, embora nunca tenha conhecido a terra dos seus pais, se auto-identifica como africana — porque se sente ainda intimamente classificada como “estrangeira” em Portugal. Significa isto que há traumas a ultrapassar e racismo a combater. No entanto, Portugal é já, não só por lei mas também por alma e paisagem, um país tranqüilamente europeu — moderno, cosmopolita, com uma democracia já solidamente instalada. Tenho a impressão de que a decantada falta de auto-estima dos portugueses é já mais uma figura do folclore de exportação do que outra coisa.

• A protagonista feminina de Fazes-me falta afirma que, para o seu amigo, “os fados da Amália, [só recordavam-lhe] o país desbotado (…) [e a] miséria da guerra”. Ainda sim, ela, mais jovem que ele, ouvia-os com delícia. Os portugueses de hoje ainda amam o fado? São fadistas, apesar da União Européia e do euro?
Pois é: o fado é perfeitamente compatível com o euro — de resto, é um dos elementos culturais portugueses que mais multiplicam os euros. Há toda uma nova geração de fadistas que conquistou a juventude para o fado — para já não falar do brilhante trabalho de re-invenção do fado feito pelos Madredeus. A geração do combate à ditadura é que teve problemas em aceitar o fado: para as jovens gerações, o fado é aquilo que marca a nossa diferença, nesse conjunto desejavelmente homogêneo chamado Europa — juntamente com o vinho, as pataniscas de bacalhau, as jóias de filigrana, a poesia, a língua. O produto português está na moda em Portugal — e devemos isso à própria integração européia.

• Qual é a importância da CPLP para os escritores de Língua Portuguesa? O que ela conquistou na prática? Quais são as barreiras ainda não vencidas?
A única obra da CPLP de que me tenho apercebido é o Prêmio Camões, um fantástico prêmio literário oferecido pelo Brasil e Portugal (que dividem o pagamento) a todos os Países de Expressão Oficial Portuguesa. Esse Prêmio tem sido bastante útil à divulgação da literatura de língua portuguesa no mundo. Quanto ao resto, infelizmente, não se dá pela existência desta tão promissora Comunidade — creio que, uma vez mais, por causa do culto arreigado (e não exclusivamente português) de traumas, complexos & ressentimentos já completamente fora de prazo. Esquecemos esta evidência simples: uma língua é um bem inestimável, que não se pode deixar morrer. Em particular — e os ingleses que me desculpem — uma língua tão rica, barroca, luminosa, certeira, musical e chorona, como este nosso maravilhoso português.

• A política separou o casal de amigos de Fazes-me falta e a morte, incrivelmente, uniu-os novamente. Além de uma amizade que era a “ciência do desaparecimento” — “comecei a desaparecer no dia em que meus olhos se afundaram nos teus”, podemos afirmar que a crença na Verdade, para muitos impossível no mundo da multiplicação de relativizações, era o que unia o casal?
Absolutamente — era esse o valor central na relação deles. Para além da erótica da disputa: qualquer um deles se pelava por uma boa guerrinha. Ela, aliás, nem morta desiste desse prazer.

• Em a Instrução dos amantes (1992), seu primeiro romance, Cláudia e Isabel eram grandes amigas, seus corações não tinham defesa; em Nas tuas mãos (1999), Camila e Glória, Natália e Leonor… Agora em Fazes-me falta, o casal de amigos, uma despedida que não acaba… Qual é a importância da amizade na sua literatura, sobretudo em seu último romance, e nesse mundo que prefere aliados de guerra, inimigos da paz?
A Amizade é, provavelmente, o meu grande tema — também porque me parece ser um dos temas mais importantes do nosso tempo, e um dos que menor tratamento artístico tem tido — creio que haverá um poema de amizade por cada dez mil poemas de amor, idem para as canções, as peças de teatro, os textos filosóficos etc. Trata-se de um assunto recente na História humana — até ao século 20, a família, enquanto unidade de poder, de guerra ou de gestão econômica, era a grande realidade do relacionamento humano. As relações humanas desinteressadas e livres eram completamente desvalorizadas, para não dizer inexistentes. Os amigos são hoje a família que escolhemos, e isto está a alterar a paisagem humana — pelo menos no mundo ocidental, regido pelos princípios da Democracia e da Livre Cidadania. Aliás se olharmos para a História da Humanidade de forma serena e minimamente objetiva, constataremos que o ser humano tem vindo a domar progressivamente o seu instinto bélico, e que estamos finalmente a iniciar a Pré-História da Paz. Ao contrário do que à primeira vista pode parecer, e apesar do horror das duas guerras mundiais, do Holocausto e da bomba atômica, todos os anteriores séculos foram bem mais tenebrosos do que os nossos (20 e início de 21). Afinal, a noção de Direitos Humanos e respeito pelo outro é de uma novidade assombrosa. O massacre, a pilhagem, a escravização, a submissão brutal do outro foram a regra geral do Mundo — agora, pelo menos, já há uma parte do mundo que não funciona assim. O culto crescente pelo valor da Amizade é uma prova disso mesmo. Interessa-me cada vez mais trabalhar sobre esse valor-em-progresso, cheio de cambiantes, subtilezas, grutas por explorar.

• Em Fazes-me falta a idéia do absurdo da morte permeia o discurso do amigo — “Que sentido faz a morte de uma rapariga de 37 anos, catano, roída pela posteridade?”. É por isso que o título do romance é declaração recorrente no discurso dele?
Sim. E também porque é uma expressão curta e incisiva, muito usada em Portugal. Dizemos Fazes-me falta à mãe e ao colega de trabalho, à máquina de lavar roupa que se avaria e ao namorado relapso. A tal ponto que despejamos a intensidade da expressão. Quis enchê-la de novo, mostrá-la na sua dupla face de música de fundo do quotidiano e ária fúnebre.

• As duas narrações em Fazes-me falta constituem um diálogo interdito, porque embora os dois falem, só um escuta e vê o outro. Esta construção afirma o papel do leitor como o agente que opera o significado da “conversa” entre os amigos?
Exatamente. É que os livros prontos a mastigar moem-me de tédio. Há quem lhes chame entretenimento, o que sinceramente muito me espanta. Não consigo entreter-me com nada que dispense a minha participação. Digamos que sou ativista — e escrevo para ativistas.

• Por ocasião do lançamento no Brasil do romance Adeus, princesa (1985 em Portugal e 2001 no Brasil), a portuguesa Clara Pinto Correia afirmou que a idéia do livro partiu da observação de dois jovens namorados: uma jovem portuguesa, estudante em Beja e um oficial alemão da Otan. O romance gira em torno de investigações sobre o assassinato de um jovem alemão, oficial da Otan… Sua coleção de recortes de jornal serviu como mote para o nascimento literário de Dinis, Cláudia, Isabel, Jenny, Camila, Natália, de A instrução dos amantes e Nas tuas mãos?
Agradeço o paralelismo com esse romance da Clara Pinto Correia, que é um dos grandes romances do Portugal contemporâneo, uma história poderosíssima muitíssimo bem contada, que recomendo vivamente. Partilho com a Clara esse vício de recortar o real, que ambas contraímos, de resto, na redação do mesmo jornal (O Jornal, onde trabalhamos — e nos divertimos — como umas loucas, no início da década de 80). No entanto, os meus recortes humanos nascem mais da vida real, do cruzamento de características de pessoas distintas. O grupo de jovens de A instrução dos amantes cruza características de vários amigos e conhecidos da minha adolescência, e o avô de Cláudia é claramente decalcado de um avô a quem devo a gênese da minha paixão pela literatura e pela História. A Jenny de Nas tuas mãos nasceu de uma história que uma amiga minha me contou, de uma mulher que só depois da morte do marido revelou aos sobrinhos que vivera um casamento branco, sem consumação, porque o marido era na verdade amante do homem que passava por ser o seu maior amigo. Pediu aos sobrinhos autorização para casar com o amante do marido, para não ficar sozinha, e os sobrinhos deram-na como louca para a proibirem de casar, de forma a serem os únicos herdeiros dela. Essa mulher morreu, efetivamente, louca. Esta história assombrou-me de tal maneira que comecei a sonhar com essa mulher que nunca vi, e que me pedia: “Escreve a minha história”, como quem suplica a salvação. E assim nasceu a Jenny. As outras duas mulheres do livro nasceram, natural e inesperadamente, dela. Quando comecei a escrever o romance, só conhecia ainda a Jenny. Os personagens convocam outros personagens, nós não controlamos tudo. Parece-me até que o segredo da literatura está em deixarmo-nos conduzir por eles, aprender a escutá-los e a abandonarmo-nos nas mãos deles. Só assim eles aceitam dizer-nos coisas sobre nós mesmos, depois da entrega.

• Uma das coisas mais especiais da sua literatura é a proximidade com a poesia… Seu texto é de um lirismo tocante. Qualquer dia assistiremos ao lançamento de um volume de poemas de sua autoria? Em 2000, você organizou uma antologia de poesia portuguesa de amor. Como a poesia está presente no seu processo de criação? Fale dos seus poetas eleitos.
Fico muito feliz por saber que o meu real amor à poesia transparece no que escrevo. Na verdade o que eu procuro é a fusão entre prosa e poesia — na arte como na vida, já que casei com um homem que começou por ser “só” um dos meus poetas preferidos, o Fernando Pinto do Amaral. Amo também a poesia de outros Fernandos portugueses: o Pessoa e o Assis Pacheco. E da Sophia de Mello Breyner Andresen, e do Pedro Tamen, e do Nuno Júdice, e do Luís Filipe Castro Mendes. E do Ruy Belo e do Alexandre O’Neill. E do Caetano Veloso, e do Drummond de Andrade, e do Vinicius. E do Camões, sempre. Fiz a antologia que refere para despertar nos apaixonados a paixão pela poesia — cingi-me aos portugueses porque, apesar de tudo, tenho ainda muitas lacunas na poesia brasileira, que me parece também riquíssima.

• Os amigos de Fazes-me falta são personagens muito diferentes, mas completam-se — “Não sei pensar sem ti (…) não sabes amar sem mim”. Quando a diferença afasta e quando une?
Parece-me que o que une as pessoas é a comunhão quanto aos valores básicos: no caso deles, por exemplo, a idéia de que é preciso ousar procurar a Verdade, o que implica uma valorização da coragem, e a necessidade de contribuir ativamente para a melhoria coletiva do mundo (através das aulas, a que ambos se dedicam, da escrita ou, no caso dela, da ação política). E, em fundo, a melodia do riso — o sentido de auto-humor que ambos acham imprescindível. O que separa as pessoas será o oposto: a des-sintonia de valores e de atmosfera anímica fundamental.

• No Brasil, há já diversos textos publicados sobre a sua obra. Tem conhecimento da recepção da sua obra em meios acadêmicos portugueses, brasileiros ou de outros países?
Tem-me comovido para lá de todas as palavras a extraordinária recepção, não só do meu trabalho como da obra de muitos outros escritores portugueses, no meio acadêmico brasileiro. Extraordinária, não só pela quantidade dos textos, mas sobretudo pela qualidade desses textos, pela sua profundidade e capacidade de estabelecer ligações com outras obras da literatura portuguesa e universal. Quando realizei a Fotobiografia de José Cardoso Pires, verifiquei que havia muito mais teses sobre ele no Brasil do que em Portugal, e o mesmo se passa com todos nós — em particular com os mais jovens. É bem verdade que é mais fácil ser profeta fora do nosso território. No meu caso, para além do Brasil, e de um conjunto de textos jornalísticos muito estimulantes na imprensa portuguesa, tenho conhecimento de alguns trabalhos em curso na Alemanha, e é tudo.

• Como foi a experiência em Passo Fundo (RS) e em São Paulo (SP) em Agosto passado? Quando pretende voltar?
Passo Fundo foi uma emoção fortíssima — aquelas jornadas têm uma atmosfera verdadeiramente especial. Em Passo Fundo, conheci um conjunto de escritores brasileiros que me tocaram muito, como artistas e como pessoas — Cíntia Moscovich, Assis Brasil e Valesca de Assis, por exemplo. E muito especialmente Walter Galvani, de quem fiquei muito amiga. A sessão no Sesc de São Paulo foi também muito bonita e muito participada, e o meu livro despertou o interesse da imprensa, da rádio e até da televisão, o que foi ótimo. Além disso, naqueles breves dias em São Paulo encantei-me com dois filmes brasileiros absolutamente maravilhosos — Lisbela e o prisioneiro, de Guel Arraes, e O homem que copiava, de Jorge Furtado —, fui ver a Tônia Carrero nessa portentosa peça que é A visita da velha senhora, ri-me até às lágrimas com o humor de Terça insana, vi exposições fantásticas, descobri os novos grupos da música popular. Tudo isto, uma vez mais, porque tenho ali amigos que são guias turísticos de luxo.

• O escritor deve procurar o contato incessante com o seu leitor, em encontros, congressos etc.? Até que ponto toda essa confraternização prejudica a criação?
É efetivamente difícil encontrar o justo equilíbrio — esse tem sido exatamente o meu principal problema, em particular nos últimos dois anos. Como tenho dificuldade em dizer que não aos convites, “auto-justifico-me”, para enxotar a culpabilidade, argumentando que preciso de conhecer mais gente e mais mundo para escrever mais e melhor — o que é, até certo ponto, verdade. Argumento também — ou argumentam os meus editores comigo — que as feiras, colóquios, encontros com leitores, idas a escolas, são essenciais para criar o vício da leitura. Por outro lado, é muito estimulante contatar com leitores, vê-los, saber quem são. Mas depois a roda não tem fim, e eu tenho tido uma dificuldade louca para arranjar tempo para, simplesmente, escrever. Até porque, para além da tournée constante em que tenho vivido — e que me afasta da minha família e dos meus amigos, e me faz passar por mal-educada, atrasando a correspondência etc. —, tenho animado Comunidades de Leitores em bibliotecas, a convite do Instituto Português do Livro. É um trabalho muito gratificante. Contribuir para que uma pessoa sem hábitos de leitura se apaixone pela poesia de Eugénio de Andrade ou pelos romances de Agustina é maravilhoso, mas, mais uma vez, muito dispersante, em relação ao meu próprio trabalho. Ainda não descobri a medida ideal de compatibilização, mas aceito sugestões.

• Que tal transformar a despedida em “até breve”? Quando pretende voltar ao Brasil?
Espero voltar ao Brasil já no próximo ano, quando a Planeta publicar Nas tuas mãos. Aliás, não tenciono despedir-me nunca do Brasil: já amava a música e a literatura, agora descobri amigos aí sem os quais já não consigo viver. Até o cheiro do país me faz falta — e os sumos, e o sol, e o mar, e a imprescindível caipirinha. Acima de tudo, essa particular alegria, tão luminosa, que me faz falta. Ao Brasil posso ir várias vezes por ano (este ano já fui duas, primeiro à Bienal do Rio, e agora este último periplozinho, com uma passagem meteórica por Porto Alegre), que não atrapalha a minha criação — só melhora.

LEIA RESENHA DE FAZES-ME FALTA

Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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